Pages - Menu

sábado, 11 de maio de 2019

C.S. Lewis lê Chesterton pela primeira vez


"Foi aqui que li pela primeira vez um volume dos ensaios de Chesterton. Jamais ouvira falar dele e não tinha a menor ideia do que ele representava; tampouco posso explicar por que ele me conquistou tão prontamente. Talvez fosse de esperar que meu pessimismo, ateísmo e ódio do sentimentalismo fizessem dele para mim o menos atraente de todos os escritores. Parece até que a Providência, ou alguma 'causa segunda' de uma espécie bem obscura, supera nossas inclinações anteriores quando decide aproximar duas mentes.

Gostar de um autor pode ser tão involuntário e improvável como se apaixonar. Eu já era então um leitor suficientemente experiente para distinguir gosto de concordância. Não precisava aceitar o que Chesterton dizia para gostar do que ele escrevia. Seu humor é do tipo que mais me agrada - não 'piadas' incrustadas na página como passas num bolo, e menos ainda (o que nem consigo suportar) um tom genérico de irreverência e jocosidade; mas o humor que não é de modo algum separável do argumento, e sim (como diria Aristóteles) a 'florescência' na própria dialética. A espada brilha não porque o espadachim decide fazê-la brilhar, mas porque está lutando pela sua vida e, portanto, movimentando-a bem agilmente.

Pelos críticos que julgam Chesterton frívolo ou 'paradoxal', preciso muito me esforçar mesmo para sentir dó; a solidariedade está totalmente descartada. Além do mais, por estranho que pareça, gostei dele por sua virtude moral. Posso atribuir livremente esse gosto a mim mesmo (ainda naquela idade) porque era um gosto pela virtude moral que nada tinha a ver com qualquer tentativa de ser eu mesmo virtuoso. Jamais senti aversão pela virtude moral, que parece tão comum em homens melhores que eu. 'Complacente' e 'complacência' eram termos de desaprovação que jamais haviam tido espaço no meu vocabulário crítico. Faltava-me o faro cínico, a odora canum vis ou a sensibilidade do sabujo pela hipocrisia ou pelo farisaísmo. Era uma questão de gosto: sentia o 'charme' da virtude moral  como um homem sente o charme de uma mulher que não pretende esposar. É, na verdade, a tal distância que seu 'charme' é mais visível.

Na leitura de Chesterton, como na de MacDonald, eu não sabia aquilo em que me estava enredando. O jovem que deseja se conservar ateu ortodoxo não pode ser suficientemente seletivo nas leituras. As ciladas estão em toda parte - 'Bíblias abertas, milhões de surpresas', como diz Herbert, 'finas malhas e armadilhas'. Deus é, se é que posso dizê-lo, muito inescrupuloso."

C.S. Lewis, Surpreendido pela alegria. Viçosa: Ultimato, 2015. p.170-171.

Nenhum comentário:

Postar um comentário