segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Divagações sobre a humildade


No post anterior, mostramos como o amor pressupõe o conhecimento da verdade e, depois, como dele se segue o serviço. Mostremos, agora, o lugar da humildade em todo esse processo.

Humildade vem de húmus, que significa terra, e dará origem a homem. Homem e humildade têm a mesma origem, portanto. O homem está associado à terra devido à sua criação, pois conta a Escritura que Deus formou o homem do barro. Deus toma um elemento material e sopra sobre ele um elemento espiritual, e eis o homem: uma espécie de encarnação de um princípio superior - a alma - num corpo. E o homem é ambos: corpo e alma. Nele há, portanto, um misto de baixeza e grandeza. No entanto, essa relação é assimétrica, pois, sendo o princípio espiritual mais forte e mais nobre, ele é capaz de elevar o princípio material à sua mesma dignidade, à semelhança do Cristo que, assumindo a natureza humana, a elevava pela sua divindade. Isto é possível porque ambos - o homem e Cristo - , embora possuindo, por assim dizer, duas naturezas, são uma só pessoa.

É por isso que se dirá, também, de modo aparentemente paradoxal, que a humildade possui uma irmã gêmea: a magnanimidade. Talvez pudéssemos associar, então, a humildade à terra, e a magnanimidade ao espírito e, assim como o homem é ambos, assim também ele deveria possuir ambos. Porém, esta explicação é um tanto questionável, pois, segundo isso, Deus não poderia ter humildade, já que não possui matéria, ou, no máximo, deveríamos admitir que Ele somente tenha passado a ter humildade após a encarnação, o que é um absoluto non sense.

Esta idéia se revela absurda também de outro lado: a matéria costuma vangloriar-se e exaltar-se de modo que, quando somos faltos de humildade, em geral isto se deve a algum fator muito carnal e, portanto, muito material. É claro que não sempre, mas isso acontece sim.

Abortemos, pois, este caminho, já que nos levou a uma aporia.

Parece que ser humilde é entender a realidade sobre nós mesmos. Como surgimos do húmus, ser humilde é entender a nossa condição criatural, a nossa absoluta dependência de Deus, não apenas com relação à nossa criação, mas também no que diz respeito à nossa sustentação no ser. Se assim é, humildade seria a correspondência, na inteligência, da nossa real condição. Ora, à correspondência entre inteligência e coisa chamamos verdade. A humildade seria, portanto, igual à verdade? Meio que sem querer querendo, chegamos à definição de humildade que Sta Teresa D'Avila faz. Ser humilde, então, seria ver as coisas como elas realmente são. Se assim é, a humildade por excelência deveria ser atribuída ao próprio Deus, pois, tendo feito todas as coisas e sendo impossível de enganar-se, Ele as veria de modo absolutamente completo, visão que Lhe é totalmente única por abarcar, num só ato, de modo total e totalidade dos seres.

O homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, e isto faz referência ao fato de ele ter sido criado com uma inteligência e uma vontade. A inteligência humana é uma imagem da inteligência divina. Daí que o fato de o homem poder conhecer a verdade é, também, uma participação na faculdade divina de conhecê-la. Logo, a humildade humana, sendo o conhecimento humano da verdade, é também uma participação na humildade divina. E isso é tal que somente é possível ser humilde numa relação íntima com Deus. Isto seria objetado por muita gente que nos traria, então, pessoas supostamente não religiosas e que, não obstante, demonstrariam humildade. Mas aqui há que se ver o conceito que se faz de humildade. Em geral, pensa-se em pessoas pusilânimes, fracas, sem iniciativa. Ou então, pessoas que não se vangloriam e não ficam gritando aos quatro cantos os seus dotes. Observemos que, no primeiro caso, o conceito que se faz de humildade está totalmente equivocado. E no segundo caso, embora tal descrição se aproxime, de fato, da humildade, o que estamos a fazer aí é avaliando sinais externos que podem ou não ter uma correspondência exata internamente.

A hesitação em vangloriar-se pode ser resultado da humildade, mas também de outras ilusões acerca de si mesmo, ou ainda de estratégias inventadas para se cuidar da própria imagem. Para cortar esta última possibilidade, basta que a pessoa seja tão sincera quanto possa ser, embora isso às vezes não signifique muito e o ato do auto-engano possa se dar de modo relativamente inconsciente. Porém, de que modo podemos reconhecer que a visão que temos de nós mesmos corresponde ao que de fato somos? Não nos é possível sair de nós mesmos e observar, como que por uma segunda inteligência, se a nossa primeira inteligência corresponde ao que somos. É por isso que precisamos de um Terceiro: Deus. É Deus quem nos ajudará a reconhecer o que somos e limpará os nossos olhos para que vejamos o que somos. O grande critério que temos é a vida de Jesus Cristo que, ao fazer-se homem, assumiu o papel de arquétipo do homem. "Eis o homem", profetizava sem saber o covarde Pilatos. Ao observá-lo, podemos ter uma clara idéia do que o homem deve ser e, ao contrastá-lo conosco, saberemos se somos alguma coisa que preste.

Costumamos ler, nas hagiografias, que os santos possuem o hábito de falar muito mal de si mesmos. Mais uma vez, quando os olhamos vemos apenas os efeitos de algo interno. Um ator seria capaz de nos enganar? Por certo. E é por isso que Deus confirma a vida dos seus santos com certos sinais que estariam além da capacidade de qualquer encenação. Porém, nós devemos evitar de cair num erro banal que é o de supor que a humildade seja a depreciação externa e afetada de si mesmo. Não é por chamamos a nós mesmos de víboras, ou grandes pecadores, etc., que passaremos a ser humildes. Isso tudo pode ser, como já dito, apenas uma estratégia de confirmação, para nós e para os outros, da nossa própria humildade. E, não obstante, esta humildade pode inexistir e consistir precisamente no contrário. Os santos diziam este tipo de coisa porque, naquelas alturas da vida interior, já se tinham desvanecido as sombras da soberba e da vaidade, dando lugar a uma clara visão da realidade das coisas e, sobretudo, de si mesmos.

Mas voltemos ao nosso tamanho de meros mortais. Vimos como a humildade tem a ver com a inteligência. Porém, sabemos que a humildade tem mais a ver com uma atitude diante das coisas, não é? Quando dizemos que alguém é humilde, geralmente não nos referimos ao modo como entende as coisas, mas ao modo como se comporta. Se a humildade está mesmo mais relacionada com a atitude, é preciso dizer que ela está entranhada com a faculdade da vontade, pois é pela vontade que agimos. Isto é verdade. E a humildade é o extremo oposto da revolta. Portanto, ela tem a ver com submissão. Submissão a quê? À verdade. Se é submissão à verdade, isto significa que a humildade enquanto atitude é posterior à humildade enquanto inteligência, pois a atitude de submissão à verdade é posterior ao conhecimento da verdade. No entanto, o próprio ato de conhecimento da verdade pressupõe uma atitude, pois é submetendo-nos à natureza do objeto que podemos conhecê-lo. Se não houvesse esta submissão intuitivo-contemplativa, tampouco haveria conhecimento, mas antes invenção ou criação.

A humildade, portanto, está na atitude primeira pela qual a inteligência se direciona aos objetos e está na submissão à realidade por ela apreendida. Está na coragem de ver-se tal qual se é e está na fidelidade a esta visão, isto é, na recusa em fantasiar-se, em esconder-se sob conceitos errados e fictícios.

Como a humildade faz parte também da dimensão da atitude, isto é, do exercício da vontade, então ela deve estar intimamente relacionada ao ato de amar, pois este é o ato da vontade por excelência. Víamos, no texto anterior, que o amor leva ao serviço, e aqui a humildade se mostra bem mais familiar. Primeiramente: quando amamos algo ou alguém, podemos amá-lo em função de nós, isto é, pela sua utilidade, ou em função de si mesmo. Quando amamos alguma coisa com interesse, nós reconfiguramos esta coisa segundo nos agrade ou desagrade; nós fazemos como uma nova criação, esvaziando-a de seu valor preexistente e imprimindo um à nossa medida. Mas, visto que não podemos criar nada, esta nova criação é somente uma ilusão, uma capa que, pondo-se por sobre o objeto, o esconde na sua própria natureza. Se distorcemos as coisas, não pode estar nisso a humildade, pois vimos como ela está associada à visão clara. Quando, porém, amamos algo em função de si mesmo, reconhecendo o valor que lhe é inerente independentemente da nossa possibilidade de frui-lo, então este amor pressupõe um ato contemplativo que é a visão clara do próprio objeto de modo que os nossos coloridos pessoais - que são sempre um acréscimo dispensável - não obnubilem o objeto diante de nós. Se o amor leva ao serviço, um amor desinteressado leva ao perfeito serviço e só então a humildade pode efetivar-se em toda a sua realeza, pois a humildade é também uma rainha. Toda a dimensão da verdade e da contemplação só se abre a quem servi-la. Sendo Cristo a verdade, Ele somente poderá ser conhecido por quem cultivá-la. Do contrário, passaremos a vida fazendo projeções e as chamando pelo nome de Jesus. Não obstante o santo nome, teremos fabricado um bezerro de ouro, e seremos idólatras pelo resto do tempo.

Se o amor leva a submeter-se ao que se ama, esta submissão se dá em virtude do valor mesmo de quem se ama. Se quem se ama é Deus, isto significa que a humildade terá de encontrar uma maneira conveniente de portar-se diante de alguém cuja dignidade é absolutamente infinita. Se o compreendêssemos, talvez supuséssemos que nada mais havia o que fazer além de permanecer paralisado. No entanto, a humildade, diante de Deus, se porta com uma estranha liberdade, e isto se deve à sua outra faceta, pouco conhecida, que é o amor à grandeza. Diante de Deus, a humildade encontra-se em casa. E em casa, ela não pode nem quer fingir. Há uma naturalidade em submeter-se a Deus que é a naturalidade de agir conforme sua natureza e encontrar seu lugar de repouso. Aquele que serve a Deus com humildade encontra, na sua alma, uma série de novidades que vão desabrochando, pois o Sol enfim se lhes torna visível e sensível. A humildade, então, como dizia Sto Antônio de Pádua, é o início de todo um cabedal de virtudes, bem como de alegrias insuspeitadas.

E o que acontece quando servimos a outra pessoa? Esta pessoa dispõe de uma alma imortal, igual à nossa, de modo que, essencialmente, não somos inferiores uns aos outros. Mas o mero fato de existirmos numa mesma realidade faz que seja natural, antes, a nossa subsistência conjunta do que qualquer tipo de combate. Talvez soe meio hermético, mas isto poderia ser expresso do seguinte modo: o existente primariamente existe; isto é o que lhe é mais natural; qualquer eventual dissolução seria um segundo movimento e, como é claro, de oposição ao primeiro, o que gera uma espécie de contradição. Portanto, destruir-se é mais complicado e artificial do que existir e manter-se. Uma vez que existimos, o primeiro ato da nossa natureza é de mútua colaboração, pelo que Aristóteles estava certo e Rousseau, errado. Este ambiente de mútua colaboração só é possível se não estamos egocentrados. A perpetuação da simplicidade da existência e da ordem somente se dá quando, saindo de nós mesmos, colaboramos para o bem dos demais, submetidos todos a uma mesma ordem que nos abrange e nos transcende e vem d'Aquele que é maior que nós. Por isso, só é possível viver o amor fraterno se cultivarmos a humildade. Quando esta falta, nos egocentramos e passamos a ver os demais como rivais, pois então gostaríamos que fossem meramente extensões do nosso ser, igualmente empenhados na nossa satisfação. O extremo disso é o inferno: a guerra perpétua.

Diante disso tudo, é possível observar como a humildade é uma virtude rainha que deve ser onipresente na vida humana, como condição inclusive de saúde e de ordem. Diz um antigo adágio que "servir a Deus é reinar". Receber de Deus a graça da humildade significa despertar para a razão íntima das coisas, das pessoas e de si mesmo. Diante disto, cessa a escravidão e uma liberdade imprevista desponta. Até lá, que triste é não sabermos o que significa sermos amigos de Deus.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Pressupostos e implicações do amor


Se alguém nos perguntasse sobre qual é o traço principal do Cristianismo, penso que não seria difícil responder: é o amor. É uma resposta simples, mas que, se bem compreendida, já nos diz muita coisa. Vejamos..

O amor pressupõe necessariamente o conhecimento. Eu nunca posso amar algo que eu não conheço. Imagina que louco eu amanhecer amanhã apaixonado por uma japonesa que nunca vi na vida! Isso não é possível. Eu só posso amar o que eu conheço.

E a faculdade de conhecer se orienta para o que mais a não ser para a verdade? Quando perguntamos alguma coisa a alguém, o que desejamos? Que este alguém nos minta? Será que nos satisfazemos quando chegamos a conhecer algo que sabemos que não é verdade? Quando o marido chega em casa atrasado e diz à mulher que estava na sinuca, é comum ela ficar tranquila, mesmo que sinta um perfume estranho e feminino no ar? É óbvio que não. Se nós de fato podemos conhecer alguma coisa, é sempre a verdade que nos interessa.

Aqui já é possível notar a íntima relação entre amor e verdade. Não à toa, Bento XVI escrevia sobre isso na sua Encíclica Caritas in Veritate. Se o amor pressupõe o conhecimento e se este se orienta naturalmente à verdade, então significa que a verdade é anterior ao amor, de modo que um amor que não prime pela verdade carece de seu fundamento.

Vimos, então, o que, por assim dizer, está por trás do amor. Agora, observemos aquilo que se segue naturalmente a partir dele. Quando amamos alguém, nós não conseguimos ficar indiferentes à pessoa. No Pequeno Príncipe, de Saint Exupery, a raposinha diz ao menino: "se não me cativas, serás para mim como outros mil. Mas, se me cativares, serás para mim único no mundo." O amor transfigura a pessoa amada aos olhos do amante. Isso faz com que este se devote àquele, isto é, busque fazer algo por ele. Podemos dizer que o amor nos leva a agir e não só: ele nos leva a agir em função do outro.

Vejamos isso de perto: agir é sair de onde ou de como se estava. O amor exige um movimento. Portanto, ele faz deixar de se ser o que se era. Isto implica dizer que, de algum modo, ele leva ao sacrifício do que se era. E como age em função do outro, ele faz o amante sair de si. Neste ato de sair de si, o amor é letal ao egoísmo, que segue uma lógica absolutamente contrária. Ao sair de si, o amante quebra uma tendência que está com ele desde que nasceu: a de guardar-se sempre dentro de uma redoma de interesses próprios. Este era o seu mundo. O amor, provocando este sair de si - que é a definição de êxtase - apresenta ao sujeito as luzes e os ares de uma dimensão transcendente, isto é, que está além daquilo que até então ele conhecia. É daqui que pode surgir a contemplação. Esta só nasce quando há a junção de amor e desinteresse.

Desprendendo-se de si, a pessoa sai de si e vai em direção ao outro. E vai em direção ao outro para quê? Não para sugá-lo, mas para ser-lhe útil. O amor, portanto, ordena-se ao serviço e serve bem quem é humilde. Então vejamos onde chegamos:

O amor pressupõe o conhecimento e se ordena ao serviço. Curiosamente, é o que nos diz o Catecismo da Igreja: O sentido da vida humana é conhecer, amar e servir a Deus.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Nova mudança de template.

Mudei o template mais uma vez. O modelo anterior tinha alguns problemas e eu penso que está melhor deste novo jeito. Ainda vou dar uma ajeitada aqui e acolá. Mas, enfim.. 

Pax.