- Aqui, não há mulheres, mas duzentos monges. Jejuam conscientemente. Convenho... Hum! Com que então, queres fazer-te monge? Causas-me dó, Aliócha; na verdade, tinha-te criado afeição... Aliás, eis uma boa ocasião: reza por nós, pecadores de consciência sobrecarregada. Tenho muitas vezes perguntado a mim mesmo: quem rezará um dia por mim? Meu querido rapaz, sou totalmente ignorante a este respeito, talvez o saibas, não? Totalmente. Mas vês, malgrado minha estupidez, reflito por vezes; penso que os diabos me arrastarão com toda a certeza com seus ganchos, após a minha morte. E digo a mim mesmo: donde vêm esses ganchos? De que são? Onde os forjam? Será que eles possuem uma fábrica? Os religiosos, por exemplo, estão convencidos de que o inferno tem teto. Ora, tenho muita vontade de acreditar no inferno, mas sem teto, é mais delicado, mais iluminado, como entre os luteranos. No fundo, não será a mesma coisa, com ou sem teto? Eis a dificuldade! Ora, se não há teto, então não há ganchos. Mas seria incrível: quem me arrastaria então, com ganchos? Porque, se não me arrastarem, onde estaria a justiça neste mundo? Seria preciso inventar esses ganchos, especialmente para mim, para mim só. Se soubesses, Aliócha, que descarado sou eu!...
- Não há ganchos lá - declarou Aliócha, em voz baixa, olhando seriamente para seu pai.
- Ah! só há sombras de ganchos. Sei, sei. Era assim que um francês descrevia o inferno. J'ai vu l'ombre d'un cocher qui, avec l'ombre d'une brosse, frottait l'ombre d'un carrosse.* Donde sabes tu, meu caro, que não há ganchos? Uma vez entre os monges, mudarás de tom. Mas, afinal, parte, vai destrinçar a verdade e vem informar-me. Será mais fácil ir para o outro mundo sabendo o que lá se passa. Será mais conveniente para ti estar entre os monges do que em minha casa, velho bêbedo, com mulheres... se bem que estejas, como um anjo, acima de tudo isso. Talvez o mesmo aconteça lá e, se te deixo ir, é que conto com isso. Não és tolo. Teu ardor se extinguirá e voltarás curado. Quanto a mim, esperar-te-ei, porque sinto que és o único neste mundo que não me censurou, meu querido rapaz, não posso deixar de senti-lo!...
E pôs-se a choramingar.
*"Vi a sombra de um cocheiro que, com a sombra de uma escova, esfregava a sombra de uma carruagem." Versos tirados de uma paródia do Livro VI da Eneida pelos irmãos Perrault, em 1646.
DOSTOIEVSKI, Fiodor. Os irmãos Karamázovi. São Paulo: Abril Cultural, 1971. p.24-25.
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