sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Prova da Imortalidade da alma em Sócrates


FÉDON – Se não me engano, depois que concordamos com ele e que todos se manifestaram de acordo com a existência real de uma idéia a que corresponde cada coisa, sobre a participação no que se refere a estas idéias de tudo o que, não sendo elas mesmas, delas recebe a denominação, depois disso, ele perguntou:

- Se tal é, pois, a tua doutrina, será que, afirmando que Símias é maior do que Sócrates e menor do que Fédon, não afirmarás que há em Símias as duas qualidades, a grandeza e a pequenez?

- Sim.

- Mas, na realidade, acrescentou, quando dizes que Símias é maior do que Sócrates, concordas em que a verdade verdadeira não é precisamente a que decorre da expressão verbal, não é? E que, de fato, Símias é maior, não por sua própria natureza, isto é, como Símias, mas sim por motivo da grandeza que possui, não é assim? E, de outro lado, que ele é maior do que Sócrates não porque Sócrates seja Sócrates, mas somente porque Sócrates tem a pequenez relativamente à grandeza de Símias?

- É verdade.

- E também porque, se Símias é menor que Fédon, isso se verifica não porque Fédon seja Fédon, mas porque Fédon tem a grandeza em relação à pequenez de Símias?

- É isso mesmo.

- Desse modo, por conseguinte, a denominação que pertence a Símias é tanto “ser grande” como “ser pequeno”, pois ele está entre os dois e à grandeza de um, para que esta o supere, ele submete sua pequenez, enquanto ao outro o que ele apresenta é a sua grandeza, que ultrapassa a pequenez deste...

E, com um sorriso, acrescentou:

- Tenho o ar de falar como um redator de contratos. Mas, em todo o caso, as coisas são aproximadamente assim.

Cebes assentiu.

- E falo deste modo, continuou, porque desejo que partilhes da minha própria opinião. Ora, parece-me que não somente a grandeza por si mesma não deseja jamais ser grande e pequena ao mesmo tempo como, também, a grandeza que está em nós não quer jamais acolher a pequenez e muito menos ser superada, e, então, das duas uma: ou foge e cede o lugar quando o seu contrário, a pequenez, se aproxima dela, ou então, pelo próprio fato desta aproximação, ela cessa de existir. Quanto a permanecer firme no seu lugar e receber em si a pequenez, isso ela não quer absolutamente. Uma comparação: eu, uma vez que recebi a pequenez, continuando a ser aquele que precisamente sou, eu, este mesmo Sócrates, sou pequeno; ela, ao contrário, a grandeza, sendo grande, não pode tolerar ser pequena. E do mesmo modo também a pequenez que está em nós recusa-se sempre tornar-se grande ou ser grande; e assim também qualquer outro contrário, enquanto for o que precisamente é, recusa-se tornar-se ou ser ao mesmo tempo o seu próprio contrário. Mas, se lhe acontece o que acabo de dizer, ou ele se afasta, ou cessa de existir.

- Isso me parece de uma absoluta evidência, disse Cebes.

Um dos presentes (não me recordo quem) tomou então a palavra:

- Pelos deuses! Mas, de acordo com o que dizíeis antes, não se tinha chegado a um entendimento sobre o inverso precisamente do que se assevera agora? Não se afirmou que é do menor que nasce o maior, e do maior o menor? Que aquilo que realmente constitui a geração para os contrários é provir dos contrários? Ora, presentemente, o que se diz, parece-me, é que isso jamais se pode produzir!

Sócrates voltou a cabeça para o lado de onde vinha a voz.

- És um bravo, disse ele, pois nos lembraste isso! Não refletes, todavia, sobre a diferença existente entre o que se diz presentemente e o que se dizia antes. Efetivamente, o que se dizia é que da coisa contrária nasce coisa que lhe é contrária; mas agora se diz que é o contrário em si que não poderia tornar-se o seu próprio contrário, nem o que está em nós, nem o que está na natureza. Sim, meu caro, naquele momento tratava-se das coisas que têm em si os contrários e às quais damos o nome destes; mas agora se trata dos próprios contrários, cuja denominação, com a sua presença nas coisas qualificadas, passa a estas; e os contrários em questão, jamais, diremos, consentiriam em receber um dos outros a geração.

E, ao mesmo tempo, olhando Cebes, disse:

- Será que, por acaso, tu também, Cebes, te deixaste perturbar pela dúvida acerca daquilo de que falou aquele homem?

- Não, disse Cebes, de nenhum modo. Não é esse o meu caso. Isso, entretanto, não significa que não haja certas pequenas coisas que me perturbam.

- Estaremos de acordo, prosseguiu Sócrates, sem restrições, em que jamais o contrário será o seu próprio contrário?

- Perfeitamente, disse Cebes.

- Prossigamos então, disse ele. Faze-me o favor de examinar se, sobre isto, estamos de acordo. Há uma coisa que chamas quente e outra frio, não é?

- Sem dúvida.

- É isso, precisamente, a que chamas neve e fogo?

- Oh! Certamente que não, por Zeus!

- Então, o calor é coisa diferente do fogo, e o frio diferente da neve?

- Sim.

- Mas, então, suponho, segundo a tua opinião, jamais uma neve autêntica, que tiver, da maneira que antes dizíamos, recebido em si o calor, continuará a ser o que precisamente ela é, sendo neve com calor; pelo contrário, à medida que o calor aumenta, ela ou lhe cederá o lugar ou deixará de existir.

- Certamente.

- E o fogo, por sua vez, quando o gelo se aproxima dele, ou se afasta ou é destruído, sem resolver jamais, depois de haver recebido em si a frialdade, ser ainda aquilo que precisamente é, sendo fogo com frio.

- É exato, disse ele.

Pode acontecer, pois, continuou Sócrates, que em certos exemplos análogos tudo se passe de tal modo que não somente a idéia em si mesma tenha direito a seu próprio nome por uma duração eterna, mas que haja ainda outra coisa que, ainda que não sendo a idéia de que se trata, possua contudo o caráter desta, e isso pela inteira duração de sua própria existência. Mas eis ainda aqui casos que esclarecem o que digo. O ímpar tem sempre direito a não se separar deste nome de ímpar que lhe damos presentemente, não é assim?

- Sem nenhuma dúvida.

- E isto se passa com esta realidade somente (pois este é o problema que eu proponho) ou também com outra que, sem ser o próprio ímpar, todavia, usa de direito sempre o seu nome, junto ao próprio nome, pois sua natureza é tal que o ímpar jamais a desacompanha? Ora, digo eu, é o caso que se passa com o três, e com outras coisas. Considera o caso do três: não és de opinião que tanto o seu próprio nome deve sempre servir para designá-lo como o do ímpar, ainda que o ímpar não seja a mesma coisa que o três? Pois bem. Entretanto, se essa é a natureza do três, ela é também a do cinco e da metade inteira da série dos números, e, ainda que não sendo a mesma coisa que o ímpar, cada um deles é sempre ímpar. O dois, de outro lado, e o quatro e a totalidade ainda da outra fileira da numeração não são a mesma coisa que é o par, e contudo cada um destes números é sempre par. Concordas com isso, ou não?

- Como não concordar? respondeu ele.

- Pois bem, continuou Sócrates, presta atenção agora no que pretendo demonstrar. Eis aqui: evidentemente, não são somente estes primeiros contrários que não se recebem uns aos outros; há também todas as coisas que, sem serem mutuamente contrárias, possuem sempre estes contrários e que, verossimilmente, não receberiam também tal qualidade, que seria o contrário da que existe neles; mas, à aproximação desta qualidade, deixam de existir ou cedem o lugar. Não diremos, em relação ao três, que ele cessará de existir, que sofrerá qualquer vicissitude, mas que não suportará, continuando a ser três, tornar-se par?

- É absolutamente certo, disse Cebes.

- É certo também, disse Sócrates, que o dois não é o contrário do três?

- Certamente que não.

- Não são, pois, somente as idéias contrárias que não suportam a aproximação uma da outra; mas há também outras coisas que não suportam a aproximação dos contrários.

- É a própria verdade, disse Cebes.

- Queres, então – continuou Sócrates – que determinemos, se formos capazes, de que espécie são estas últimas coisas?

- Oh! Certamente.

- Não seriam aquelas, Cebes, que, se qualquer outra coisa conseguem dominar, constrangem essa coisa não somente a possuir a sua própria natureza, mas também a de um contrário que tem sempre um contrário?

- Que dizes?

- O que dizíamos há apenas um instante. Vejamos: sabes bem que tudo aquilo que sofre o domínio da natureza do três não é necessariamente apenas três, mas também ímpar.

- É exato.

- Por conseguinte, dizemos nós, a uma coisa da mesma espécie do três não poderá jamais sobrevir uma natureza tal que se opusesse como contrário ao caráter daquela que produz o três.

- Não, certamente.

- Ora, a idéia que, como se sabe, o produz é sem dúvida a do ímpar?

- Sim.

- E não é contrária a esta a idéia do par?

- Sim.

- Ao três, por conseguinte, jamais sobrevirá a natureza do par?

- Não, certamente!

- Em conseqüência, o par não é o atributo do três.

- Não é o seu atributo.

- Ímpar é, pois, a idéia do três.

- Sim.

- Eis aí, em suma, o que eu chamava determinar de que espécie são as formas que, sem serem o contrário de tal outra, não recebem todavia esse contrário. Como se vê, no exemplo citado, o três, não sendo o contrário do par, não o recebe por isso, porque traz sempre consigo o contrário do par; como o dois, o contrário do ímpar; o fogo, o contrário do frio; e outras numerosas formas. Pois bem! Vejamos agora, se aceitas esta definição: não é somente o contrário que não recebe em si o contrário, mas também esta forma que leva consigo, vá para onde for, um contrário; essa forma, digo, que leva consigo um seu contrário não poderá jamais acolher em si o contrário do contrário que por ela é levado. Procura lembrar-te: não é um mal ouvir repetir a mesma coisa. O cinco não receberá nele a natureza do par; nem o dez, que é o duplo, a do ímpar. O duplo, também por si mesmo, é contrário de outra coisa; entretanto, ele jamais receberá em si a natureza do ímpar. E, assim, uma fração como o 3/2 e todas as outras deste gênero, como 1/2, que têm por denominador o 2, não recebem a idéia do inteiro; e também não recebem frações como 1/3 e todas as outras do mesmo gênero que têm por denominador o 3. Suponho que hajas acompanhado o meu raciocínio e partilhes da minha opinião.

- Acompanhei o teu raciocínio e sou inteiramente da tua opinião, disse Cebes.

- Agora, disse Sócrates, voltemos ao ponto de partida e fala-me sem empregar para responder as mesmas palavras da minha pergunta, mas tomando-me como exemplo. Eu me explico: ao lado da resposta de que eu falava, da segura resposta a que aludi primeiramente, eu percebo, à luz das nossas últimas palavras, uma outra certeza. Se me perguntasses: “Que é que, apresentando-se no corpo, fará com que ele fique quente?”, eu não te daria a segura resposta em questão, segura, mas não sábia: “É o calor que o fará”, mas sim outra mais hábil, tirada daquilo que acabamos de dizer: “É o fogo que o fará”. E, ainda, se perguntares o que é que, apresentando-se num corpo, fará com que ele fique doente, eu não direi também que é a doença, mas que será a febre. Assim também: “Quem é que apresentando-se em um número par fará com que ele fique ímpar?”; eu não responderei que é a imparidade, mas que será a unidade. E assim por diante. Vê, agora, se compreendes o que quero dizer:

- Sim, compreendo-o bem, disse Cebes.

- Então, responde: o que é que, apresentando-se em um corpo faz com que ele seja vivo?

- É a alma, disse ele.

- E será sempre assim?

- Como negá-lo?

- Assim, a qualquer objeto de que se apodere, a alma traz consigo a vida?

- É o que acontece sempre, respondeu ele.

- Ora, há um contrário da vida ou não?

- Há, respondeu ele.

- Qual?

- A morte.

- Não é verdade que a alma jamais deverá receber nela o contrário, o contrário daquilo que, por si, ela traz sempre consigo, e que a este respeito o acordo deve resultar do que se disse precedentemente?

- Perfeitamente, respondeu Cebes.

- E que se segue? Que nome dávamos há pouco àquilo que não recebe em si a natureza do par?

- Ímpar, disse ele.

- E o que não recebe em si o justo? E o que não é capaz de receber em si o culto?

- Inculto, disse; e o primeiro: injusto.

- Pois bem; e aquilo que não pode receber em si a morte, como o chamamos?

- Imortal, disse.

- A alma não recebe em si a morte, não é?

- Não.

- A alma é, então, uma coisa imortal?

- É uma coisa imortal.

(Nota: Primeira conclusão – a alma não recebe em si a morte. Alma não-viva é coisa tão contraditória como febricitante não-quente. Ela é, pois, não-mortal.)

- Prossigamos. Até aqui, tudo ficou bem provado; ou não te parece que assim seja?

- Tudo foi muito bem exposto, Sócrates.

- E que se segue, Cebes? continuou ele. Se para o ímpar era uma necessidade ser indestrutível, seria possível que o três não fosse indestrutível?

- Como não o haveria de ser?

- E, se também para o não-quente fosse uma necessidade ser indestrutível, seria que, todas as vezes que sobre a neve se aplicasse o quente, a neve não se afastaria intata, sem liquefazer-se? Pois, com certeza, a neve não poderia deixar de existir, e, de outro lado, ela não poderia suportar, ficando firme em seu lugar para receber o calor.

- É a verdade, disse Cebes.

- Do mesmo modo, penso, se fosse para o não-frio uma necessidade ser indestrutível, jamais o fogo, no caso de ser atacado por algo frio, extinguir-se-ia; ele também não o cessaria de existir, mas escapar-se-ia, pondo-se a salvo pelo afastamento.

- Isso era necessário, disse ele.

- Não é também uma necessidade, continuou Sócrates, exprimir-se deste modo a respeito do imortal? O imortal é também indestrutível? Neste caso, não será possível à alma, quando lhe sobrevenha a morte, cessar de existir. Pois a alma – é uma conseqüência certa do que foi dito antes – não receberá a morte, e não será alma morta; do mesmo modo como o três, nós o dissemos, não será par e muito menos o ímpar; e o fogo também não será frio, e muito menos o calor que está no fogo. “Mas que impede”, poderá alguém perguntar, “não que o ímpar se torne par com a aproximação deste, sobre o que há se chegou a acordo, mas que, morrendo este ímpar, em seu lugar se gere o par?” Em resposta a tais palavras, nós não deveríamos dizer que o ímpar não cessa de existir: eis que o não-par não é indestrutível; pois, se chegássemos a acordo, ser-nos-ia fácil responder que, ante a aproximação do par, o ímpar e o três vão-se embora e se distanciam. Para o caso do fogo e do quente, como para todos os outros casos, tal teria sido a nossa resposta, não é?

- Certamente.

- Por conseguinte, também agora, se, no que se refere ao imortal, estamos de acordo com que ele também seja indestrutível, a alma, além da não-mortalidade, teria também a indestrutibilidade. Se não estivermos de acordo, teremos que recomeçar.

- Recomeçar? De nenhum modo, pelo menos em relação a este ponto! Portanto, dificilmente se poderia admitir a existência de algo que fosse refratário à destruição, se fosse preciso admitir a destruição para o imortal, ao qual pertence a eternidade!

(Nota: ora, não-sadio e não-frio podem ser destruídos pelos seus contrários, de modo que a febre ceda e o fogo se extinga. Mas não-mortal é por definição indestrutível. A alma é assim (segunda conclusão) indestrutível.)

- Todavia, disse Sócrates, acerca da Divindade, assim como da própria idéia da vida, e de tudo o mais que possa existir de imortal, suponho que ninguém deixará de admitir que isso jamais será destruído.

- Ninguém, certamente, por Zeus! disse Cebes. Nem homens, nem, por mais fortes razões, deuses!

- E se também o imortal não pode ser destruído, a alma, que é imortal, não será também indestrutível?

- Necessariamente.

- Quando, em conseqüência, a morte chega ao homem, é, como parece, o que há de mortal nele que morre enquanto o que ele possui de imortal vai, salvo da destruição, cedendo o lugar à morte.

- É evidente.

- Por conseguinte, Cebes, mais do que qualquer outra coisa, a alma é não-mortal e não pode ser destruída, disse Sócrates. É pois certo que as nossas almas habitarão o Hades.

- Sem nenhuma dúvida, disse Cebes. Quanto a mim, Sócrates, nada tenho a acrescentar depois do que disseste, nem nenhum motivo de incerteza em relação a esses raciocínios. Se houver, entretanto, alguma coisa que Símias, aqui presente (ou qualquer outro), tenha a dizer, ele não deverá permanecer silencioso. Eu me pergunto, então, se haverá outra ocasião, a não ser a que agora se oferece, em que se poderá falar ou ouvir falar de questões semelhantes!

- Pois bem, respondeu Símias. Eu também não tenho mais motivo para duvidar, pelo menos em relação ao que foi alegado. Todavia, a magnitude do problema de que tratamos e a desconfiança em que tenho esta nossa fraqueza humana obrigam-me a guardar em meu foro íntimo alguma incerteza a respeito destas teses.

- E não é isso somente, Símias, disse Sócrates. Mas a justeza de tuas palavras aplica-se também às nossas premissas: seja qual for o crédito que elas mereçam de tua parte, elas não merecem menos, por isso, um exame mais detido. Se vós todos conseguirdes apreendê-las o bastante para vossa persuasão, acreditarei, então, que passei a seguir o raciocínio, pelo menos da melhor forma possível aos homens. E, quando estiverdes sinceramente convencidos, não tereis então de levar mais adiante as vossas indagações.

- É a própria verdade, disse ele.


Há, entretanto, continuou Sócrates, pelo menos uma coisa sobre a qual vós todos deveis refletir: se a alma é verdadeiramente imortal, ela precisa do nosso cuidado, não somente durante o tempo que dura o que chamamos vida, mas durante a totalidade do tempo. E, depois do que se disse, não cuidar dela, segundo parece, seria um grave perigo. Certamente, se a morte fosse uma libertação de todas as coisas, que fortuna não seria para os maus, os quais, morrendo, ao mesmo tempo em que se sentiriam livres do corpo, sê-lo-iam também, com a alma, da sua própria maldade! Mas, na realidade, agora que a alma se revelou imortal, não há nenhuma saída para seus males, nenhuma outra salvação, senão a de se tornar a melhor possível e a mais sábia. Portanto, a alma nada mais leva consigo, ao chegar ao Hades, do que a sua formação moral e seu modo de vida, que é justamente, segundo a tradição, o que mais beneficia ou prejudica a quem morre, desde o começo de sua viagem para o além.

PLATÃO. Fédon. Trad. Miguel Ruas. São Paulo: Martins Claret, 2002. p.84-93.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

No princípio era o Verbo.



"No princípio era o Verbo". O Verbo, o Logos, é, ao mesmo tempo, Pensamento e Palavra: em si, Ele é o Intelecto divino, o "lugar dos possíveis". Em relação a nós, Ele se manifesta e se exprime pela Criação, na qual se realizam, na existência atual, alguns desses possíveis que, enquanto essências, estão contidas Nele desde toda a eternidade. A Criação é obra do Verbo. Ela é também, por isso mesmo, sua manifestação, sua afirmação exterior. Por isso, o mundo é como uma linguagem divina para aqueles que sabem compreendê-la: Caeli enarrant gloriam Dei (Sl 19,2). Desse modo, o filósofo Berkeley estava certo ao afirmar que o mundo é "a linguagem que o Espírito infinito fala aos espíritos finitos". Todavia, ele não tinha razão ao acreditar que essa linguagem é apenas um conjunto de sinais arbitrários, já que, na realidade, nada existe de arbitrário na linguagem humana, onde toda significação deve ter, na origem, seu fundamento em alguma conveniência ou harmonia natural entre o signo e coisa significada. Por ter recebido de Deus o conhecimento da natureza de todos os seres vivos é que Adão pode dar-lhes os nomes (Gn 19-20). Todas as tradições antigas concordam ao ensinar que o verdadeiro nome de um ser estabelece uma unidade com sua natureza ou sua própria essência.

Se o Verbo é Pensamento no interior e Palavra no exterior, e se o mundo é o efeito da Palavra divina proferida na origem dos tempos, a natureza toda pode ser tomada como um símbolo da realidade sobrenatural. Tudo o que existe, sob qualquer forma que seja, por ter seu princípio no Intelecto divino, traduz ou representa esse princípio à sua maneira e segundo sua ordem de existência. Assim, de uma ordem à outra, todas as coisas se encadeiam e se correspondem, concorrendo para a harmonia universal e total, que é como um reflexo da própria Unidade divina.

René Guénon, O Verbo como símbolo