segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Prefiro morrer por Jesus do que reinar - Sto Inácio de Antioquia


 "Nem todos os reinos do mundo, nem as mais distantes partes da terra são para mim de algum proveito. Prefiro morrer por Jesus Cristo do que reinar sobre os mais longínquos recantos do universo. Procuro Aquele que morreu por nossa causa; desejo Aquele que para a nossa salvação ressuscitou. Sinto em mim como que dores de um novo nascimento. Ajudai-me a suportá-las, Irmãos. Não me impeçais de viver; não desejeis a minha morte. Não procureis reter no mundo aquele que deseja ser de Deus, e não me tenteis com coisas materiais. Deixai que eu receba a pura luz. Quando estiver mergulhado nessa luz, só então serei homem. Permiti que eu possa imitar a paixão de meu Deus. Se algum dentre ós possui a Deus em si, há de compreender o meu anseio e compartilhar do meu sentimento, pois sabe as coisas que me embaraçam. .... Só serei verdadeiramente discípulo de Jesus Cristo quando o mundo não vir nem o meu corpo".

Trecho de uma carta de Santo Inácio de Antioquia, escrita quando ele estava sendo enviado a Roma, onde seria martirizado.

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

As provações e seus efeitos - da estreiteza à magnanimidade


"Deus conduziu-me por caminhos incompreensíveis, na ocasião, para trazer-me ao ponto em que me encontro agora. Também os meus caminhos comportaram grandes sofrimentos. Mas as provações são apenas as divergências entre os pensamentos de Deus e os nossos próprios desejos. São-nos enviadas para fazer-nos passar da estreiteza de nossos míseros corações para a magnanimidade do Coração de Deus. Experimentamos então, um desabrochamento de todo nosso ser, uma dilatação da alma, de que não tínhamos ideia. Nada perdemos da vida, e vemos surgir diante de nós uma paisagem nova, tão bela quanto imensa. Isso porém não se realiza sem falhas, lutas e dores."

Dom Pierre Célestin Lou Tseng-Tsiang

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

A felicidade e dignidade da Pobreza


John C. H. Wu

Os santos são criaturas, ao mesmo tempo, as mais pobres e as mais ricas. Nem todos são realmente mendigos, mas são mendigos em seu coração. Quando são ricos, entregam-se generosamente a obras de misericórdia corporal, sabendo que os seus bens não lhes pertencem e que devem usá-los segundo a vontade de Deus. Vivem no mundo, mas não são do mundo, e põem em prática as palavras de São Paulo: "Isto pois digo, irmãos: o tempo é breve; o que resta é que os que têm mulheres, sejam como se as não tivessem; os que choram, como se não chorassem; os que folgam, como se não folgassem; os que compram, como se não possuíssem; os que usam deste mundo, como se dele não usassem; porque a figura deste mundo passa" (1Cor 7, 29-31). Em resumo, tudo depende da avaliação justa das coisas. "Se avaliássemos as coisas acertadamente, em comparação com o que é divino e incorruptível, o ouro e a prata não deveriam ter a nossos olhos mais valor do que a areia. Estabeleceríamos nossos tesouros no céu, e para lá voltaríamos o nosso coração, para mantê-lo recolhido. Pois segundo Santo Agostinho, o homem rico que emprega os seus bens pondo-os a serviço de Deus e de sua alma, da melhor maneira possível, não encontra dificuldade alguma em aproximar-se de Deus: o seu coração só está apegado a Deus, e não às riquezas, embora as possua em abundância" - diz-nos Frei Francisco de Osuna, em O Terceiro Alfabeto Espiritual.

Os santos não temem a pobreza material, porque reintegram tudo no seu valor verdadeiro. O mesmo se dá com os filósofos e sábios, que centralizam o interesse de sua vida na busca da sabedoria e não na aquisição de bens materiais. Confúcio, por exemplo, dizia o seguinte a seus alunos: "Um alimento frugal, água para beber, o braço dobrado como travesseiro - este é o estado que nos convém para sermos felizes. As riquezas e as honras mal adquiridas são mais inconsistentes do que a nuvem que passa." (Analecta, 7, 15). Entre os seus discípulos, tinha grande estima e admiração por Yen Huei, que morreu antes dele, e do qual fez este elogio, que atravessou os séculos: "Huei foi realmente um homem de bem! Uma única tigela de cereal, uma só concha de água, e por moradia um sórdido corredor. Outros não teriam suportado essa miséria. Mas Huei nunca perdeu a sua alegria." (Analecta, 6, 9). Os adeptos de Confúcio, de todas as épocas, sempre admiraram a indiferença de Huei à pobreza. Um grande filósofo da Dinastia Sung, Chou Tun-yi (1017-1073) assim comenta a alegria de Yen Huei: "Agora todos os homens buscam honras e riquezas; no entanto, Yen Huei não as prezava nem as procurava e permanecia feliz na pobreza. Seria o seu coração diferente dos outros? O fato é que há algo infinitamente mais digno de amor e interesse do que essas coisas; e Yen Huei, tendo visto onde estava o verdadeiro valor, desprezou o que apresentava menos valia. Quando alguém encontra o valor verdadeiro, o seu coração fica em paz, e ele não deseja mais nada. E, não desejando nada, torna-se indiferente às circunstâncias exteriores, podendo assim adaptar-se a qualquer delas, perfeitamente bem. Eis porque Yen Huei foi um sábio abaixo apenas de Confúcio."

WU, John C. H. O Carmelo Interior. São Paulo: Flamboyant, 1962. p.57-59.

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Thomas Merton encontra-se com o Dr. Suzuki


"Tive a chance de encontrar-me com o Dr. Suzuki e de poder conversar - em espaço de tempo demasiadamente curto - por duas vezes. Essa experiência foi não somente proveitosa mas, diria eu, inesquecível. Foi, na minha vida, um acontecimento bem extraordinário, uma vez que, devido às circunstâncias em que vivo, não me encontro com todos aqueles com quem me encontraria de maneira profissional se estivesse, vamos dizer, ensinando numa universidade. Já conhecia, havia muito tempo, o trabalho do Mestre, e com ele me correspondia. Tivéramos até um curto diálogo, que foi publicado, em que discutíamos a "Sabedoria do Esvaziamento" como a encontramos comparativamente no Zen e no cristianismo, nos padres do deserto do Egito. Por ocasião de sua última visita aos Estados Unidos, tive o grande privilégio de encontrá-lo. Era preciso avistar-se com este homem para poder apreciá-lo devidamente. Parecia-me que ele encarnava todas as qualidades indefiníveis do "Homem Superior" das antigas tradições asiáticas: taoísta, confucionista, budista. Ou melhor, ao encontrá-lo, tinha-se a impressão de uma entrevista com aquele 'Verdadeiro Homem Sem Título', de que falam Chuang Tzu e os Mestres do Zen. E, está claro, é este o homem que se quer realmente encontrar. Quem mais haveria? Ao reunir-me com o Dr. Suzuki, bebendo com ele uma xícara de chá, senti haver encontrado esse homem único. Foi como se chegássemos, enfim, à nossa própria casa. Uma experiência muito feliz, para dizer o mínimo. Não há muita coisa a registrar a respeito. Pois discorrer longamente sobre isso atrairia a atenção para os pormenores que, afinal, são irrelevantes. Quando se está de fato com a pessoa, os múltiplos pormenores encaixam-se naturalmente na unidade que é vista sem ser expressa. Quando se fala nisso em segunda mão, veem-se apenas os múltiplos pormenores. Assim, o Verdadeiro Homem já desapareceu; foi tratar de seus negócios alhures."

Thomas Merton. Zen e as aves de rapina. São Paulo: Cultrix, 1993.

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

O ego cartesiano e a intuição metafísica do Ser


Em nossa avaliação da consciência moderna, temos de levar em conta a importância ainda imensa do cogito cartesiano. O homem moderno, na medida em que ainda é cartesiano (vai, é claro, muito além de Descartes em muitos aspectos), é um sujeito para quem a consciência do seu próprio eu, como um "eu" que pensa, observa, mede e calcula, é absolutamente primordial. É para ele a única indubitável "realidade" e todas as verdades têm aí início. Quanto mais for capaz de desenvolver sua consciência, como um sujeito acima e em confronto com objetos, tanto mais poderá entender as coisas e objetos em favor de seus próprios interesses. Mas, ao mesmo tempo, mais tende a isolar-se em sua prisão subjetiva, para tornar-se um observador solitário, separado de tudo mais, numa espécie de bolha de sabão transparente, alienada, que contém toda a realidade na forma de uma experiência puramente subjetiva. A consciência moderna, então, ou a conscientização, tende a criar essa bolha solipsística de "estar ciente" - um auto-ego encarcerado em sua própria consciência, isolado e sem contato com outros seres iguais a ele na medida em que são todos "coisas" em lugar de pessoas.

Foi essa espécie de conscientização, exacerbada ao extremo, que tornou inevitável a assim chamada "Morte de Deus". O pensamento cartesiano começou pela tentativa de alcançar Deus como objeto, partindo do eu pensante. Mas, quando Deus se torna objeto, mais cedo ou mais tarde "morre", pois Deus como objeto é, afinal, coisa impensável. Deus como objeto não é apenas mero conceito abstrato, mas conceito que contém tantas contradições internas que se torna "não negociável", exceto quando é transformado, enrijecido em um ídolo mantido na existência apenas por forte ato de vontade. Por muito tempo o homem continuou a ser capaz de exercer esse ato de vontade; agora, porém, o esforço tornou-se exaustivo e muitos cristãos compreendem a sua inutilidade. Relaxando o esforço, abriram mão do "Deus-objeto" que seus pais e avós esperavam ainda manejar para seus próprios fins. O cansaço desses cristãos explica o elemento de ressentimento que fez disso um "assassinato" consciente da divindade. Libertada da tensão de querer manter voluntariamente na existência o Deus-objeto, a consciência cartesiana permanece ainda assim aprisionada em si mesma. Daí a necessidade de sair de si para estar com "o outro" no "encontro", na "abertura", na "fraternidade", na "comunhão".

No entanto, o grande problema está no fato de que, para o cartesiano conscientizado, o "outro" é também um objeto. Não é preciso aqui nos alongarmos sobre o esforço moderno, de grande importância para restaurar no homem a consciência do "outro", irmão seu, dando-lhe o status de "eu-tu". Será possível uma autêntica relação "eu-tu", de fato, em se tratando de um sujeito puramente cartesiano?

Lembremo-nos, entretanto, de que outra conscientização metafísica ainda está ao alcance do homem moderno. Tem início não no sujeito pensante e autoconsciente mas no Ser visto como estando ontologicamente para além e antes da divisão sujeito-objeto. Subjacente à experiência do ser individual, há a experiência imediata do Ser. Isso é totalmente diverso da experiência autoconsciente. É completamente não objetiva. Nada tem da divisão e da alienação que ocorrem quando o sujeito se torna consciente de si como quase-objeto. A conscientização do Ser (seja que o consideremos positiva ou negativamente e apofaticamente, como no budismo é experiência imediata que vai além da tomada de consciência refletida) não é "consciência de" mas "pura conscientização" em que o sujeito como tal "desaparece".

Posteriormente a essa experiência imediata, de uma base que transcende a experiência, emerge o sujeito com sua autoconsciência. Porém, como as religiões orientais e o misticismo cristão o têm sublinhado, esse sujeito autoconsciente não é algo de finalizado ou absoluto; é uma autoconstrução provisória, que existe por motivos práticos, apenas numa esfera de relatividade. Sua existência tem sentido na medida em que não ocorre a fixação ou a centralização sobre si mesmo, como fim, e aprende a funcionar não como seu próprio centro mais como "de Deus" e "para os outros". O termo cristão "de Deus" implica aquilo que as filosofias religiosas não teístas concebem como um Único Centro hipotético de todos os seres. É o que T. S. Eliot denominava "o ponto imóvel do mundo que gira", mas  que o budismo, por exemplo, não vê como um "ponto", mas como um "vazio". (E, evidentemente, o vazio não é visto de modo algum).

Em resumo, essa forma de conscientização assume uma espécie de autopercepção totalmente diferente da do eu pensante cartesiano, que tem em si mesmo sua própria justificação. Aqui, o indivíduo tem consciência de si como um eu-a-ser-dissolvido no dar-se, no amor, na "entrega", no êxtase, em Deus - há muitas maneiras de expressá-lo.

O eu não é o seu próprio centro e não gravita em torno de si; está centrado em Deus, o único centro de todos, que está "em toda parte e em nenhum lugar", em quem todos se encontram, de quem todos procedem. Assim, logo de início essa consciência está disposta a encontrar "o outro" como quem já está unido, de qualquer forma, "em Deus".

A intuição metafísica do Ser é uma intuição sobre uma base de abertura, de fato, uma espécie de abertura ontológica e uma infinita generosidade que se comunica a tudo que existe. "O bem é difusivo de si próprio", ou "Deus é Amor". A abertura não é algo a ser adquirido. É, sim, do radical que foi perdido e tem de ser reencontrado (embora, em princípio, ainda esteja "ali", nas raízes de nosso ser criado). Essa linguagem é mais ou menos metafísica, mas há também um modo não-metafísico de declará-lo. Não considera Deus como Imanente ou como Transcendente e sim como graça e presença. Portanto, não como "Centro" imaginado em algum lugar "ali fora", nem, tampouco, "dentro de nós". Encontra-o, não como Ser, mas como Liberdade e Amor. Eu diria desde o início que o importante não consiste em opor este conceito gracioso e profético à ideia metafísica e mística de união com Deus, e sim em demonstrar onde as duas ideias procuram realmente expressar a mesma espécie de conscientização, ou, pelo menos, dela aproximar-se por maneiras variadas.

Thomas Merton, Zen e as aves rapina

sábado, 11 de maio de 2019

C.S. Lewis lê Chesterton pela primeira vez


"Foi aqui que li pela primeira vez um volume dos ensaios de Chesterton. Jamais ouvira falar dele e não tinha a menor ideia do que ele representava; tampouco posso explicar por que ele me conquistou tão prontamente. Talvez fosse de esperar que meu pessimismo, ateísmo e ódio do sentimentalismo fizessem dele para mim o menos atraente de todos os escritores. Parece até que a Providência, ou alguma 'causa segunda' de uma espécie bem obscura, supera nossas inclinações anteriores quando decide aproximar duas mentes.

Gostar de um autor pode ser tão involuntário e improvável como se apaixonar. Eu já era então um leitor suficientemente experiente para distinguir gosto de concordância. Não precisava aceitar o que Chesterton dizia para gostar do que ele escrevia. Seu humor é do tipo que mais me agrada - não 'piadas' incrustadas na página como passas num bolo, e menos ainda (o que nem consigo suportar) um tom genérico de irreverência e jocosidade; mas o humor que não é de modo algum separável do argumento, e sim (como diria Aristóteles) a 'florescência' na própria dialética. A espada brilha não porque o espadachim decide fazê-la brilhar, mas porque está lutando pela sua vida e, portanto, movimentando-a bem agilmente.

Pelos críticos que julgam Chesterton frívolo ou 'paradoxal', preciso muito me esforçar mesmo para sentir dó; a solidariedade está totalmente descartada. Além do mais, por estranho que pareça, gostei dele por sua virtude moral. Posso atribuir livremente esse gosto a mim mesmo (ainda naquela idade) porque era um gosto pela virtude moral que nada tinha a ver com qualquer tentativa de ser eu mesmo virtuoso. Jamais senti aversão pela virtude moral, que parece tão comum em homens melhores que eu. 'Complacente' e 'complacência' eram termos de desaprovação que jamais haviam tido espaço no meu vocabulário crítico. Faltava-me o faro cínico, a odora canum vis ou a sensibilidade do sabujo pela hipocrisia ou pelo farisaísmo. Era uma questão de gosto: sentia o 'charme' da virtude moral  como um homem sente o charme de uma mulher que não pretende esposar. É, na verdade, a tal distância que seu 'charme' é mais visível.

Na leitura de Chesterton, como na de MacDonald, eu não sabia aquilo em que me estava enredando. O jovem que deseja se conservar ateu ortodoxo não pode ser suficientemente seletivo nas leituras. As ciladas estão em toda parte - 'Bíblias abertas, milhões de surpresas', como diz Herbert, 'finas malhas e armadilhas'. Deus é, se é que posso dizê-lo, muito inescrupuloso."

C.S. Lewis, Surpreendido pela alegria. Viçosa: Ultimato, 2015. p.170-171.

quinta-feira, 2 de maio de 2019

C.S. Lewis conta como "apreciava" as festas para as quais era convidado quando criança


"Para mim, esses bailes eram um tormento - no qual a simples timidez tinha um papel discreto. Era a falsa pose (que eu já tinha capacidade de perceber) que me atormentava; saber que consideravam você uma mera criança, e mesmo assim ser forçado a participar de uma atividade essencialmente adulta, sentindo que todos os adultos presentes eram meio amáveis, meio debochados, e fingiam tratá-lo como alguém que você não era. Acrescente-se a isso o desconforto do terno justo e da camisa sufocante, as dores nos pés, a testa em chamas e o simples cansaço de ser forçado a ficar acordado muitas horas depoi da hora habitual de dormir.

Mesmo os adultos, chego a pensar, não achariam as festas noturnas lá muito toleráveis sem a atração do sexo oposto e a do álcool. Mas então como é que um menino pequeno, que não pode nem paquerar nem beber, poderia gostar de saracotear num piso polido até de madrugada? Logicamente, eu não tinha a menor noção dos vínculos sociais. Nunca me dei conta de que determinadas pessoas se viam obrigadas, pelas regras da educação, a me convidar porque conheciam meu pai ou tinham conhecido minha mãe.

Para mim tudo era uma perseguição inexplicável e gratuita. E quando, como frequentemente acontecia, tais compromissos caíam na última semana das férias e nos roubavam uma enorme quantidade de horas, das quais cada minuto valia ouro, eu sentia verdadeiramente que poderia esquartejar minha anfitriã membro a membro. Por que ela insistia em me infernizar? Eu nunca haia feito nada de mau contra ela, nem jamais a convidara para uma festa.

Meus incômodos foram agravados pelo comportamento totalmente antinatural que, segundo eu pensava, era obrigado a adotar num baile; isso veio à tona de uma forma bem engraçada. Lendo muito e me misturando pouco com as crianças de minha idade, eu já tinha, antes de ir à escola, desenvolvido um vocabulário que certamente (hoje vejo) soava bastante engraçado vindo dos lábios de um molequinho rechonchudo de paletó escolar. Quando eu sacava minhas 'palavras compridas', os adultos pensavam, e não sem razão, que eu estava me exibindo. Nisso eles estavam bem equivocados. Eu usava as únicas palavras que conhecia.

O correto era na verdade bem o contrário daquilo que eles supunham; eu me orgulharia de usar a gíria escolar, se a soubesse, em vez da linguagem livresca que (inevitavelmente, pelas circunstâncias) vinha naturalmente à minha boca. E não faltavam adultos que me incentivavam com fingido interesse e fingida seriedade - até o momento em que eu percebia, de repente, que estava sendo ridicularizado. Então, claro, meu sofrimento era intenso. Depois de uma ou duas dessas experiências, baixei a severa regra de que em 'ocasiões sociais' (como secretamente eu as chamava) eu jamais deveria, sob nenhum pretexto, falar de qualquer assunto pelo qual eu sentisse o mínimo interesse, nem em palavras que naturalmente me ocorressem.

E observei essa regra com extrema meticulosidade; desde então, assumi, conscientemente como um ator assume seu papel, um comportamento social que envolvia a imitação tola e balbuciante da fala mais rasa de um adulto e a ocultação deliberada de tudo o que eu realmente pensava e sentia sob uma espécie de débil jocosidade e entusiasmo. O 'papel' era sustentado com tédio indizível e abandonado com um gemido de alívio assim que meu irmão e eu afinal saltávamos no cabriolé para voltar para casa (este, sim, o único prazer da noite)."

C.S. Lewis, Surpreendido pela alegria. Viçosa: Ultimato, 2015. p.49-50.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Quando o amor o chamar...


"Quando o amor o chamar, 
se guie,
embora seus caminhos sejam agrestes e escarpados.

E quando ele vos envolver com suas asas,
cedei-lhe,
embora a espada oculta na sua plumagem possa ferir-vos.

E quando ele vos falar,
acreditai nele,
embora a sua voz possa despedaçar vossos sonhos 
como o vento devasta o jardim.

Pois da mesma forma que o amor vos coroa, 
assim ele vos crucifica.
E da mesma forma que contribui para o vosso crescimento,
trabalha para vossa poda.

E da mesma forma que alcança vossa altura 
e acaricia vossos ramos mais tenros que se embalam ao sol,
assim também desce até vossas raízes e a sacode no seu apego à terra.
Como feixes de trigo, ele vos aperta junto ao seu coração,
ele vos debulha para expor a vossa nudez;
ele vos peneira para libertar-vos das palhas;
ele vos mói até extrema brancura;
ele vos amassa até que vos torneis maleáveis.

Então ele vos leva ao fogo sagrado 
e vos transforma no pão místico do banquete divino.
Todas essas coisas o amor operará em vós
para que conheçais os segredos de vossos corações.
E com esse conhecimento,
vos convertais no pão místico do banquete divino.

Todavia, se no vosso temor 
procurardes somente a paz do amor, o gozo do amor,
então seria melhor para vós que cobrísseis vossa nudez, 
abandonásseis a ira do amor 
para entrar num mundo sem estações onde rireis, 
mas não todos os vossos risos;
e chorareis, 
mas não todas as vossas lágrimas.
O amor nada dá, se não de si próprio,
E nada recebe, se não de si próprio.
O amor não possui nem se deixa possuir,
pois o amor basta-se a si mesmo.

Quando um de vós ama, 
que não diga 'Deus está no meu coração',
mas que diga antes: 'Eu estou no coração de Deus'.
E não imagineis que possais dirigir o curso do amor,
pois o amor, se vos achar dignos, 
determinará ele próprio vosso curso.

O amor não tem outro desejo se não o de atingir a sua plenitude
Se contudo amardes e precisardes ter desejos, 
sejam estes os vossos desejos:
de vos diluírdes no amor 
e serdes como um riacho que canta sua melodia para a noite;
de conhecerdes a dor de sentir ternura demasiada;
de ficardes feridos por vossa própria compreensão do amor;
e de sangrardes de boa vontade e com alegria;

de acordardes na aurora com o coração alado
e agradecerdes por um novo dia de amor;
de descansardes ao meio-dia 
e meditardes sobre o êxtase do amor;
De voltardes pra casa à noite com gratidão,
e de adormecerdes com uma prece no coração para o bem-amado, 
e, nos lábios, uma canção de bem-aventurança".