quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Pecado, dor, ignorância e falsidade


A fim de descobrir o que vai por trás de uma aparência, há que se ter atenção e a atenção pressupõe quietude.

Um pecado, por exemplo, se desperta inquietude e agitação, impede, no mesmo ato, a correta avaliação do que se fez e de por que se o fez. Mas é comum que às vezes o incômodo gerado não proceda diretamente do ato, mas do modo como a mente antecipa o julgamento de outros a respeito do mesmo ato. Assim, ela sofre por vaidade, e, além disso, assume um incômodo postiço, produto de uma conclusão conceitual – isto é, geral -, mas que se distingue inteiramente do incômodo visceral e singular que uma experiência também singular produz ou supostamente deveria produzir.

Assumir uma postura dolorida assim é assumir uma postura falsa. E esta falsidade tende a obscurecer a visão interior a respeito do que se fez, pois ela fica como uma capa flutuante e um modo de autoengano que a pessoa produz para esconder de si mesma o agravante de não estar pesarosa pela falta cometida. Um pecado pode, então, ser um ajudante no processo de autoconhecimento, e era isso o que os Padres do Deserto diziam: “Que o teu entulho seja teu pedagogo.” Mas, para isso, é preciso uma quietude que permita que o olhar da alma se detenha na questão.

Dar-se a si mesmo uma espécie de contrição pressupõe já tê-la antes da queda, o que é contraditório. Ninguém dá o que não tem. Assim, se um pecado em particular, embora objetivamente considerado grave, não desperte a culpa que se supõe normal em tais casos, isto deve ser aproveitado não para que seja deixado para lá, mas para que seja melhor investigado. O que está por trás da aparência? Como diz um trecho do livro de Levíticos: “Não faça isso, pois isso é bondade! (Hesed)". O ser humano só pode desejar algo, ainda que seja ruim, sob o aspecto do bem. Esta afirmação geralmente pressupõe a bondade visada no objeto. Mas é possível que a bondade esteja no que cometeu o que não deveria. Por trás do que se faz, portanto, não raro se esconde uma boa intenção ou uma boa raiz má considerada. Esta posição se avizinha da de Sócrates para o qual a maldade é produto de uma espécie de ignorância, esta entendida como o estado de não saber a respeito de algo que é essencial conhecer.

Isso obviamente não permite relativizar o pecado, mas serve para brecar a afetação posterior e para reconhecer que até mesmo ele pode ter uma função pedagógica. Se todo pecado é sempre um efeito daquela primeira Queda, todo pecado possui também a possibilidade de se tornar uma "felix culpa".