domingo, 1 de agosto de 2021

Somente a virtude sobrenatural tem valor efetivo

É importante entender que as virtudes naturais só têm um valor efetivo na condição de estarem integradas nas virtudes sobrenaturais, aquelas que pressupõem um tipo de morte. De fato, virtudes naturais não excluem o orgulho, a pior de todas as inconsistências lógicas, e o principal dos vícios. Somente a virtude sobrenatural - enraizada em Deus - exclui este vício que, aos olhos do Céu, cancela todas as virtudes. A virtude sobrenatural - a única que é integralmente humana - coincide portanto com a humildade; não necessariamente com o humilitarismo sentimental e individualista, mas com a consciência sincera e totalmente justificada do nosso nada diante de Deus e da nossa relatividade em relação aos outros. Para sermos concretos, nós dizemos que uma pessoa humilde está pronta para aceitar até uma crítica parcialmente injusta se ela contém um grão de verdade, e se ela vem de uma pessoa que é, se não perfeita, ao menos digna de respeito; uma pessoa humilde não está interessada em ter sua virtude reconhecida, mas em superar a si mesmo; logo, em agradar mais a Deus que aos homens.

Frithjof Schuon, To have a center

terça-feira, 8 de junho de 2021

A vida não é mais que este momento presente


 "Na dimensão temporal que se estende diante de nós, há três certezas: a da morte, a do Julgamento e a da Vida eterna. Não temos nenhum poder sobre o passado e ignoramos o futuro; não temos, para o futuro, senão estas três certezas, mas nós possuímos uma quarta certeza neste momento mesmo, e é ela que é tudo: é a certeza de nossa atualidade, de nossa liberdade atual de escolher Deus e de escolher assim todo o nosso destino. Neste instante, neste presente, possuímos toda a nossa existência: tudo é bom se este instante é bom, e se sabemos fixar nossa vida neste instante abençoado; todo o segredo da fidelidade espiritual está em permanecer neste instante, em renová-lo e em perpetuá-lo ela prece, em retê-lo pelo ritmo espiritual, em nele colocar todo o tempo que se verte sobre nós e que ameaça arrastar-nos para longe deste 'momento divino'. A vocação do religioso é a prece perpétua, não porque a vida é longa, mas porque ela não é mais do que um momento; a perpetuidade - ou o ritmo - da oração demonstra que a vida não é senão um instante sempre presente, assim como a fixação espacial em um lugar consagrado demonstra que o mundo não é mais do que um ponto, mas um ponto que, ao pertencer a Deus, está por toda a parte e não exclui nenhuma felicidade".

 Frithjof Schuon

domingo, 2 de maio de 2021

A ilusão do centro perdido no outro


Em seu Symposium, Platão lembra a tradição de que corpo humano, e mesmo o corpo vivo pura e simplesmente, é como a metade de uma esfera; todas as nossas faculdades e movimentos dizem respeito e tendem a um centro perdido - que nós sentimos como 'diante' de nós -, mas recuperado simbolicamente, e indiretamente, na união sexual. Mas o resultado não é senão uma dolorosa renovação do drama: uma nova entrada do espírito na matéria. O sexo oposto é apenas um símbolo: o verdadeiro centro está oculto em nós mesmos, no coração-intelecto. A criatura reconhece algo do centro perdido em seu parceiro: o amor que daí resulta é como uma sombra longínqua do amor de Deus, e da beatitude intrínseca de Deus; é também uma sombra do conhecimento que queima as formas, e que une e liberta.

Frithjof Schuon, O homem e seu mundo

Queda, Manifestação e Revelação

O problema da queda evoca o desta teofania universal que é o mundo. A queda não é mais que um elo particular desse processo; além disso, ela nem sempre é apresentada como uma 'falta', mas toma em certos momentos a forma de um evento alheio à responsabilidade humana ou angélica. Se existe um cosmo, uma manifestação universal, deve haver uma queda ou quedas, pois quem diz 'manifestação' diz 'outro que não Deus' e 'afastamento'.

Na Terra, o Sol divino está velado; disso resulta que as medidas das coisas são relativas, que o homem pode se dar para o que não é, e que as coisas podem aparecer como o que não são; mas, uma vez rasgado o véu, quando desse nascimento que é a morte, o Sol divino aparece; as medidas tornam-se absolutas; os seres e as coisas tornam-se o que são e seguem os caminhos de sua verdadeira natureza.

Não que as medidas divinas não atinjam nosso mundo, mas elas são 'filtradas' por sua carapaça existencial, e, de absolutas que eram, tornam-se relativas, de onde o caráter flutuante e indeterminado das coisas terrestres. O astro solar não é senão o Ser visto através dessa carapaça; em nosso microcosmo, o Sol é representado pelo coração.

É porque vivemos, sob todos os aspectos, numa tal carapaça que temos necessidade - para saber o que somos e onde nos achamos - dessa rasgadura cósmica que é a Revelação; e poder-se-ia sublinhar, neste sentido, que o Absoluto não consente jamais em se tornar relativo de uma maneira total e ininterrupta.

Frithjof Schuon, O Homem no universo.

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Tradição e Exteriorização

Para os mundos tradicionais, situar-se no espaço e no tempo significa respectivamente situar-se em uma cosmologia e em uma escatologia; o tempo não tem significado senão pela perfeição da origem que se trata de conservar, e em vista da explosão final que nos projeta quase sem transição aos pés de Deus. Se no tempo há às vezes desdobramentos que poderiam ser tomados por progressos se fossem isolados do conjunto - na formulação doutrinal, por exemplo, ou sobretudo na arte, a qual necessita de tempo e de experiência para amadurecer -, isto é assim não porque se considere que a tradição deve tornar-se diferente ou melhor, mas, ao contrário, porque ela quer permanecer totalmente a mesma ou 'tornar-se o que ela é', ou e outros termos: porque a humanidade tradicional quer manifestar ou exteriorizar num certo plano o que ela leva em si mesma e corre o risco de perder, este risco aumentando com o desdobramento do ciclo, o qual leva forçosamente à decadência do Juízo Final. 

Trata-se, em suma, de nossa crescente fraqueza, e com ela o risco do esquecimento e da traição, que nos obrigam a exteriorizar ou a tornar explícito o que na origem estava incluído em uma perfeição interior e implícita; São Paulo não tinha necessidade nem do tomismo, nem das catedrais, pois todas as profundezas e todos os esplendores se encontravam nele mesmo e, ao redor dele, na santidade da comunidade primitiva. E isto, longe de dar razão aos iconoclastas de todo gênero, vai perfeitamente contra eles: as épocas mais ou menos tardias - e a Idade Média foi uma delas - têm necessidade de uma forma imperiosa de exteriorizações e de desdobramentos, exatamente como a água de uma fonte, a fim de não se perder ao longo do curso, precisa de um canal feito pela natureza ou pela mão do homem; e assim como o canal não transforma a água e não se supõe que o faça - pois nenhuma água é melhor do que a água da fonte -, do mesmo modo as exteriorizações e desdobramentos do patrimônio espiritual existem não para alterar este último, mas para transmiti-lo de uma maneira tão integral e eficaz quanto possível.

Frithjof Schuon, O homem no universo.

sábado, 20 de março de 2021

O Segundo Imortal

ERA UMA VEZ UM HOMEM QUE VIVEU tanto quanto os outros homens vivem. Ele tinha uma esposa e três filhos e uma loja na Rua dos Pardais Felizes, onde vendia bolos, legumes e picles doces. Ele se levantava ao amanhecer e ia para a cama ao pôr do sol; comia arroz três vezes ao dia; fumava dois cachimbos de tabaco por hora;conversava sobre compra e venda com seus vizinhos; palitava os dentes depois de comer e fazia sua mulher coçar-lhe as costas no calor do meio-dia. Na primavera, observava a grama nova crescer por entre as pedras; no verão, levantava um olho para as nuvens preguiçosas; no outono, acompanhava as folhas que dançavam ao vento; e, no inverno, acordava para ver os rastros dos pássaros na neve. E em todas as estações, entre conversar, fumar e vender bolos, mastigava sementes de melancia e divertia-se trançando cordas de palha em torno dos dedos dos pés. Um dia, quando foi queimar incenso no Templo dos Amáveis Dragões, seu amigo sacerdote aproximou-se dele, dizendo:– Você está envelhecendo e seu filho mais velho tem idade para cuidar de sua loja. Não seria apropriado para um homem como você passar o resto de seus dias em atividades vazias, pois você irá para o túmulo tão insignificantemente quanto lixo velho é jogado no rio.

– Tal é o destino do homem – respondeu o vendedor de bolos –, como posso reclamar? 

– Muitos são meros vegetais – disse o sacerdote. – Mas se você estiver disposto a se dar ao trabalho, poderá encontrar um lugar entre os imortais. 

– E quem – perguntou o vendedor de bolos –, são os Imortais? 

– São aqueles que não dependem do seu próprio poder para se manterem vivos. O homem é uma pequena criatura cuja vida é como um floco de neve. Mas o vento sopra para sempre; o sol e a lua mantêm eternamente seus cursos e os rios fluem desde o início dos tempos. Os Imortais são aqueles que aprendem os segredos dessas coisas; em vez de depender de seus próprios recursos, eles se permitem ser mantidos e orientados por aquilo que mantém e orienta o vento, o sol, a lua e os rios. 

– Mas como alguém pode se tornar um Imortal? 

 – Você terá que encontrar um Imortal para lhe ensinar – disse o sacerdote. 

– Eu não sou sábio o suficiente.  

– Bem – disse o vendedor de bolos – Eu preciso encontrar um. Mas há tantas pessoas no mundo, e como se pode reconhecer um Imortal? 

 – Isso não deve ser difícil – respondeu o sacerdote. – Dizem que a respiração deles é operada pelo vento; que o sol lhes dá a luz do olho direito e a lua o do olho esquerdo; que seu grito é auxiliado pelo trovão, seus sussurros pelas ondas murmurantes e suas risadas pelos riachos da montanha. A terra, diz-se, mantém sua carne, enquanto seus ossos e fluidos vitais são supridos pelas rochas e pelas chuvas. Seus pensamentos e humores são dirigidos pelo ir e vir das estações e dos elementos, e por terem tamanhas forças comandando todas as suas funções, dizem que estão livres de quaisquer das limitações comuns e são mais poderosos até do que os deuses.  

– Um ser tão estranho – observou o vendedor de bolos –, deve ser fácil de reconhecer. 

Imediatamente voltou para casa, colocou seus assuntos em ordem, instruindo seu filho mais velho quanto aos cuidados da loja e na mesma noite deixou a cidade em sua jornada em busca de um Imortal. Depois de muitas semanas na estrada, chegou a uma cabana habitada por um ancião de aspecto severo que parecia ter pelo menos duzentos anos de idade. Sua barba branca roçava aparte superior de seus sapatos e o topo de sua cabeça brilhava como os cotovelos ensebados de um casaco velho. Percebendo sua aparência venerável, e também os muitos volumes dos clássicos que o cercavam, o vendedor de bolos imediatamente se aproximou dele e implorou por instrução, pensando que certamente aquele deveria ser um Imortal, pois era a pessoa mais velha que já vira.  

– Faz muito tempo – disse o venerável –, desde que meu conselho foi solicitado a respeito de qualquer coisa, pois esta é uma época dissoluta, e o domínio da vida não é compreendido por aqueles que falham em observar os quarenta e oito preceitos e falham em evitar as noventa e uma indiscrições. Sente-se e eu o instruirei nas palavras dos antigos sábios. 

Então, ele começou a ler os clássicos, e o vendedor de bolos sentou -se e ouviu até o sol se pôr. E no dia seguinte leu ainda mais, e novamente no dia seguinte e no seguinte e no próximo, e assim por diante, até que o vendedor de bolos quase perdeu a noção do tempo. E ele foi instruído e aprendeu a se disciplinar segundo os oito atos virtuosos, os vinte e nove pensamentos louváveis, as cento e oito observâncias cerimoniais, os quarenta e dois traços de caráter superior, os trinta e sete atos de piedade filial e as quatrocentas e três propiciações de espíritos hostis. E durante todo esse tempo, o vendedor de bolos cresceu em retidão e conduta elevada, e inclinava-se a acreditar que estava no caminho da imortalidade. Mas, um dia, lembrou-se subitamente de que já fazia vinte anos que estava com o venerável erudito; os dias de sua vida estavam ficando mais curtos e, no entanto, não sabia nada dos segredos do sol, da lua, dos rios, do vento e dos elementos. Com isso, encheu-se de agitação e, à noite, voltou à estrada novamente.Depois de algumas semanas vagando pelas montanhas,encontrou uma caverna onde um estranho se sentava na entrada. Seus membros eram como o tronco de um pinheiro retorcido, os cabelos como rolos de fumaça flutuando no vento e os olhos fixos e ferozes como os de uma cobra. Devidamente impressionado, o vendedor de bolos novamente implorou por instrução.

 – Os Imortais – disse-lhe aquela pessoa –, têm o vento como fôlego e, para aprender isso, você deve cultivar a arte dos Pulmões Expansivos. Mas isso não pode ser aprendido por quem mastiga sementes de melancia, fuma dois cachimbos por hora e faz três refeições por dia. Para ter o vento como respiração, você deve comer apenas um grão de arroz por dia e beber um copo de água.Você deve limpar a fumaça da sua traqueia e aprender a respirar não mais do que duas vezes por dia. Só então seus pulmões serão capazes de conter o vento.  

Então, o vendedor de bolos sentou-se na entrada da caverna,comeu apenas um grão de arroz e bebeu apenas um copo de água por dia. E sob as instruções do sábio ele aprendeu a diminuir cada vez mais a velocidade de sua respiração até que pensou que seus olhos saltariam das órbitas e seus tímpanos perturbariam todos os pássaros da floresta com sua explosão. Mas por muitos anos ele praticou até que de fato respirava duas vezes por dia e, ao final desse tempo, constatou que seu corpo era como um esqueleto coberto de pele como as teias de aranhas cobrem os galhos de um arbusto e demonstrando uma conduta extremamente desregrada ele fugiu da caverna. Por muitos meses, procurou por um instrutor, mas, não encontrando nenhum, começou a se perguntar se por acaso não havia perseverado o bastante com seu mestre. Então, começou a voltar para as montanhas. No caminho, encontrou um comerciante itinerante que carregava uma vara sobre o ombro, à qual estava preso uma trouxa contendo uma variedade de panelas, contas, pentes, bonecas, utensílios de cozinha, materiais de escrita,sementes, tesouras e incenso. Por um tempo, seguiram na companhia um do outro, conversando sobre assuntos triviais, como o estado das plantações, as melhores maneiras de afastar pulgas,os prazeres da chuva suave e os vários tipos de carvão úteis para fazer fogueiras. Finalmente, o vendedor disse ao comerciante que desejava encontrar um Imortal que pudesse instruí-lo e perguntou se ele conhecia alguma dessas pessoas.

– Mastigue umas sementes de melancia – disse o comerciante,oferecendo-lhe um punhado. 

 – Na verdade, sinto não poder comer sementes de melancia lamentou o vendedor de bolos –, porque, se eu mastigá-las, perderei a minha capacidade de Pulmões Expansivos. O comerciante deu de ombros e por um tempo eles continuaram andando em silêncio, quebrado apenas pelo estouro de sementes de melancia entre os dentes do comerciante, um som que enchia o vendedor de bolos com uma variedade de emoções. Por um lado, ele começou a sentir uma imensa vontade de quebrar sua disciplina e, mais uma vez, sentir aquele eminentemente satisfatório estouro de sementes entre os dentes; por outro, sentia que deveria persistirem sua busca e novamente perguntar ao comerciante sobre os Imortais. Quem sabe, ele pensou, o comerciante nunca tivesse ouvido falar de Imortais, mas podia ser que ele reconhecesse tais seres se soubesse como eles eram.

 – Eu estava pensando – disse o vendedor de bolos –, se em suas andanças você se encontrou com alguém de aspecto estranho e poderoso, cuja respiração é operada pelo vento, cujos olhos direito e esquerdo recebem luz do sol e da lua, respectivamente, cujo grito é auxiliado pelo trovão, seu sussurro pelas as ondas murmurantes e as risadas pelos riachos da montanha; cuja carne é mantida pela terra, os ossos e fluidos vitais fornecidos pelas rochas e pelas chuvas, e cujos pensamentos e humores são dirigidos pelo ir e vir das estações e dos elementos...

 – Oh, sim – respondeu o comerciante –, eu vi muitos desses seres. Ora, acredito que dois deles estão caminhando ao longo desta estrada. 

– O quê! – Exclamou o vendedor de bolos. – Nesta estrada aqui? Vamos nos apressar para que possamos alcançá-los! 

E assim aumentaram o ritmo e, quando a noite caiu, não pararam para descansar, pois o vendedor de bolos persuadiu o comerciante de que seria uma boa vantagem para eles ganharem uma noite de viagem. Ao amanhecer, encontraram-se no topo de uma colina de onde podiam ver a estrada à frente por muitos quilômetros, mas, ao olharem para ela, não avistaram ninguém em lugar nenhum. 

– Pode ser – disse o vendedor de bolos – que nós os tenhamos ultrapassado durante a noite. 

Olharam para trás, e novamente uma vista de muitos quilômetros mostrava uma estrada vazia. Com isso, o vendedor de bolos ficou muito triste.

 – Eles devem ter pegado um atalho pelas montanhas – disse ele –, porque parece que somos as únicas pessoas nesta estrada.

 – Oh – disse o comerciante –, eu esqueci de lhe dizer. Quando eles andam em pares, um deles é sempre invisível. Você está procurando por dois homens viajando juntos. Vamos olhar de novo.

 Mais uma vez o vendedor de bolos olhou para um lado e outro da estrada, mas não viu nenhum outro homem além do seu companheiro, o comerciante. 

– Não – suspirou o vendedor de bolos –, nós os perdemos. Não vejo nem dois nem um.

– Você tem certeza? – respondeu o comerciante. 

– Eu realmente acredito que posso ver um. Olhe novamente.

 – Não – disse o vendedor de bolos –, não vejo nenhum homem na estrada, exceto você mesmo.  

Com isso, o comerciante começou a rir e, ao rir, pareceu ao vendedor de bolos que sua risada era como o som de um riacho da montanha. 

– Você! – exclamou ele. – Você é um Imortal? Mas você parece um homem comum!

 – De fato – riu o comerciante –, devo confessar que sim. Sabe? Eu preciso andar disfarçado, pois do contrário seria seguido porto do lugar, o que seria muito inconveniente.

– Mas o seu companheiro invisível – perguntou o vendedor de bolos –, também está aqui? Ele parece um Imortal? Descreva-o para mim.

 – Certamente – respondeu o comerciante. – Sua respiração é operada pelo vento, mas você não percebe isso; a luz de seus olhos direito e esquerdo é dada pelo sol e pela lua, mas você não a vê;seu grito é do trovão, seu sussurro das ondas e seu riso dos riachos da montanha, mas você não o ouve; sua carne é mantida pela terra e seus ossos e fluidos vitais pelas rochas e chuvas, mas você não entende isso; seus pensamentos e humores são dirigidos pelo ir e vir das estações e dos elementos, mas você não está ciente disso.Ele não confia em seus próprios recursos; ele se permite ser mantido e orientado por aquilo que mantém e orienta o vento, o sol,a lua e os rios, mas você não o reconhece.

– Maravilhoso, de fato, deve ser contemplá-lo! – Exclamou o vendedor de bolos. – Por favor, peça a ele para se tornar visível para que eu possa entender seus segredos. 

– É melhor você mesmo pedir – respondeu o comerciante. – Só você tem o poder de torná-lo visível. Há uma mágica pela qual você pode fazê-lo aparecer.

 – Conte-me sobre isso. 

– A mágica – respondeu o comerciante –, é assim: na primavera, observar a grama nova crescendo por entre as pedras; no verão, levantar um olho para as nuvens preguiçosas; no outono, acompanhar as folhas que dançam ao vento; no inverno, acordar para ver os rastros dos pássaros na neve. Levantar de madrugada e ir dormir ao pôr do sol; comer arroz três vezes ao dia; falar de compra e venda com os vizinhos; mastigar sementes de melancia e trançar cordas de palha ao redor dos dedos dos pés.

E, com isso, o vendedor de bolos descobriu o segundo Imortal. 

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Alan Watts, Torne-se o que você é.