sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Encontro de Shasta e Aslam


A estrada no caso seguia entre as matas mais espessas, sempre mais frias. Ventos gelados continuavam a impelir blocos de névoa sobre Shasta sem parar. Não estando acostumado aos lugares montanhosos, ignorava que estava a uma grande altitude, talvez já no alto da picada.

"Devo ser o cara mais desgraçado de todo o mundo", pensou. "Tudo dá certo com os outros, comigo nunca. Os nobres e as damas de Nárnia conseguiram fugir de Tashbaan; eu fiquei lá. Aravis, Bri e Huin estão no bem-bom com o velho eremita; fui o único a ter de sair. O rei Luna e sua gente estão a salvo no castelo, com os protões bem fechados, mas eu fiquei de fora."

Teve tanta pena de si mesmo que as lágrimas começaram a deslizar por seu rosto.

Um susto interrompeu os seus tristes pensamentos. Alguém ou alguma coisa caminhava a seu lado. Nas trevas não podia ver nada. E a coisa (ou pessoa) ia tão silenciosamente que ele mal podia ouvir suas pisadas. Ouvia, sim, uma respiração: o invisível companheiro de fato respirava com vontade; devia ser uma criatura enorme. Foi um grande choque.

Relampejou na sua cabeça uma lembrança: ouvira dizer que existiam gigantes nos países do Norte. Mordeu os lábios, apavorado. Mas, agora que tinha um motivo real para chorar, parou de chorar.

A coisa (se é que não era uma pessoa) ia tão silenciosa que talvez fosse mera imaginação. Já estava certo disso, quando ouviu ao seu lado um suspiro grande e profundo. Não era imaginação! O fato é que sentiu o hálito quente desse longo suspiro na mão direita.

Se o cavalo fosse mesmo bom - ou se ele soubesse como fazer o cavalo tornar-se bom - teria arriscado tudo numa corrida desabalada. Como isso não era possível, seguiu a passo, com o companheiro invisível caminhando e respirando a seu lado. Acabou não aguentando mais:

- Quem é você? - murmurou baixinho.

- Alguém que esperava por sua voz - respondeu a coisa. O tom não era alto, mas amplo e profundo.

- Você é... um gigante?

- Pode me chamar de gigante - disse a grande voz. - Mas não me pareço com as criaturas que você chama de gigantes.

- Não consigo vê-lo - falou Shasta, depois de muito tentar. Uma coisa terrível lhe passou pela cabeça. Com a voz quase trêmula de choro, perguntou:

- Você não é... não é uma coisa morta... é? Vá embora, por favor. Nunca lhe fiz mal. Ó, sou o sujeito mais desgraçado do mundo!

Sentiu novamente o hálito quente da coisa no rosto e na mão.

- Morto não respira assim. Pode me contar as suas tristezas, rapaz.

O hálito deu a Shasta um pouco mais de confiança. Contou então que jamais conhecera pai e mãe, que fora criado por um pescador muito severo. Contou sobre como fugira, sobre os leões que os perseguiram, os perigos em Tashbaan, a noite entre os túmulos, as feras que uivavam no deserto, o calor e a sede durante a caminhada, e o outro leão que surgiu quando estavam quase chegando, Aravis ferida... Contou, por fim, que estava com fome, pois não comia nada havia muito tempo.

- Não acho que seja um desgraçado - disse a grande voz.

- Mas não foi falta de sorte ter encontrado tantos leões?

- Só há um leão - respondeu a voz.

- Não estou entendendo nada. Havia pelo menos dois naquela noite...

- Só há um leão, mas tem o pé ligeiro.

- Como sabe disso?

- Eu sou o leão.

Shasta escancarou a boca e não disse nada. A voz continuou:

- Fui eu o leão que o forçou a encontrar-se com Aravis. Fui eu o gato que o consolou na casa dos mortos. Fui eu o leão que espantou os chacais para que você dormisse. Fui eu o leão que assustou os cavalos a fim de que chegassem a tempo de avisar o rei Luna. E fui eu o leão que empurrou para a praia a canoa em que você dormia, uma criança quase morta, para que um homem, acordado à meia noite, o acolhesse.

- Então foi você que machucou Aravis?

- Fui eu.

- Mas por quê?!

- Filho! Estou contando a sua história, não a dela. A cada um só conto a história que lhe pertence.

- Quem é você?

- Eu mesmo - respondeu a voz, com uma entonação tão profunda que a terra estremeceu. E de novo: - Eu mesmo - com um murmúrio tão suave que mal se podia perceber, e parecia, no entanto, que esse murmúrio agitava toda a folhagem à volta.

Shasta já não temia que a voz pertencesse a alguma coisa que o devorasse; nem temia que fosse a voz de um fantasma. Uma coisa nova aconteceu, um tremor que lhe deu certa alegria.

A névoa passou do pardo para cinza e do cinza para branco. Devia ter começado pouco antes, enquanto ele estava absorvido conversando com a coisa. A brancura ao redor já começava a fulgir. Já enxergava bastante bem a crina e as orelhas do cavalo. Uma luz dourada surgiu à esquerda, e Shasta pensou que fosse o sol.

Caminhando a seu lado, maior do que o cavalo, estava um leão. O cavalo não parecia ter medo, ou talvez não o visse. Era dele que vinha a luz dourada. Ninguém jamais viu algo tão belo e terrível.

Felizmente o menino vivera toda a sua vida no Sul, e não havia escutado os casos, cochichados em Tashbaan, sobre um tétrico demônio de Nárnia que costumava aparecer na forma de leão. E, naturalmente, também tudo ignorava sobre as verdadeiras histórias de Aslam, o Grande Leão, o filho do Imperador-dos-Mares, o Rei dos Grandes Reis de Nárnia. Mas, depois de espiar mais uma vez o Leão, pulou do cavalo. Não conseguia dizer nada, mas também não queria dizer nada, e sabia que nada precisava dizer.

O Grande Rei encaminhou-se para ele. A juba e um perfume estranho e solene, que nela pairava, cercaram o menino. O Leão tocou a fronte de Shasta com a língua. Os olhos de ambos encontraram-se. Depois, instantaneamente, a brancura da névoa misturou-se com o brilho ardente do Leão, num redemoinho de glória, e os dois sumiram. Shasta se viu só, com o cavalo, na relva de uma colina, sob um céu azul. Todas as aves do mundo cantavam.

As Crônicas de Nárnia, O Cavalo e Seu Menino.