Sto Agostinho, nas suas especulações filosóficas, chegou à constatação de que ele não era a causa de si mesmo. Logo, devia sua existência a um outro. Esta assertiva pode parecer banal, mas a modernidade se caracteriza quase toda por negar esta verdade evidente.
As pessoas da antiguidade e do medievo se distinguem pela sobriedade e o bom senso de se saberem contingentes. Esta consciência lhes dá uma abertura para fora, para Aquilo que as causou e, diante do fato da morte, para aquilo que há para além deste vértice da vida natural. O homem se via como um ser entre duas eternidades e isto, pelo senso das proporções, lhe mantinha a modéstia e o respeito diante da dimensão do mistério.
A modernidade, no entanto, cortou as duas eternidades e rechaçou as investigações metafísicas, como se fossem qualquer coisa de misticismo, no mal sentido. Este tipo de filosofia de meia tigela produziu teóricos que afirmam bobagens como dizer que as coisas só existem porque o sujeito as percebe, etc. Não mais o homem é colocado por um outro num mundo que já existia, mas, agora, ele existe primeiro e cria o mundo ao percebê-lo. Não é preciso muito esforço para reconhecer que isto é só uma faceta do sonho adâmico de querer ser como Deus.
Pois bem. Uma pessoa que siga um tal tipo de crença terminará por fazer da sua vida uma contínua falsidade. Primeiramente, porque terá uma visão totalmente equivocada da própria existência; depois, porque não aceitaria uma vida que lhe foi dada por Outro, reclamando para si autonomia absoluta. Temos, então, um sujeito que está impossibilitado de realizar-se porque desconheceu o seu chamado individualíssimo e quis, ao invés disto, seguir os próprios devaneios.
A constatação agostiniana de que o homem não é causa de si mesmo é importantíssima. S. Francisco de Assis, um santo que nunca teve aulas de Filosofia, partilhava, no entanto, da mesma sabedoria e a expressou e completou ao dizer que o homem é o que é diante de Deus, e nada mais*. Na verdade, para saber disso, não é preciso estudar filosofia, mas tão somente ter bom senso. Em S. Francisco, porém, esta percepção é agudíssima e significa: não importa o que os homens façam nem as suas conquistas e realizações, se estas conquistas e realizações somente o são segundo seus critérios pessoais. Existem critérios reais pelos quais uma coisa se torna conquista e realização ou, ao contrário, se converte em mero fracasso floreado, em excremento enfeitado de lacinho e borrifado com lavanda.
Se alguém chega a ser aclamado como gênio mas, diante de Deus, ele não passa de um idiota, a verdade é que ele é um idiota. Eis a imbatível e irrefutável filosofia franciscana.
Com base nisto, o que deveríamos fazer? Deveríamos harmonizar os nossos critérios com os de Deus. O que Deus entende por bem, é o bem. O que Deus entende por inútil, é inútil. A conversão passa por aí: é uma adaptação de si mesmo a Deus, e não uma adaptação de Deus a si, como têm tentando fazer alguns, com resultado risível. É justamente por isto que a vida devota é por vezes referida como um processo de morte pelo qual obtemos a vida. Quem se apega à própria vida, isto é, aos seus conceitos pessoais, ao seu modo único de ver, etc., vai terminar não encontrando a vida de fato. Quem, ao contrário, aceita perder-se e desapega-se de si mesmo, encontrará o Caminho, a Verdade e a Vida, que o ensinará e o fará ver.
A nossa época é particularmente imbecil porque é a época em que cegos se vangloriam da própria cegueira e da própria escuridão, desprezando a luz e a visão. Tudo isto, contudo, não é mais que soberba e revolta. E as consequências desta infantilidade são seríssimas e podem se estender pela eternidade.
De tudo isto, podemos concluir que o modo como Deus nos vê é o modo como nós somos. Não é aviltar a nossa dignidade reconhecermos que não somos deuses. Bem pelo contrário. A nossa grandeza está em justamente aceitar e amar a nossa condição de criaturas d'Ele, elevadas à condição de Filhos. Por ora, nós não podemos ter a dimensão exata do que isto significa, por mais que tentemos. Mas é algo grandioso...
Ordenemos as nossas vidas, os nossos valores, os nossos conceitos com o Cristo e, desse modo, passaremos a viver de substância, e não mais da vã fumaça da nossa vaidade.
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* A frase franciscana completa a de Sto Agostinho porque, enquanto a de Agostinho se restringe estritamente ao início, a de S. Francisco faz referência a toda a vida, isto é, à condição da nossa total contingência e dependência de Deus que nunca cessa. Deus não apenas cria, mas sustenta na existência e tudo quanto existe, só existe por meio d'Ele. Esta existência diz respeito não somente a entes materiais, mas também a valores, como a bondade, a virtude, a honra, etc. Jesus o expressa ao dizer: "Só Deus é bom", isto é, não há bondade alternativa. S. Paulo, por sua vez, escreve: "n'Ele existimos, nos movemos e somos."
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