domingo, 1 de outubro de 2017

O deserto, o vazio, do "tu deves" ao "tu podes".


Jean-Yves Leloup

"YHWH disse a Abraão: 'Vai para ti mesmo, deixa teu país, teus parentes, a casa de teu pai, vai para o lugar que eu te indicarei.'" (Gn 12,1)

Ir para o deserto é, inicialmente, partir em direção a si mesmo. É para isso que somos convidados. Para conhecer-se verdadeiramente a si mesmo, trata-se de deixar um certo número de memórias com as quais confundimos nossa identidade. Deixar o conhecido, o reconhecido que cremos ser, pelo desconhecido, o desprezado que somos. Inútil aqui detalhar os múltiplos apegos ou referências, todos legítimos, à casa, ao pai, à mãe, que nos evitam o face a face com o nosso nada. Fílon de Alexandria diz que deixar a casa de seu pai é deixar a linguagem, quer dizer, as referências que nos estruturam. Quando a consciência não tem mais uma palavra, nem uma imagem, nem um conceito para dizer a si mesmo, ela entra em um espaço infinito que simboliza bem o espaço sem limites do deserto.

Mas esta marcha através do silêncio, em direção ao infinito e ao sem-limite de si mesmo, não é tentativa de aniquilamento. Ela faz as pazes com o que o homem tem de eterno, este eterno que está nele mesmo e que as ocupações e preocupações do tempo lhe escondem.
Para Abraão, este eterno é um Outro, uma Alteridade que o fundamenta. "Conhecer-se a si mesmo é descobrir-se conhecido", dirá mais tarde o Evangelho de Tomé. Na imensidão e imobilidade do deserto, sabemos que não nos criamos a nós mesmos, abemos que a menor das nossas respirações vem de outro lugar.

Conhecer-se a si mesmo é conhecer o Vivente que nos concee ser o que somos e conhecer que este Vivente está sempre pronto a nos retirar, como a nos oferecer, o sopro de nossas narinas.

Há pretensões e autossuficiências que não resistem a um real quarto de hora de meditação no deserto.

Abraão e seus patriarcas gostavam, ao cair da noite, de sentar-se diretamente na terra nua, olhando as estrelas, bendizendo seu cansaço, sorrindo de seus desejos irrisórios. Acontecia-lhes de estar ali, terrivelmente ali! A ponto de não fazerem senão um com "aquele que está ali, presente", Ya-Hou, Oh! Ele! o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, Presença ardente e silenciosa. Presença do Ser, Presença do Outro, que nos apaga e fundamenta.

Pode-se ir ao deserto para conhecer-se a si mesmo ou para encontrar o Outro, que nos fundamenta. Pode-se ir lá também para fugir, fugir do mundo, fugir da injustiça. Pode-se ir lá porque uma pergunta nos atormenta e não conheceremos o repouso antes de termos recebido a resposta.

A primeira vez que Moisés foi ao deserto foi para fugir, fugir do Estado totalitário que ele acabara de descobrir e que mantinha seus irmãos na escravidão. À violência ele tinha respondido pela violência, matando um guarda que maltratava um hebreu sem defesa... A história de Moisés nos lembra a de um outro príncipe, também educado na corte, ao abrigo de todos os sofrimentos e que um dia descobriu a dor e a morte: o Príncipe Sidarta Gautama. Ele também, depois desse encontro com o sofrimento, partiu para o deserto, com esta pergunta que é a sua, que foi a de Moisés e que é, sempre, a nossa: Por que o sofrimento, por que o mal, por que a injustiça?

O que é preciso fazer para sair disso, para ser libertado do sofrimento, do mal, da injustiça?

O que Moisés descobre no deserto é que, antes de se colocar a questão do mal, é preciso colocar-se a questão da existência. Antes de se perguntar por que há sofrimento no mundo, é preciso perguntar por que há um mundo: "Por que, em vez de nada, há alguma coisa?"

A experiência de Moisés vai se juntar àquela de Abraão. No infinito do deserto, ele vai descobrir a vaidade e a fragilidade do universo. O que é o homem, o que é o mundo? "Uma gota de orvalho na borda de um cântaro"< dirá mais tarde o Profeta Isaías.

Como a gota de orvalho ao sol, ao mesmo tempo em que seu eu, desaparecem as perguntas de Moisés. Ele tornou-se o mais humilde dos homens, ele fez-se húmus, Adamah, quer dizer, "terroso", "argiloso", terra nua sob o céu vertical, ele se ocupa de suas ovelhas, os negócios do Egito não têm nada a ver com ele.

Mas eis que no deserto, se não há nada, há, pelo menos, sarças, sarças espinhosas.

Do fundo dessa vacuidade nasce um murmúrio que bem poderia ser de compaixão. Em vez do nada há alguma coisa.

Como fazer para que essa alguma coisa não sofra mais ou sofra menos debaixo do sol? Pergunta espinhosa, ardente...

Ir até o fim de uma pergunta fundamental, essencial, é uma forma de travessia do deserto. Moisés foi até o fim da sua, saiu queimado, mas não consumido. Uma voz se fez escutar. O Ser não é indiferente à miséria dos homens, o mal não é uma fatalidade, ele é o estímulo para que se manifestem as faculdades cocriadoras do homem.

"YHWH diz: 'Eu vi, eu vi a miséria de meu povo que está no Egito. Escutei o clamor por causa de seus opressores [...] Agora vai, Eu te envio junto ao faraó para fazer sair o meu povo do Egito'" (Ex 3,7.10).

Mas, no deserto, Moisés esqueceu a linguagem, sua palavra tornou-se curta e hesitante. O desejo de ordenar e de conduzir deixou-o, o convívio com seus abismos levou-o a apagar-se.

"Quem sou eu para ir encontrar o faraó e para fazer sair do Egito os filhos de Israel?" (Ex 3,11). Eu não sei falar... Envia quem quiseres!

"Quem sou eu?" é uma boa pergunta a colocar-se no deserto. A resposta, após alguns dias de sede, nunca se faz esperar: "Nada!"

"Eu não sou nada." Moisés viveu mais de uma vez essa resposta, mas agora ele descobre que no coração desse nada, um nada espinhoso, vive uma força, uma Presença, um "Eu estou contigo". E é este um dos grandes presentes do deserto: descobrir que nunca se está menos só do que quando se está só. Além do eu há um puro "Eu Sou". Onde cedem nossas forças, revela-se uma nova energia. Onde pára nossa compreensão, nasce uma outra Consciência.

Descobrir que há um Eu maior que eu, mais amoroso, mais inteligente que eu, é o que nos dá a graça, como a Moisés, de voltar à cidade e convidar os amigos para irem ao deserto...

Mas Moisés era ingênuo? Pensava ele que três dias seriam suficientes ao povo para fazer uma experiência como a sua própria? Foi isso, entretanto, que ele pediu ao faraó: "Três dias de caminhada no deserto, para lá servir a Deus" (Ex 5,3)

André Neher lembra: "No projeto primitivo, o deserto não deveria ser aquilo, não seria um itinerário, mas o lugar de um momento místico".

É verdade que é suficiente um instante para "abrir mão", para renunciar às nossas ilusões e descobrir "Aquele que É", quando não somos mais nada...

Um instante, três dias, não serão suficientes para os hebreus. Eles deverão errar por quarenta anos no deserto.

Quarenta - bela cifra para simbolizar as provações, a maturidade, que virão talvez ao final de nossas identificações, de nossas representações, para que possamos tocar, enfim, a pedra preciosa, a terra prometida, o Incriado que vela no fundo do coração!

Quando de sua primeira ida ao deserto, Moisés estava sozinho com sua pergunta, só com a Presença que o mantinha de pé e despertava nele a compaixão por seus irmãos. De agora em diante, ele caminha com todo um povo, um povo de dura cerviz, que prefere o sofrimento à vacuidade, a escravidão aos grandes espaços do deserto, as cebolas e a coalhada ao maná insípido.

Ele os levava ao deserto para que se calassem e para que no silêncio eles escutassem uma Palavra que conta. E eis que eles conversam, repisam suas más lembranças, suas memórias de guerras...

Moisés tinha sonhado com um povo que não teria rei, chefe, faraó. Só "Aquele que É quem É" seria seu senhor. Mas eis que no deserto, como em qualquer outro lugar, à tirania sucede a anarquia, e Moisés está ainda sob o fogo de uma nova interrogação: haveria uma lei, uma ordem a dar para esse povo, "um logos para que o caos se transforme em cosmos?" Regras simples que cada um pudesse seguir e, dessa adesão de cada um à lei, nascesse a harmonia para todos?

Entre a anarquia e a tirania não haveria um lugar para a consciência? Consciência individual e coletiva ao mesmo tempo...? Moisés era um sonhador? A verdade é que isso foi para ele um novo deserto e o desejo nascido de um mais profundo silêncio: uma Palavra para todos. Ele se recusava a alegrar-se sozinho; "todos ou nada", dizia ele a YHWH... Foi assim que a Torá veio se inscrever, em relâmpagos, na névoa obscura de sua alma.

Mais tarde, porém, essas palavras de aliança, a harmonização do comportamento humano ao princípio que ele manifesta, tornaram-se palavras de pedra. Eles serviram antes para lapidar do que para libertar.

A lei que libertava da tirania tornou-se uma nova tirania, mais sutil ainda porque se introduzia nas dobras das subjetividades.

A alegre diferença de não se deixar conduzir por bezerros transformou-se em surda culpa de não ser como os outros.

Ousaremos dizer que o ensinamento transmitido por Moisés e que assim resumimos: "Obedece e serás feliz", não funciona mais hoje. "Tu deves", "É preciso", são imperativos que não se podem mais escutar. Muita tirania e totalitarismo derivaram do uso e abuso desses imperativos.

Alguns dirão que a lei de Moisés caducou porque foi substituída pela lei de Cristo que é uma lei de amor. Em vez de dizer "Obedece e serás feliz", é preferível dizer: "Ama e faze o que quiseres" (Santo Agostinho". Mas essa palavra também foi usada. Quantos se serviram dela para justificar seus egoísmos, quanta hipocrisia e culpa geradas por uma tal palavra? Como se se pudesse amar por imposição!

O Deserto do Sinai teria hoje uma outra palavra a nos dar, uma lei, uma ordem que viria inscrever-se dentro de nós e cuja prática restabeleceria, no momento, um pouco de ordem no indivíduo e em seguida, por via de consequência, na sociedade?

Na quarta-feira, 15 de fevereiro de 1989, uma palavra simples, quase banal (cada época não tem a palavra que merece?), uma palavra a verificar ou a encarnar, nos foi ofertada: "Sê consciente e faze o que puderes". Ela completa e integra muito bem as duas palavras precedentes.

Obedecer à lei sem consciência é renunciar a ser livre, e a prática do amor sem consciência não é senão a ruína da alma. 

Ser consciente - instante após instante - e fazer o que se pode (não o que se quer). Há aí uma espécie de realismo sadio, próprio para nos libertar de nossas esquizofrenias e paranoias contemporâneas.

"Sê consciente e faze o que puderes" - isso não é mais fácil nem menos exigente que: "Obedece e serás feliz" ou "Ama e faze o que quiseres". As palavras ouvidas por Moisés no sopro do Sinai não se apagaram, elas são ditas de outra maneira. "Tu deves" se transforma em "Tu podes".

Se quiseres, podes não ter outro deus que Deus, não ser escravo de nenhuma idéia, ideologia, imagem ou ilusão. Não há outra realidade que a Realidade. Podes preferir o Real indestrutível ao orvalho de teus sonhos.
  • Tu podes honrar teu pai e tua mãe, eles não são a fonte de tua vida, mas a vida foi doada a ti através deles.
  • Tu podes não matar, preferir o perdão ao crime, ser maior que a tua cólera ou tua honra.
  • Tu podes não roubar, ter mais prazer em ser honesto que em te enriquecer de uma maneira injusta.
  • Tu podes não mentir, ser alegre e sem medo diante da verdade.
  • Tu podes ser livre de todas as cobiças, desejar o que tu tens, amar o que tu és.
  • Em uma palavra, tu és capaz de amor, tu és capaz de consciência.
Seria preciso agora desenvolver os meios e os métodos pelos quais se pode exercer essa consciência, mas o cotidiano permanece como o maior exercício, tanto no domínio da consciência como no domínio do amor. Não há um instante a perder: cada instante é a ocasião de uma nova aliança; cada alegria como cada provação são ocasiões de uma maior consciência.

Quando Moisés desce da montanha, ele escuta gritos e danças, ruídos de festa em honra a um bezerro.

Pode-se compreender sua cólera ou seu despeito, sua vontade de reduzir a migalhas as belas palavras que acabam de ser inscritas em sua carne. O que vieram procurar no deserto esses homens e essas mulheres? Nem lei, nem amor, nem consciência. Não! Vieram procurar a satisfação e a excitação... do mundo!

Um bezerro, quer dizer, o visível, o palpável, o mensurável.

O Ser do qual Moisés fala não é visível, não é palpável, é sem medida, a alegria para ele é de sentir sua Presença "no silêncio de um sopro sutil" (veja Elias). A festa para ele é de manter-se imóvel sob o céu estrelado. Uma festa simples demais talvez, uma alegria sem objeto, alegria pura que nenhuma ausência pode embaçar.

É essa alegria que, mais tarde, conhecerão as monhas de Sainte-Catherine e das Kellia (celas) entre o Cairo e Alexandria.

Porque se o deserto não é um jardim, mas um cadinho onde nossa sarça de humanidade passa pelo fogo para se despertar ao Ser essencial, se ele é o lugar das revoltas e das saudades, se lá se lamentam seus hábitos, se lá se tem medo do desconhecido, se ele aguça nossa fome de conhecimento e de ternura... o deserto é também um jardim para aquele que cava no instante, a cada passo, o seu poço... Ele conhecerá em seus lábios ressecados o gosto sempre inesperado da Água viva...

Jean-Yves Leloup. O absurdo e a graça. Petrópolis: Vozes, 2013. p.340-347.

sábado, 9 de setembro de 2017

O filósofo tradicional


"Henri Bergson diz que os sistemas filosóficos não são mais do que a intuição de um único instante, seguida de esforços de uma vida inteira no sentido de explicitá-la e desdobrá-la discursivamente. Poderíamos dizer que onde o filósofo abandona o ato intuitivo inicial para, mudando radicalmente de plano e de postura intelectual, dedicar-se à conversão discursiva do conteúdo aí captado, o buscador espiritual - que é o mesmo que dizer: o filósofo tradicional - procura, ao contrário, persistir no estado de evidência intuitiva, de modo não só a obter novas e sucessivas evidências, mas a viver num esteado de visão, claridade e compreensão ininterruptas.

Em outros termos, onde o filósofo moderno julga terminado o trabalho da intuição, e começando o trabalho da explicitação lógica, o espiritual vê apenas a primeira de uma série de fulgurações aurorais que deve terminar por converter a sua própria pessoa em luminosidade e transparência. A mudança de direção assinalada por Bergson, a ruptura do estado intuitivo e a passagem à busca da formulação lógica só se justificam, evidentemente, quando se decreta que a finalidade da filosofia é construir sistemas dedutivos ou explicitar a pura coerência lógica do discurso; mas esta coerência já está dada - ainda que em modo compacto e implícito - na intuição inaugural; resta apenas, por assim dizer, um 'esforço físico' de selecionar os materiais da linguagem e montá-los numa ordem decente. Se a filosofia é isto, não deve valer grande coisa.

Na perspectiva tradicional, ao contrário, a tarefa do filósofo não é constituir sistemas, seja lá do que for, nem a de elaborar tecnicamente a coerência de um discurso acadêmico, mas a de buscar a sabedoria; e se o homem que busca a sabedoria for obrigado a interromper sua marcha a cada passo, para explicitar cada nova intuição, certamente não vai chegar tão cedo ao termo da viagem. Por isto as obras dos espirituais limitam-se, às vezes, a notações abreviadas e simbólicas do conhecimento obtido.

Tais notações só são de grande proveito a quem refaça pessoalmente o trajeto percorrido por eles; são marcos no caminho; tentam guiar o caminhante, não reproduzir verbalmente a viagem para um observador estranho e distante. Claro, nada impede, em princípio, que um espiritual explicite dialeticamente boa parte do seu conhecimento, e neste caso seu trabalho será muito parecido, exteriormente, ao caso de um filósofo acadêmico; é o caso de Platão, de Plotino, etc. Somente que esse excurso pela exposição dialética não é um objetivo em si mesmo, como na filosofia acadêmica, porém uma ocupação mais ou menos secundária, e que só se justificará por um destes dois motivos: seja como atividade de ensino, motivada pela misericórdia, ou como prática disciplinar, no caso de que a arte dialética faça parte do corpo de técnicas de concentração e realização espiritual da linhagem espiritual em questão; era isto, aliás, o que ocorria na academia platônica."

Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos.