quarta-feira, 12 de março de 2014

Onipotência divina e liberdade humana


A maior coisa que cabe a alguém fazer por outro, muito maior do que um homem possa fazer por ele, é torná-lo livre. Mas para levar a cabo essa tarefa é necessária a onipotência. Parece estranho, pois a onipotência deveria constituir-nos em servos. Mas se, de repente, queremos entender a onipotência, perceberemos que contém em si mesma exatamente a determinação de poder retomar-se a si mesma na manifestação da onipotência, com o que, graças a isto, o criado pode, através da onipotência do outro, tornar-se autônomo. Daí que nenhum homem jamais pode tornar outro totalmente livre. Quem possui um poder, encontra-se vinculado por ele, e sempre estabelecerá uma relação falsa em relação àquele que quer tornar livre. Além disso, em toda a potência finita (dotes naturais e outras) existe um amor próprio também finito. Somente a onipotência pode recuperar-se enquanto se dá, e essa relação constitui exatamente a independência daquele que recebe.

Portanto, a onipotência de Deus é idêntica à Sua bondade. É próprio da bondade dar-se por completo mas, nesse caso, ao recuperar-se a si mesma de forma onipotente, torna autônomo aquele que recebe. Qualquer potência finita faz com que sejamos dependentes; apenas a onipotência pode tornar alguém autárquico, pode produzir do nada o que possui uma consistência em si, uma vez que a onipotência sempre se recupera a si mesma. A onipotência não permanece ligada a uma outra coisa pela relação, uma vez que não existe nada distinto com que se relacione; não, ela pode dar sem perder o mínimo de sua potência, e isso quer dizer que ela pode tornar alguém soberano.

Eis aqui o mistério pelo qual a onipotência não apenas é capaz de produzir o mais imponente de todas as coisas (totalidade do mundo visível), senão também o mais frágil (a saber, uma natureza autóctone em relação à onipotência). Portanto, a onipotência que com sua mão poderosa pode tratar tão duramente o mundo, é também capaz de mostrar-se tão benfazeja fazendo que a sua criatura goze de autonomia.

Só uma idéia miserável e mundana da dialética do poder pensa que este cresce na medida em que pode oprimir e tornar os outros vassalos. Não, nesse caso Sócrates o compreendeu melhor, ao afirmar que a arte do poder consiste em tornar os homens livres. Mas na relação homem a homem isso não é possível (ainda que seja necessário acentuar que isso seria o que haveria de maior), uma vez que é uma prerrogativa da onipotência.

Por isso, se o homem possuísse a mesma consistência autônoma perante Deus (como pura "matéria"), Deus não poderia fazê-lo livre. A criação do nada expressa também que a onipotência pode fazer-nos livres. Aquele a quem devo absolutamente tudo, enquanto conserva tudo em seu ser, me fez precisamente soberano. Se Deus, para criar os homens tivesse perdido algo de Seu poder, já não poderia fazer os homens independentes."

Kiekergaard Apud Tomás Melendo. Metafísica da realidade. São Paulo: Instituto brasileiro de filosofia e ciência "Raimundo Lúlio" (Ramon Llull), 2002. p.182-184.