quinta-feira, 26 de junho de 2014

Três modos de olhar


No nosso dia a dia, nas relações que tratamos com as pessoas, sempre as olhamos e, nesse olhar, captamos uma série de informações que fundamentarão o modo como agiremos. Por exemplo: se, numa conversa com um amigo, notamos que ele manifesta expresso desinteresse pelo que estamos a dizer, naturalmente nós cessaremos o assunto e isto nos servirá como bloqueio para futuras conversas. Esta pessoa não constará mais na nossa lista de amigos com quem tratar intimidades, etc. Todos nós fazemos isso. Contudo, sabemos que nem sempre é possível esgotar uma pessoa num primeiro olhar - na verdade, nunca o é -, o que demonstra que uma pessoa é algo complexo, que não se reduz à aparência, mas que possui diversas camadas. 

O nosso olhar, então, pode se direcionar a camadas diferentes, e isto por vezes é consequência do nosso nível de maturidade. Há, pelo menos, três camadas fundamentais.

A primeira é a puramente exterior. É aquela que percebemos ao topar com alguém pela primeira vez. Neste caso, de modo pré-racional, surge em nós um movimento de simpatia ou de antipatia. Por ser pré-racional, também costuma ser pré-volitivo, e, às vezes, semi-consciente. Estes movimentos pré-racionais, na verdade, são muito frequentes e estão subjacentes a várias das nossas ações. O que faz, por exemplo, com que terminemos um livro em específico e abandonemos outro pela metade? Não é somente o tema tratado. Por vezes, os dois livros possuem um assunto que nos interessa, mas um deles nos agrada mais. Este "agrado" sensível nos servirá de estímulo para continuar a leitura, enquanto que o outro, por mais que decidamos chegar ao fim, só o faremos à custa de mais esforço. E isto porque, a depender de uma série de fatores pré-racionais, o nosso ser dispõe-se ou não para uma atividade.

Estar fixado na camada puramente exterior é típico dos ingênuos. Ele reduz a pessoa ao que vê: confunde a sua interpretação subjetiva com a realidade mesma do outro. Assim, não consegue distinguir uma pessoa autêntica de um ator. A atenção está fixada no conteúdo das palavras e nos atos explícitos. Uma pessoa assim é facilmente enganada.

A segunda camada é a da pessoa que não fica no conteúdo do que é dito nem na superficialidade das ações, mas que como que adentra por trás dessas coisas. Ele já observa o tom de voz, a expressão facial, os olhares, e as possíveis intenções que motivaram os atos. Se, por um lado, podemos dizer que esta pessoa é mais astuta, pode se dar também o contrário: por causa deste hábito que a maioria de nós tem, não poucas injustiças são cometidas, pois é comum que, também aqui, confundamos a nossa interpretação pessoal, que por vezes não é mais que uma projeção, com a realidade mesma da outra pessoa. Assim, nem um santo poderia passar isento de acusações, pois, como uma pessoa geralmente toma por matéria prima da compreensão dos outros as suas experiências pessoais - sobretudo os seus interesses, medos e invejas - o santo seria tomado facilmente por hipócrita e falso, como alguém que pretende conquistar a simpatia das pessoas, já que isto é o que é comumente buscado pela maioria. Estas projeções impedem a contemplação correta, que é um ato eminentemente passivo e de respeito ao que é, e a substitui pela construção subjetiva da projeção. Este é sempre um risco, e é por isto que Jesus nos proibiu o julgamento de intenção, pois é pretender saber o que está no cerne dos atos alheios. Pronunciar-se sobre os atos é permitido; sobre o que os motiva, não. Ainda assim, é possível ter uma visão correta desta segunda camada, a depender da maturidade pessoal. Vários santos possuíram o dom da introspecção, que é a capacidade de ler as consciências. Diz-se do místico luterano Jacob Boehme que conseguia ler "dentro" das coisas. Mesmo sem chegar a estes extremos sobrenaturais, há pessoas astutas que conseguem facilmente observar essas regiões mais íntimas, seja pela maturidade pessoal de que falávamos - como é o caso do Pe. Brown, personagem literário do Chesterton, que adquiriu um profundo conhecimento da natureza humana por causa da sua prática constante da confissão, o que o ajuda depois a desvendar casos policiais -, seja por uma espécie de agudeza natural do espírito.

A terceira camada, enfim, seria aquela que bem poderíamos chamar de ontológica, pois não reside no conteúdo das operações nem nas suas motivações, mas no ser mesmo da pessoa. Por trás das palavras, há as intenções, e, por trás dessas, há o ser. A verdade da pessoa reside nesta terceira camada, a mais profunda. É comum que as duas camadas anteriores estejam em desacordo com esta; é o que ocorre com os hipócritas e com os que não se conhecem. Nestes casos, a pessoa está impedida de ser ela mesma, e instaura-se-lhe uma divisão interna. Estando o seu foco interior desajustado, não há modo de a sua visão ou os seus atos exprimirem a verdade do que ela é. Naturalmente, estes atos terão um alcance reduzido e a pessoa estará sempre aquém das suas reais possibilidades que sequer terão a oportunidade de despertar. Enxergar este fundo do ser é mais próprio dos santos, daqueles que tiveram o coração purificado. Eles não se deixam enganar por superficialidades, mas também não andam a julgar todos os homens de ambiciosos, avarentos, impuros, etc. Como o seu olhar reside neste último nível, eles percebem que todos os homens são, em si mesmos, bons. Ainda que pequem, o fundo do ser permanece sendo o que é, de modo que não se colocam acima dos demais, embora percebam objetivamente que, nestes outros, falta o estado de consciência desperta. Para alguém que olha deste modo, as dissonâncias internas das outras pessoas não lhe despertam o furor, mas, antes, a compaixão, pois, então, serão vistas como o que de fato são: enfermidades internas, carências pessoais de alguém que precisa de ajuda. 

domingo, 22 de junho de 2014

Uma experiência da transfiguração no hesicasmo


- Meu amigo, estamos ambos neste momento no Espírito de Deus [...] Por que não queres olhar para mim?

- Não posso olhar para vós, meu Pai, porque vossos olhos projetam clarões; vosso rosto se tornou mais brilhante que o sol e sinto dor nos olhos em vos olhar.

- Não tenhas medo de nada. Neste momento te tornaste tão claro como eu. Também estás agora na plenitude do Espírito de Deus; de outra maneira, não poderias ver-me como me vês.

E, inclinado para mim, ele me disse baixinho ao ouvido:

- Dá graças ao Senhor Deus por sua bondade infinita para conosco. Como observaste, nem mesmo fiz o sinal da cruz; bastou apenas que eu orasse a Deus em pensamento, no meu coração, dizendo interiormente: Senhor, torna-o digno de ver claramente com seus olhos corporais esta descida de teu Espírito, que proporcionas a teus servos, quando te dignas aparecer-lhes na luz magnífica de tua glória. E como podes ver, meu amigo, o Senhor atendeu imediatamente esta oração do humilde Serafim [...] Como devemos ser reconhecidos a Deus por este dom inefável concedido a nós dois! Mesmo os pais do deserto nem sempre tiveram tais manifestações de sua bondade. É que a graça de Deus - como uma mãe cheia de ternura para com seus filhos - dignou-se consolar vosso coração aflito, pela intercessão da própria Mãe de Deus [...] Por que, então, meu amigo, não queres olhar-me direto na face? Olha francamente, sem medo: o Senhor está conosco [...].

Encorajado com estas palavras, olhei e fui tomado de um terror piedoso. Imaginem vocês a face do homem que lhes fala, no meio do sol, no brilho de seus raios escaldantes do meio-dia. Vocês podem ver o movimento de seus lábios, a expressão mutante de seus olhos, podem ouvir sua voz e sentir suas mãos pousarem sobre os ombros de vocês, mas não vêem nem suas mãos, nem o corpo de seu interlocutor - nada além da luz resplandescente que se propaga longe, a algumas toesas ao redor, iluminando com seu brilho o prado coberto de neve e os flocos brancos que não param de cair [...].

E o Padre Serafim me perguntou:

- O que é que sentes?

- Um bem-estar infinito, respondi.

- Mas que tipo de bem-estar? Em que precisamente?

- Sinto uma tal tranquilidade, uma tal paz na minha alma, que não encontro palavras para me exprimir.

- É, meu amigo, a paz da qual falava o Senhor quando disse a seus discípulos: "Eu vos dou a minha paz"; a paz que o mundo não pode dar [...]; "a paz que ultrapassa toda compreensão". O que sentes ainda? 

- Uma alegria infinita no meu coração.

E o Padre Serafim continuou:

- Quando o Espírito de Deus desce sobre o ser humano e o envolve na plenitude de sua presença, então a alma transborda de uma alegria indizível, pois o Espírito Santo cumula de alegria todas as coisas que Ele toca [...] Se as primícias da alegria futura já enchem a nossa alma de uma tal doçura, de uma tal felicidade, que diremos da alegria que espera no Reino celeste todos aqueles que choram aqui na terra? Também tu, meu amigo, também tu choraste no curso de nossa vida terrestre, mas verás a alegria que o Senhor te envia para te consolar desde aqui na terra.

Então esta alegria que sentimos neste momento, parcial e breve, aparecerá em toda a sua plenitude, cumulando nosso ser de delícias inefáveis que ninguém poderá arrebatar-nos.

Colóquios de São Serafim In: Escritos sobre o hesicasmo, uma tradição contemplativa esquecida. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 2011. p.116-118.