No nosso dia a dia, nas relações que tratamos com as pessoas, sempre as olhamos e, nesse olhar, captamos uma série de informações que fundamentarão o modo como agiremos. Por exemplo: se, numa conversa com um amigo, notamos que ele manifesta expresso desinteresse pelo que estamos a dizer, naturalmente nós cessaremos o assunto e isto nos servirá como bloqueio para futuras conversas. Esta pessoa não constará mais na nossa lista de amigos com quem tratar intimidades, etc. Todos nós fazemos isso. Contudo, sabemos que nem sempre é possível esgotar uma pessoa num primeiro olhar - na verdade, nunca o é -, o que demonstra que uma pessoa é algo complexo, que não se reduz à aparência, mas que possui diversas camadas.
O nosso olhar, então, pode se direcionar a camadas diferentes, e isto por vezes é consequência do nosso nível de maturidade. Há, pelo menos, três camadas fundamentais.
A primeira é a puramente exterior. É aquela que percebemos ao topar com alguém pela primeira vez. Neste caso, de modo pré-racional, surge em nós um movimento de simpatia ou de antipatia. Por ser pré-racional, também costuma ser pré-volitivo, e, às vezes, semi-consciente. Estes movimentos pré-racionais, na verdade, são muito frequentes e estão subjacentes a várias das nossas ações. O que faz, por exemplo, com que terminemos um livro em específico e abandonemos outro pela metade? Não é somente o tema tratado. Por vezes, os dois livros possuem um assunto que nos interessa, mas um deles nos agrada mais. Este "agrado" sensível nos servirá de estímulo para continuar a leitura, enquanto que o outro, por mais que decidamos chegar ao fim, só o faremos à custa de mais esforço. E isto porque, a depender de uma série de fatores pré-racionais, o nosso ser dispõe-se ou não para uma atividade.
Estar fixado na camada puramente exterior é típico dos ingênuos. Ele reduz a pessoa ao que vê: confunde a sua interpretação subjetiva com a realidade mesma do outro. Assim, não consegue distinguir uma pessoa autêntica de um ator. A atenção está fixada no conteúdo das palavras e nos atos explícitos. Uma pessoa assim é facilmente enganada.
A segunda camada é a da pessoa que não fica no conteúdo do que é dito nem na superficialidade das ações, mas que como que adentra por trás dessas coisas. Ele já observa o tom de voz, a expressão facial, os olhares, e as possíveis intenções que motivaram os atos. Se, por um lado, podemos dizer que esta pessoa é mais astuta, pode se dar também o contrário: por causa deste hábito que a maioria de nós tem, não poucas injustiças são cometidas, pois é comum que, também aqui, confundamos a nossa interpretação pessoal, que por vezes não é mais que uma projeção, com a realidade mesma da outra pessoa. Assim, nem um santo poderia passar isento de acusações, pois, como uma pessoa geralmente toma por matéria prima da compreensão dos outros as suas experiências pessoais - sobretudo os seus interesses, medos e invejas - o santo seria tomado facilmente por hipócrita e falso, como alguém que pretende conquistar a simpatia das pessoas, já que isto é o que é comumente buscado pela maioria. Estas projeções impedem a contemplação correta, que é um ato eminentemente passivo e de respeito ao que é, e a substitui pela construção subjetiva da projeção. Este é sempre um risco, e é por isto que Jesus nos proibiu o julgamento de intenção, pois é pretender saber o que está no cerne dos atos alheios. Pronunciar-se sobre os atos é permitido; sobre o que os motiva, não. Ainda assim, é possível ter uma visão correta desta segunda camada, a depender da maturidade pessoal. Vários santos possuíram o dom da introspecção, que é a capacidade de ler as consciências. Diz-se do místico luterano Jacob Boehme que conseguia ler "dentro" das coisas. Mesmo sem chegar a estes extremos sobrenaturais, há pessoas astutas que conseguem facilmente observar essas regiões mais íntimas, seja pela maturidade pessoal de que falávamos - como é o caso do Pe. Brown, personagem literário do Chesterton, que adquiriu um profundo conhecimento da natureza humana por causa da sua prática constante da confissão, o que o ajuda depois a desvendar casos policiais -, seja por uma espécie de agudeza natural do espírito.
A terceira camada, enfim, seria aquela que bem poderíamos chamar de ontológica, pois não reside no conteúdo das operações nem nas suas motivações, mas no ser mesmo da pessoa. Por trás das palavras, há as intenções, e, por trás dessas, há o ser. A verdade da pessoa reside nesta terceira camada, a mais profunda. É comum que as duas camadas anteriores estejam em desacordo com esta; é o que ocorre com os hipócritas e com os que não se conhecem. Nestes casos, a pessoa está impedida de ser ela mesma, e instaura-se-lhe uma divisão interna. Estando o seu foco interior desajustado, não há modo de a sua visão ou os seus atos exprimirem a verdade do que ela é. Naturalmente, estes atos terão um alcance reduzido e a pessoa estará sempre aquém das suas reais possibilidades que sequer terão a oportunidade de despertar. Enxergar este fundo do ser é mais próprio dos santos, daqueles que tiveram o coração purificado. Eles não se deixam enganar por superficialidades, mas também não andam a julgar todos os homens de ambiciosos, avarentos, impuros, etc. Como o seu olhar reside neste último nível, eles percebem que todos os homens são, em si mesmos, bons. Ainda que pequem, o fundo do ser permanece sendo o que é, de modo que não se colocam acima dos demais, embora percebam objetivamente que, nestes outros, falta o estado de consciência desperta. Para alguém que olha deste modo, as dissonâncias internas das outras pessoas não lhe despertam o furor, mas, antes, a compaixão, pois, então, serão vistas como o que de fato são: enfermidades internas, carências pessoais de alguém que precisa de ajuda.