Eu aos 30. |
Há 8 séculos, Sta Clara dizia a frase que encima este texto ao sentir ser chegado o momento de morrer. Na verdade, aquele vértice da vida era apenas uma aparência, como o seria um parto sob a perspectiva de um nascituro. Mas, na realidade, era apenas o verdadeiro nascimento para a vida "de uma sorte mais subida", que é a vida dos santos. Sta Clara o sabia, e a sua morte tinha o sabor do início de uma festa de aniversário que as anteriores apenas preludiavam. Saber e sabor, a propósito, têm o mesmo étimo.
Fazer aniversário é algo paradoxal. Comemoramos o tempo decorrido desde o nascimento, que se vai alongando, e, ao mesmo tempo, sabemos que o tempo daquele outro nascimento, no fim da vida, vai-se encurtando. Para que a vida continue depois da morte, e o segundo parto não seja frustrado, ainda que sejamos velhos, devemos ser crianças. As duas considerações - nascimento e morte - não deveriam provocar reações opostas, mas, antes, nos alegrar ambas. A primeira, pelo dom da vida. A segunda, pela esperança da eternidade. Esta segunda é a razão de ser da primeira, sem a qual a vida no tempo perde o sentido, virando evento casual, instante nauseante e desesperado "entre duas eternidades" negativas. É surpreendente que alguém o creia. Nós, cristãos, pelo contrário, sabemos que a vida "não será tirada, mas transformada". Como diz São Paulo, seremos "sobrevestidos". A vida, ao invés de ser perdida, será adensada, se tornará mais real que agora, e haverá cessado a inquietude, e veremos a Deus. "Cessai e vede que eu sou Deus.", diz o Salmo.
O aniversário, por isso, deveria nos produzir uma dupla nostalgia, pelo recordo dos anos decorridos e pela "lembrança" do fim, pois, de fato, viemos de Deus e para Ele retornaremos, de modo que o fim identifica-se com o começo; o alpha e o ômega são a mesma Pessoa.
Assim como o bebê, antes de nascer, vive dentro da mãe, num tipo de vida que é quase isenção de liberdade e consciência, e, depois que nasce, ele vê pela primeira vez a face da sua mãe, e um mundo infinitamente maior se descortina diante dele, assim também, por ora, é em Deus que "vivemos, nos movemos e somos". Estamos sendo como que gerados. Na morte, ao nascermos, se tudo estiver correto, poderemos enfim ver Deus face a face, saboreando da verdadeira liberdade. É claro que a comparação não é perfeita. No Céu, não estaremos "fora" de Deus como o bebê que nasce está fora da mãe. Mas as realidades temporais, ainda que de modo limitado, simbolizam as superiores.
Neste dia em que completo meus 30 anos, noto novamente que esta é uma idade paradoxal: ela é o último ano da minha terceira década, embora pareça, aos desatentos, ser o primeiro. De novo, primeiro e último parecem se identificar. Ainda que isto se dê por um equívoco, não deixa de impressionar. Neste dia, depois de tanta coisa já passada, e ao mesmo tempo com uma impressão de que me trouxeram aqui às pressas, eu só posso ser grato a Deus. Nada disso seria possível se Deus não tivesse pensado em mim e, pelo seu Lógos, não me tivesse criado. É comovente saber que o Cristo, Ele mesmo, me olhou antes de eu existir, e, sabendo de todas as minhas misérias, ainda assim me quis, Ele que só pode querer o bem. Estou vivo por pura gratuidade de Deus. E, na minha ingratidão, Ele revela Sua misericórdia. E, em me permitir mais um ano de vida, Ele revela Sua insistência, pois o estar vivo somente tem sentido enquanto tensão para a santidade. Deixar-me vivo é insistir.
Ainda ontem eu lia esta frase do Léon Bloy: "Uma alma que Deus sitia com todo o seu poder! Imaginai alguma coisa de mais belo!" De fato, não imagino, e apenas desejo que esta beleza me salve, como naquele trecho bem conhecido de Dostoievski. E não é preciso pedi-lo, sequer, pois o belo, nos ensina a boa metafísica, irradia pela sua própria natureza, assim como o bem por si mesmo se propaga. O único impedimento à irradiação de Deus, o único empecilho à propagação do Onipotente - vejam mais um paradoxo - é a rebeldia de um vermezinho, é a minha vontade pessoal, que Deus respeita. Espero, contudo, que Ele, o onisciente, saiba distinguir a minha vontade dos meus desejos, pois sob a agitação destas águas impulsivas, há algo que, quieto e constante, aponta para Ele como uma seta. Não se detenha, pois, o Onipresente, e, cessando o Seu recuo, desague-Se violentamente e sitie-me com toda a Sua majestade. Se vivo, é para Ele. Sempre o será. E, ainda que eu não alcance a glória dos céus, e no inferno seja projetado, continuarei o paradoxo: cantarei, do meio das chamas inferiores, com todos os meus pulmões danados, a beleza e a bondade de Quem um dia me quis.
Mil graças, Senhor, por me teres criado.
Fábio.