sexta-feira, 17 de junho de 2016

Guénon sobre o Wu-wei


Se, de uma maneira geral, conveio-se reprovar à doutrina indiana menosprezar a ação, é sobretudo ao falar do taoísmo onde se sente a necessidade de falar mais expressamente ainda do "quietismo", e isso por causa do papel que joga ali o "não-atuar" (Wu-wei), cuja verdadeira significação os orientalistas não compreendem em modo algum, e que alguns dentre eles fazem sinônimo de "inatividade", de "passividade" e inclusive de "inércia". No entanto, há alguns que se deram conta de que há nisso um erro; mas, não compreendendo também no fundo do que se trata, e confundindo igualmente ação e atividade, negam-se então a traduzir wu-wei por "não-atuar", e substituem este termo por perífrases mais ou menos vadias e insignificantes, que diminuem o alcance da doutrina e não deixam perceber já nada de seu sentido profundo e especificamente inicial. Em realidade, a tradução por "não-atuar" é a única aceitável, mas, por causa da incompreensão ordinária, convém explicar como se deve entender: não só este "não-atuar" não é a inatividade, senão que, segundo o que indicamos precedentemente, é ao invés a suprema atividade, e isso porque está tão longe como é possível do domínio da ação exterior, e completamente liberado de todas as limitações que se lhe impõem a esta por sua própria natureza; se o "não-atuar" não estivesse, por definição mesma, além de todas as oposições, se poderia dizer pois que é em certo modo o extremo oposto da meta que o quietismo atribui ao desenvolvimento da espiritualidade.

Não há que dizer que o "não atuar", ou o que é seu equivalente na parte inicial das demais tradições, implica, para aquele que chegou a ele, um perfeito desapego a respeito da ação exterior, como pelo demais de todas as demais coisas contingentes, e isso porque um tal ser se situa no centro mesmo da "roda cósmica", enquanto essas coisas não pertencem mais do que a sua circunferência; se o quietismo professa por seu lado uma indiferença que parece recordar em alguns aspectos este desapego, é certamente por razões muito diferentes. Do mesmo modo que fenômenos similares podem dever-se a causas muito diversas, assim também maneiras de atuar (ou, em alguns casos, de abster-se de atuar) que são exteriormente as mesmas podem proceder das intenções mais diferentes; mas, naturalmente, para aqueles que ficam nas aparências, disso podem resultar muitas assimilações. Efetivamente, sob esta relação, há alguns fatos estranhos aos olhos dos profanos, que poderiam ser invocados por eles em apoio da aproximação errônea que querem estabelecer entre o quietismo e tradições de ordem inicial.

René Guénon, Contra o Quietismo.

Ao final do precedente capítulo, fazíamos alusão a algumas maneiras de atuar mais ou menos extraordinárias que podem proceder, segundo os casos, de algumas razões diferentes; é verdade que, de uma maneira geral, implicam sempre que a ação exterior se considera de maneira muito diferente a como o é pela maioria dos homens, e que, a essa ação, tomada em si mesma, não se lhe dá a importância que se lhe atribui comumente; mas a este respeito há que fazer muitas distinções. Devemos precisar primeiramente que o desapego da ação, de que falávamos a propósito do "não-atuar" é antes de mais nada uma perfeita indiferença no que diz respeito aos resultados que podem obter-se dela, já que esses resultados, quaisquer que sejam, não afetam já realmente ao ser que chegou ao centro da "roda cósmica". Ademais, é evidente que um tal ser jamais atuará por necessidade de atuar, e que, por outra parte, se deve atuar por um motivo qualquer, não sem plena consciência de que essa ação nada mais é do que uma simples aparência contingente, ilusória como tal para seu próprio ponto de vista (não dizemos, bem entendido, para o ponto e vista dos demais seres que são testemunhas dela), não a cumprirá forçadamente de uma maneira que difira exteriormente da dos demais homens, a menos que tenha para isso também motivos particulares em alguns casos determinados. Se compreenderá sem esforço que isso é algo totalmente diferente da atitude dos quietistas e de outros místicos mais ou menos "irregulares", que, pretendendo tratar a ação como algo desdenhável (enquanto, no entanto, estão muito longe de ter chegado no ponto desde onde a ação aparece como puramente ilusória), encontram nisso sobretudo um pretexto para fazer indistintamente não importa o que, seguindo os impulsos da parte instintiva ou "subconsciente" de seu ser, o que, evidentemente, corre o risco de ocasionar toda sorte de abusos, de bagunças ou de desvios, e o que, em todo caso, tem ao menos o grave perigo de deixar às possibilidades inferiores desenvolverem-se livremente e sem controle, em lugar de fazer para dominá-las um esforço que seria pelo demais incompatível com a extrema passividade que caracteriza os místicos deste gênero.

René Guénon, Loucura aparente e Sbedoria oculta

quinta-feira, 16 de junho de 2016

+1, -1 ... ∞


"Time waits for nobody", diz uma das músicas do Freddie Mercury de que eu gosto. A frase, dita assim, parece um lamento. E de fato o é. Grande parte da vida humana é ou desejar que o tempo passe, ou lamentar que ele tenha passado. Até os vinte anos, prevalece a primeira atitude. Depois, a gente vai olhando pra trás e vai querendo sabotar a engrenagem do tempo, para que corra mais devagar. Se isso fosse possível... Mesmo assim, às vezes eu observo alguns idosos e fico impressionado com a resignação que eles têm com isso. Já foram jovens. Já tiveram toda vitalidade. Mas parecem ver como natural o estado no qual se encontram. Aceitaram. Talvez seja a tal sabedoria dos anciãos. E isso me remonta ao Mickey, do filme Rocky, que dizia: "A natureza é sábia. O mundo vai nos tirando as coisas, nos deixando desapegados, até que num momento a gente percebe que não tem mais o que fazer aqui." O tempo, assim, aparece como uma espécie de desnudamento progressivo. E o que acontece quando ficarmos totalmente nus? Nascemos. "Aparecerei diante de Deus com as mãos vazias", dizia Sta Teresinha de Lisieux.

Isto por acaso significa que a vida deve tornar-se uma lamentação ou uma ânsia pela morte? Não. É verdade que esta vida só tem seu valor real - não um valor imaginado que, em última instância, não pode muito além de autoproduzir um prazer fugidio que aumenta ainda mais o blue da coisa - se posta em relação com a eternidade. Mas justamente este aspecto fá-la ser uma antecipação. Embora a espera se ordene à presença, ela tem a sua própria beleza. E o risco de não culminar com aquela visão, misturado com a esperança de tê-la, serve como que de tempero, dando variados sabores aos dias que correm, ou como um espectro de multicores que colore o ambiente com infindas combinações. "Em pensar naquele reencontro, meus olhos enchem de lágrimas", dizia o visceral Léon Bloy, cuja vida não lhe permitia muita coisa além de esperar.

Mas "o tempo é a imagem móvel da eternidade", dizia Platão. A eternidade é um instante fixo, "posse simultânea de todos os bens", escreveu Boécio. Nela não há passado ou futuro, pois estes, dirá Agostinho, são frutos de uma alma partida, efeito da Queda. De posse d'Aquele que nos completa, e possuídos por Ele, seremos inteiros. O presente é, portanto, o símbolo da vida total, e enquanto ele estiver a correr, saberemos que a vida total ainda não chegou. Nisto se dá um paradoxo: lamentamos que a nossa vida vai ficando para trás, e este lamento nos distrai do lugar onde estritamente ela acontece, ainda que premida num espaço estreitíssimo: o presente. Ser fiel ao Céu, destino eterno do homem - o que não o impede de frustrar este destino - é habituar-se, desde já, a viver no presente. "Para amar-Te, oh meu Deus, só tenho hoje." A beleza poética da espera só é possível hoje. A luz feliz e inquieta da esperança também só é possível hoje. A oscilação da Fé, igualmente. O agora tem a sua beleza por ser símbolo da eternidade. A espera é símbolo da presença. Não é bom, portanto, lamentar-se. Os que vão ficando velhos são os que vão terminando o tempo de gestação: voltarão a nascer, mas agora no eterno presente.

Esta vida inteira possui, então, duas faces: uma que se volta para o futuro, pelo que é espera; e uma que se volta para o agora, pelo que é fruição. Uma fruição que se apega é uma fruição na qual se imiscuiu a preocupação com o tempo, sobretudo com o passado. É o medo de perder que faz entrar no gozo do agora a sombra do ego. O agora é instante. Nele não há divisão. Vivê-lo é aproveitar a vida, com suas durezas e seus prazeres, recebendo-a de mãos abertas. É claro que isto não implica nenhum tipo de inconsciência ou irreflexão. Isto implica, ao invés, inteireza e não distração. É o que os budistas chamam de "mindfullness". Acima do fluxo desta vida, está a Rocha inconcussa que é Deus e sobre a qual tudo se fundamenta. Não nos distraiamos disso: Deus é futuro e presente. Aristóteles dizia que o mundo tira seu movimento do fato de ser atraído por Deus, beleza infinita, pois é próprio do belo atrair. O tempo é imagem móvel. Que o tempo da nossa vida seja puxado por aquela Beleza, "assim como a mariposa é atraída pela chama, e se queima", escreve São João da Cruz. Aquele fogo será a totalidade da nossa vida. Corramos para lá, mas já apreciando o calor que desde agora aquele Lume nos projeta. Brigado, Senhor, por mais um ano, e por menos um ano. Obrigado por esta alma imortal, cuja vida faz digno de nada o tempo.

A cena do Rocky que mencionei acima e de que gosto bastante.