"Henri Bergson diz que os sistemas filosóficos não são mais do que a intuição de um único instante, seguida de esforços de uma vida inteira no sentido de explicitá-la e desdobrá-la discursivamente. Poderíamos dizer que onde o filósofo abandona o ato intuitivo inicial para, mudando radicalmente de plano e de postura intelectual, dedicar-se à conversão discursiva do conteúdo aí captado, o buscador espiritual - que é o mesmo que dizer: o filósofo tradicional - procura, ao contrário, persistir no estado de evidência intuitiva, de modo não só a obter novas e sucessivas evidências, mas a viver num esteado de visão, claridade e compreensão ininterruptas.
Em outros termos, onde o filósofo moderno julga terminado o trabalho da intuição, e começando o trabalho da explicitação lógica, o espiritual vê apenas a primeira de uma série de fulgurações aurorais que deve terminar por converter a sua própria pessoa em luminosidade e transparência. A mudança de direção assinalada por Bergson, a ruptura do estado intuitivo e a passagem à busca da formulação lógica só se justificam, evidentemente, quando se decreta que a finalidade da filosofia é construir sistemas dedutivos ou explicitar a pura coerência lógica do discurso; mas esta coerência já está dada - ainda que em modo compacto e implícito - na intuição inaugural; resta apenas, por assim dizer, um 'esforço físico' de selecionar os materiais da linguagem e montá-los numa ordem decente. Se a filosofia é isto, não deve valer grande coisa.
Na perspectiva tradicional, ao contrário, a tarefa do filósofo não é constituir sistemas, seja lá do que for, nem a de elaborar tecnicamente a coerência de um discurso acadêmico, mas a de buscar a sabedoria; e se o homem que busca a sabedoria for obrigado a interromper sua marcha a cada passo, para explicitar cada nova intuição, certamente não vai chegar tão cedo ao termo da viagem. Por isto as obras dos espirituais limitam-se, às vezes, a notações abreviadas e simbólicas do conhecimento obtido.
Tais notações só são de grande proveito a quem refaça pessoalmente o trajeto percorrido por eles; são marcos no caminho; tentam guiar o caminhante, não reproduzir verbalmente a viagem para um observador estranho e distante. Claro, nada impede, em princípio, que um espiritual explicite dialeticamente boa parte do seu conhecimento, e neste caso seu trabalho será muito parecido, exteriormente, ao caso de um filósofo acadêmico; é o caso de Platão, de Plotino, etc. Somente que esse excurso pela exposição dialética não é um objetivo em si mesmo, como na filosofia acadêmica, porém uma ocupação mais ou menos secundária, e que só se justificará por um destes dois motivos: seja como atividade de ensino, motivada pela misericórdia, ou como prática disciplinar, no caso de que a arte dialética faça parte do corpo de técnicas de concentração e realização espiritual da linhagem espiritual em questão; era isto, aliás, o que ocorria na academia platônica."
Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos.
Em outros termos, onde o filósofo moderno julga terminado o trabalho da intuição, e começando o trabalho da explicitação lógica, o espiritual vê apenas a primeira de uma série de fulgurações aurorais que deve terminar por converter a sua própria pessoa em luminosidade e transparência. A mudança de direção assinalada por Bergson, a ruptura do estado intuitivo e a passagem à busca da formulação lógica só se justificam, evidentemente, quando se decreta que a finalidade da filosofia é construir sistemas dedutivos ou explicitar a pura coerência lógica do discurso; mas esta coerência já está dada - ainda que em modo compacto e implícito - na intuição inaugural; resta apenas, por assim dizer, um 'esforço físico' de selecionar os materiais da linguagem e montá-los numa ordem decente. Se a filosofia é isto, não deve valer grande coisa.
Na perspectiva tradicional, ao contrário, a tarefa do filósofo não é constituir sistemas, seja lá do que for, nem a de elaborar tecnicamente a coerência de um discurso acadêmico, mas a de buscar a sabedoria; e se o homem que busca a sabedoria for obrigado a interromper sua marcha a cada passo, para explicitar cada nova intuição, certamente não vai chegar tão cedo ao termo da viagem. Por isto as obras dos espirituais limitam-se, às vezes, a notações abreviadas e simbólicas do conhecimento obtido.
Tais notações só são de grande proveito a quem refaça pessoalmente o trajeto percorrido por eles; são marcos no caminho; tentam guiar o caminhante, não reproduzir verbalmente a viagem para um observador estranho e distante. Claro, nada impede, em princípio, que um espiritual explicite dialeticamente boa parte do seu conhecimento, e neste caso seu trabalho será muito parecido, exteriormente, ao caso de um filósofo acadêmico; é o caso de Platão, de Plotino, etc. Somente que esse excurso pela exposição dialética não é um objetivo em si mesmo, como na filosofia acadêmica, porém uma ocupação mais ou menos secundária, e que só se justificará por um destes dois motivos: seja como atividade de ensino, motivada pela misericórdia, ou como prática disciplinar, no caso de que a arte dialética faça parte do corpo de técnicas de concentração e realização espiritual da linhagem espiritual em questão; era isto, aliás, o que ocorria na academia platônica."
Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos.