Estou aqui no começo do meu dia pensando em como manter a tradição de escrever, como geralmente faço nessas ocasiões. Estes textos exprimem as evoluções ou involuções do meu espírito. O que eu posso dizer é que hoje em dia a minha vida é muito singular, no sentido de que o que ela é agora, em certo sentido parece não poder ser reduzido a uma mera e óbvia culminância do que já era. Pelo menos, parece. A vida humana é sempre misteriosa e nela coabitam, ao lado daquilo que percebemos, coisas subliminares, escondidas, discretas, mas reais. Há um estranho preconceito de que o que está submerso, subjacente, é mais real do que aquilo que aparece. E há um preconceito em tomar o termo "preconceito" por algo necessariamente ruim e falso. A vida parece ser um processo de desenrolar de uma espécie de essência que vai, aos poucos, tomando forma, realizando-se, tornando-se ato e fazendo com que o eu seja isso mesmo: atual. O ideal vai tomando corpo e vamos aparecendo, adensando ontologicamente, o nosso futuro não sendo somente o desabrochar do que já tínhamos existencialmente em estado de latência, mas a criação real de um quê - que procede do ideal - que é irredutível ao que já havia e que vem somar-se isso. De algum modo, somos mais o que já somos na medida em que já não somos o que fomos.
Este é um dia feliz. Pelo menos é o modo que eu tendo a considerar os aniversários, muito embora a essa altura do campeonato a gente já comece a lamentar mais um ano que se passou. Mas cá estamos, depois de mais 4 estações, e de tantas coisas vividas, e sofridas, e ridas. Tudo vai tomando lugar, se encaixando, formando esse mosaico que dá uma unidade gradativamente mais perfeita e significativa a todo o conjunto. Neste processo, mesmo o que não foi tão bom tem o seu lugar e dá o seu tom à personalidade e ao vibrar do ser. Somos vozes divinas que se sucedem durante um tempo. Dir-se-ia que daqui a alguns anos eu alcanço a linha de transição e passo ao início do fade-out. Mas como a voz é divina, embora a sua manifestação seja sucessiva, a sua natureza é imortal. A voz é um veículo de efetivação de uma ideia que é imediata e eterna. Sou eterno por participação.
É um dia privilegiado, porque por toda a parte vemos manifestações de carinho, e fica evidente se algum bem nós fizemos a alguém. Claro que estas coisas são enfatizadas e vistas às vezes com lentes de aumento. Mas como somos entes carentes, é importante que uma vez ao ano, pelo menos, alguém nos recorde da nossa importância e valor e do bem que, propositalmente ou não, conseguimos fazer. O aniversário é um símbolo do Céu, que invade a nossa vida de exílio e nos toca. É uma liturgia solene em que Deus dá uma espécie de direito particular ao agraciado. É um dia que lhe é separado, e, não houvesse gente sofrendo muito e até morrendo nessas ocasiões, dir-se-ia que tudo nos parece favorável. Nem sempre será assim, no entanto. E nem sempre o foi, pra falar a verdade. E nem é. O ponto é que a nossa alegria transfigura a vida, o mundo, e tudo reflete o que nos vai na alma.
Neste meu dia, sou grato a Deus pelo dom da existência, da vida, da família e dos amigos que eu tenho, e de tantas outras coisas com as quais Ele me presenteou e me presenteia. Minhas rebeldias excessivas recordam-me do Seu amor sobreexcessivo, e as minhas iniquidades me fazem contemplar, com mais relevo, a superabundância da Sua graça. E é por ser de graça que é amor. É como os raios do sol que vêm bater contra a superfície de uma porta. Nada é preciso fazer além de abri-la, para que aquela luz ilumine o interior. E então a casa será luz por participação. O material da alma humana, recorda-nos Sta Teresa, é de tal modo brilhante que recepciona perfeitamente aqueles dardos do sol divino e resplandece. Queria sempre resplandecer, mas as misérias que me habitam, os demônios que falta exorcizar, limitam muito a operação normal desse pobre grão de areia. Mas Deus o ama e, por isso, ele resiste. Deus é bom, e essa é uma verdade inconcussa que se obstina a manter-se, sem nenhum mínimo abalo, diante dos caprichos infantis dessa existência. Os braços amorosos de um pai são fortes o bastante para conterem o esperneio do filho. Na mente da criança, tudo é caos, mas só o pai é realista.
Quero passar os meus dias crendo no realismo do meu Pai, e não nas minhas perspectivas sempre tão limitadas. Espero também crescer sempre um pouco mais a fim de que o meu olhar seja sempre mais reto, mais verdadeiro, mais profundo. Mas o que importa, nisso tudo, é que Deus é invencível e sitia, diz o visceral Léon Bloy, certas almas com todo o Seu poder. Que belo presente seria se Ele me elegesse para isso. "Que terrível é cair nas mãos de Deus", escreveu São Paulo. E que terrivelmente belo e saboroso isso deve ser... Que eu jamais me aparte daí. "Ó meu astro amado, fascinai-me, a fim de que não me seja possível mais sair de vossa irradiação", escreveu Sta Teresa Elisabete da Trindade. E eu, que da santidade não tenho nem a poeira, ouso pedir o mesmo, e sou feliz desde já porque Ele me concedeu o dom da existência. Desde então, perceba eu ou não, Ele é mais íntimo de mim do que eu mesmo. Jamais estarei só. Mais um ano é menos um ano. E então tudo se descortinará, e o sorriso será pra sempre. Assim espero. Assim o creio.