segunda-feira, 27 de maio de 2013

Meditação sobre a morte


A vida é um mistério. Embora ela, aqui em baixo, seja passagem contínua, é toda permeada da vontade de não passar, do desejo do eternizar-se. E, no entanto, o curso das coisas não cessa. Houve um momento em que nascemos e haverá um momento em que morreremos. Sair da vida, o que significa? Qual o sentido daquele desejo de perenidade que cultivávamos se, por acaso, é falso que ele se realiza? Seria o caso de sermos seres profundamente mentirosos e que se aferram a ilusões? Não... Repugna-nos a morte, não por acaso. Satisfazemo-nos com verdades imutáveis, não por acaso. Estamos a vida inteira orientados, como bússolas obstinadas, para o bem - ou aquilo que julgamos sê-lo -, não por acaso. Se, de um lado, fazemos a experiência da efemeridade, do devir, da mudança, em nosso íntimo, naquilo que temos de mais essencial, somos todos sedentos de eternidade, de constância. Esta tensão entre uma coisa e outra é a grande responsável pela nossa atual inquietude, por estarmos sempre insatisfeitos e sempre a buscar novos bens. "O nosso coração anda inquieto enquanto não descansar em Ti". Também não foi à toa que Jesus se definiu como a Rocha, símbolo de firmeza e permanência.

A morte é somente uma passagem, embora pareça término. Uma porta também é somente uma aparência de limite. Quando ela está fechada, não nos permite enxergar do outro lado, embora nos faça supor que há uma vastidão não vista para além dela e para a qual ela é somente uma transição. Comparada à eternidade, esta vida é uma pequena choupana ou, nos dizeres de Sta Teresa D'Avila, é "uma má noite numa má pousada". Horizontes insuspeitados aguardam do outro lado e, no entanto, enquanto a porta não abrir, tais horizontes apenas podem ser supostos. Também haverá quem diga que a realidade se reduz ao casebre e que não há nada que o transcenda. Estes mutilaram em si o que havia de mais essencial. Deus deu asas aos homens para que, uma vez aberta aquela porta, eles pudessem alçar vôo e sentir, pela primeira vez mas nostalgicamente, a delícia do vôo e da contemplação do sol.

Quando olhamos para a morte, parece-nos o fim. Mas é preciso estar muito embotado para ficar insensível à dimensão do mistério que ali se adensa. A morte é uma passagem. A realidade, densa, firme, total, começa depois dela.

domingo, 5 de maio de 2013

O perigo das experiências espirituais imaginadas


O abuso perigoso das imagens e do símbolo pode ser constatado, por exemplo, no caso de alguém que tenta fazer surgir uma "chama viva" pelo exercício da vontade, da imaginação e do desejo e se persuade, então, a si próprio, de que teve a "experiência de Deus". Num tal caso, ter-se-ia de pagar muito caro essa evidente fabricação, pois existe uma diferença total entre os frutos de uma autêntica experiência religiosa, puro dom de Deus, e os resultados de nossa imaginação. Como declarou sem rodeios Jacob Boehme: "Onde encontramos nas Escrituras que uma prostituta pode tornar-se virgem por simples decreto?"

A experiência viva do amor divino e do Espírito Santo na "Viva Chama", a que se refere S. João da Cruz, é uma verdadeira consciência que se tem de haver morrido e ressuscitado em Cristo. É uma experiência de renovação mística, uma transformação interior ocasionada unicamente pelo poder do amor misericordioso de Deus, que implica a "morte" do ego autocêntrico e auto-suficiente e o surgir de um novo ser libertado, que vive e age "no Espírito". Mas, se o antigo eu, o ego autônomo e calculador, procura apenas imitar os efeitos de uma tal regeneração, para a satisfação e vantagem próprias, o efeito é exatamente o oposto: o ego procura afirmar-se em sua própria existência egoísta. O grão de trigo não penetrou na terra e não morreu. Permanece duro, isolado e seco; não há fruto nenhum, apenas um gabar-se mentiroso e blasfemo - um ridículo fingimento!

Se a mentira e a invenção, do ponto de vista psicológico, são perniciosas mesmo nas relações comuns com outras pessoas (uma álea onde uma certa medida de falsificação não é rara), toda falsidade é desastrosa em qualquer relação com a base de nosso próprio ser e com Deus que a nós se comunica através de nossa própria verdade interior. Falsificar nossa verdade interior, sob pretexto de nos unirmos a Deus, seria a mais trágica infidelidade, a nós mesmos em primeiro lugar, à vida, à própria realidade, é claro, a Deus

Thomas Merton, Poesia e Contemplação

quarta-feira, 1 de maio de 2013

A noite escura


Na "noite escura" dos sentimentos e dos sentidos, sente-se, por vezes frequentemente, angústia na oração. É necessário que assim seja, pois essa noite marca a transferência do pleno e livre controle de nossa vida interior para as mãos de um poder superior. E isso significa, também, que o tempo da obscuridade é, de fato, um tempo de riscos e difíceis opções. Começamos a sair de nós mesmos: isto é, somos arrastados para fora de nossas habituais e conscientes defesas. Essas defesas são também limitações que devemos abandonar se queremos crescer. Mas são elas, ao mesmo tempo, a seu modo, uma proteção contra as forças inconscientes demasiadamente grandes para enfrentarmos desnudados e sem proteção.

Se avançarmos nessa escuridão, teremos de encontrar-nos com essas inexoráveis forças. Teremos que enfrentar temores e dúvidas. Teremos de questionar toda a estrutura de nossa vida espiritual. Teremos que fazer uma nova apreciação daquilo que nos tem motivado a crer, a amar, a nos engajarmos em relação ao Deus invisível. E, nesse momento precisamente, toda luz espiritual é obscurecida, todos os valores perdem sua forma e se diluem, parecem não ter realidade e ficamos, por assim dizer, suspensos no vácuo.

O aspecto mais crucial dessa experiência é exatamente a tentação de duvidar do próprio Deus. Não devemos minimizar o fato de ser isso um verdadeiro risco. Pois, aqui, estamos nos adiantando e ultrapassando a fase em que Deus se tornou acessível à nossa mente por meio de simples e primitivas imagens. Estamos penetrando na noite em que Ele está presente sem qualquer imagem, invisível, imperscrutável e situado além de qualquer representação mental satisfatória.

Num momento desses, alguém que não esteja seriamente fundamentado numa autêntica fé teológica pode tudo perder do que tenha possuído. Pode sua oração tornar-se uma luta obscura e detestável para preservar as imagens e os enfeites que disfarçavam o vácuo interior. Deverá ele então enfrentar a verdade de seu vazio ou bater em retirada voltando ao domínio das imagens e analogias que não mais sirvam a uma vida espiritual madura. Poderá ele não ser capaz de enfrentar a tão terrível experiência de estar aparentemente sem fé, de maneira a nela realmente crescer. Pois é este o teste, este o fogo de purificação que queima até às cinzas os elementos humanos e acidentais da fé, de modo a libertar o profundo poder espiritual que existe no centro de nosso ser. 

Devastarei sua vinha e sua figueira, das quais dizia: eis a paga que me deram meus amantes. Farei delas um matagal, que os animais selvagens devorarão. Por isso a atrairei, conduzi-la-ei ao deserto e falar-lhe-ei ao coração. Dar-lhe-ei as suas vinhas e o vale de Acor, como parte de esperança. Aí ela se tornará como no tempo de sua juventude, como nos dias em que subiu da terra do Egito. Não lhe deixarei mais na boca os nomes dos Baals e ninguém pronunciará tais nomes. Farei para eles, naquele dia, uma aliança com os animais selvagens, as aves do céu e os répteis da terra; farei desaparecer do país o arco, a espada, a guerra e os farei repousar com segurança." (Os 2, 14;16-17; 19-20).
 Thomas Merton, Poesia e Contemplação

O conhecimento místico de Deus


O conhecimento unitivo e místico de Deus é "uma escuridão inefável e, contudo, uma luz essencial. Chama-se um incompreensível e solitário deserto. E isto certamente o é. Ninguém pode encontrar seu caminho ao atravessá-lo, nem ver alguns marcos, pois não existem tais pontos de referência que, pelos homens, possam ser reconhecidos. Por "escuridão" deve-se aqui entender uma luz que jamais iluminará uma inteligência criada; uma luz que jamais poderá ser naturalmente compreendida. Chamam-na de desértica, pois não há qualquer estrada que a ela conduza. Para ali chegar tem a alma de ser levada a ultrapassar-se para além de todo o seu entendimento. Pode, então, beber das águas do riacho em sua própria fonte, daquelas águas verdadeiras e essenciais. Nessa fonte, a água é agradável, fresca e pura como todo riacho é agradável antes de haver perdido seu delicioso frescor e pureza."

Tauler, Conferências Espirituais