quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Educação Moral - Jacques Maritain


O que tem grande importância para a virtude é o amor: porque o obstáculo fundamental à vida moral é o egoísmo e porque a mais profunda aspiração da vida moral é ser libertado de si mesmo, só o amor, porque é dom de si, é capaz de remover esse obstáculo e levar essa aspiração a sua realização. Mas o próprio amor está cercado por nosso central egoísmo e perpetuamente em perigo de se emaranhar nele ou de ser por ele capturado, ou porque esse egoísmo faz daqueles que amamos uma preso de nosso devorador amor próprio, ou porque os engloba no implacável amor próprio do grupo, de maneira a excluir de nosso amor os outros homens. O amor não se dirige a idéias, a abstrações, a possibilidades, mas sim a pessoas vivas. Deus é a única pessoa na qual o amor humano pode se atirar e se estabelecer de modo a abranger também todos os outros seres e libertar-se plenamente do amor egoísta de si mesmo.

O amor tanto o humano como o divino não são matérias de estudo ou ensinamento, pois ele é um dom. O amor de Deus é um dom da natureza e da graça, eis porque é objeto do primeiro mandamento. Como nos poderia ter sido ordenada a prática de um poder que não tivéssemos recebido ou que não podemos antes receber? Não há métodos nem técnicas humanas para se adquirir ou desenvolver a caridade, nem qualquer outra espécie de amor. Há, contudo, uma educação da caridade: educação que é obtida tanto pela provação e sofrimento como pelo auxílio e instrução humanos, daqueles cuja autoridade moral é reconhecida por nossa consciência.

A primeira esfera educacional a ser considerada aqui é a da família. Acaso não é o amor familiar o protótipo de todo amor unindo uma comunidade humana? E o amor fraternal, não é o nome mesmo desse amor do próximo que faz um só com o de Deus? Por mais sérias que sejam as deficiências apresentadas pelo grupo familiar em alguns casos, por graves que sejam as perturbações e desintegração impostas à vida de família pelas condições econômicas e sociais de nossa época, a natureza das coisas não pode ser mudada. E é da natureza das coisas, que a vitalidade e as virtudes do amor se desenvolvam na família, em primeiro lugar. Não só os exemplos dos pais e as regras de conduta que eles inculcam, e a inspiração, como os hábitos religiosos que eles conservam e as lembranças de seus antepassados que transmitem, numa palavra, a obra educativa que realizam diretamente, mas também de maneira mais geral, as experiências e as provações suportadas em comum, os esforços, os sofrimentos, as esperanças, a luta diária da vida familiar, e o amor cotidiano que cresce no meio de palmadas e beijos, tudo isso constitui os instrumentos normais que colaboram na formação da vontade e dos sentimentos da criança. 

A sociedade composta dos pais, irmãos e irmãs é a primeira sociedade humana, e o primeiro meio humano, onde consciente ou inconscientemente, ela conhece o amor e no qual recebe seu alimento moral. Aí, os conflitos e as harmonias têm ao mesmo tempo valor educativo. O menino que teve experiência da vida comum com suas irmãs, a menina que viveu com seus irmãos, adquiriram, sem que suspeitem, um avanço moral inestimável e insubstituível no que concerne às relações entre os sexos. E o que mais importa, o amor filial e o fraternal criam no coração da criança esse recanto de ternura e repouso, de cuja lembrança o homem tem tamanha necessidade e para o qual talvez depois de anos de amargura se voltará sempre que despertar nele um desejo natural de bondade e paz.

MARITAIN, Jacques. Rumos da educação. Rio de Janeiro: Agir, 1968. pp.152-154.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Defesa de Sócrates


"Se me oferecêsseis o perdão nestes termos, minha resposta seria: 

"Atenienses, tenho-vos em alta afeição e estima, mas prefiro obedecer aos céus e não a vós; portanto, enquanto eu tiver ânimo e força em mim, não deixarei de buscar a sabedoria ou de exortar-vos a buscar a verdade, apontando-a a qualquer de vós que eu casualmente encontre, com minhas costumeiras palavras: Meu bom amigo, tu és cidadão de Atenas, uma grande cidade, famosa por sua sabedoria e poderio; não te envergonhas de te ocupares tão arduamente da acumulação de riquezas, honrarias e reputação, sem nada dedicares à sabedoria, à verdade e à perfeição de tua alma? 

E se ele protestar que não se importa com essas coisas, não o liberarei de imediato, seguindo o meu caminho; vou questioná-lo, examiná-lo e testá-lo, e se me parecer que ele não possui a virtude que pretende ter, vou censurá-lo por ver como inúteis as coisas mais preciosas, e como valiosas as mais indignas. isso farei a qualquer um que encontre, jovem ou velho, cidadão ou estrangeiro, mas especialmente a vós, meus concidadãos, já que sois meu próprio povo. Pois tende a certeza de que tal é o desígnio dos céus; e acredito que a maior dádiva com que a fortuna já contemplou Atenas foi meu engajamento ao serviço dos céus. Pois minha única tarefa é persuadir todos vós, jovens ou velhos, a vos dedicar menos aos vossos corpos e à vossa riqueza, e mais à perfeição de vossas almas, fazendo disto vossa primeira preocupação e vos dizendo que a bondade não provém da riqueza, mas é a bondade que transforma a riqueza ou qualquer outra coisa, em público ou na vida privada, em algo valioso para o homem. 

Se, ao afirmar isto, estou corrompendo a juventude, tanto pior; mas, se afirmardes que eu nada mais tenho a dizer, estareis faltando com a verdade. Portanto, atenienses, digo eu concluindo, 'podeis ou não dar ouvidos a Anito; podeis ou não condenar-me; mas não mudarei meu comportamento, mesmo que eu tenha que morrer mil vezes."

Apologia de Sócrates, Platão.