Através de suas experiências infelizes, o monge zen torna-se ainda mais apto e disposto. Num sentido radical, o importante é ele despojar-se do eu, de tal modo que o eu não apareça mais como eu mesmo, nem como estado de ânimo, mas se torne uma grandeza desconhecida. O "Eu mesmo", como ponto de referência consciente ou secreto de toda a vivência cotidiana e de toda a experiência profissional, deve desaparecer.
Isso de forma alguma significa que o "eu" deva ser trocado ou substituído por um vago "nós". Pois mesmo as experiências em grupo ainda encaram a pessoa como uma individualidade, mesmo que ela não apresente uma reação pessoal ou personalizada diante dos fatos, reagindo muito mais de conformidade com o estilo e o ritmo do grupo. O "eu" deveria ser substituído por "aquilo".
Para começar, uma condição é suficiente: despojar-se do "eu" e da personalidade, no sentido de se tornar despersonalizado, o que não significa destituir-se do caráter.
Os exercícios, como evolução dos anteriores, devem conduzir a uma total impassibilidade. É válido observar impassivelmente tudo o que acontece e, mais ainda, o que me acontece, como se, no íntimo, nada me importasse. Isso significa por exemplo, não me alegrar mais com a minha felicidade do que com a felicidade alheia. Quanto ao sofrimento que atinge os outros, devo senti-lo como se fosse meu. Ou até mesmo sentir sinceramente alegria pela felicidade alheia, embora ela me cause amargura (quando, por exemplo, foi dada preferência a outra pessoa); ou afligir-me com a tristeza alheia, mesmo que aquilo que motivou a dor alheia me cause alegria.
É compreensível que o discípulo de Buda não deva odiar, e que, por fim, nem consiga mais fazê-lo. Da mesma forma, ele não deve mais amar no sentido vulgar que se atribui a essa palavra e, finalmente, nem pode mais amar. No entanto, ele não fica insensível, indiferente. O discípulo permite que tudo e que todos partilhem, sem esperar retribuição, de sua maravilhosa capacidade de amar, que é desapaixonada, desinteressada e uniforme: ele ama apenas por amor ao amor. Isso não acontece por lhe causar prazer pessoal, ou por saciar um anseio íntimo, precisa fazê-lo devido a esse amor que transborda.
Esse amor, portanto, se pudermos chamá-lo de amor, que já não pode transformar-se em ódio, situa-se além do amor e do ódio. Não é como uma labareda ardente que em si própria se extingue, mas como uma tranquila incandescência que uniformemente se alimenta de si própria. Esse amor - que não conhece desilusão, mas não recebe estímulo exterior - esse amor em que se mesclam bondade, compaixão e gratidão, esse amor que não alicia, que não impõe, que não exige, que não persegue nem inquieta, que não dá a fim de tomar, esse amor, por isso mesmo, possui um poder realmente admirável, porque nem a esse poder ele aspira. Ele é suave, meigo, enfim, irresistível. Mesmo as coisas inanimadas se abrem para ele, e os animais, que costumam ser medrosos e ariscos, confiam nele.
(...) E quanto mais vigorosamente se desenvolve o campo de força do monge zen, tanto menos consegue o "outro" iludi-lo ou comportar-se de modo como quer parecer. O campo de força do monge zen torna-se o meio em que o "outro" se descontrai e se desdobra espontaneamente, um meio que ele intui e ao qual se entrega e transfere, para ser por ele orientado.
Eugen Herrigel. O caminho zen. São Paulo: Pensamento, 2017. p.74-77.
Um comentário:
O amor deve ser sempre algo grande em nossos corações! Excelente texto...
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