quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Soberba e Neurose


Dizíamos que é no intento de buscar prazer e fugir da dor que a soberba tem a sua razão prática de ser. De fato, esse é o costume mais ordinário dos homens. Vemos isso a toda hora e podemos mesmo observá-lo em nós: estamos constantemente procurando os alimentos mais saborosos, a posição corporal mais confortável, o colchão mais macio, o clima mais agradável, etc e etc. De tal modo isso é comum que Freud, o sofista, chegou a dizer que eram justamente estes dois movimentos - busca do prazer e fuga da dor - o que moviam todos os homens. Vimos, porém, que daí podemos inferir as quatro paixões fundamentais da alma - o gozo, a esperança, a dor e o temor. Sim, estas são muito comuns justamente por serem traços da mediocridade.

Boécio dirá que só quando o homem vence estas quatro paixões fundamentais é que ele verá as coisas como verdadeiramente são. Só quando uma pessoa ama um amigo pelo que ele é e não pelo quão agradável ele é, é que poderá conhecê-lo de fato. Só quando alguém supera os limites do seu gosto pessoal é que poderá julgar objetivamente sobre qualquer coisa. A sensibilidade é, por força, uma característica particular; portanto, não é possível, com base nela, universalizar o que quer que seja. Os filósofos já o tinham dito há muito. Porém, na nossa modernidade  - ou pós-modernidade, como queiram - as pessoas parecem cultivar uma sacro-santa ignorância dos clássicos enquanto inebriam-se com os devaneios da renascença e da revolução francesa. Nada mais natural, então, do que os equívocos serem tão comuns.

Dizia o Gustavo Corção que Freud poderia ter sido contra-argumentado por qualquer estudante medieval. Hoje, porém, ele está entre os gurus da Academia. Dizia o Chesterton que os antigos devem ter sido mesmo muito tolos se realmente conseguiram a inacreditável façanha de terem sido mais tolos que nós. Enfim, erramos muito não conhecendo essas grandes luzes e nos atendo somente aos pálidos pisca-piscas desse nosso tempo desorientado.

S. João da Cruz dirá que ser cativo das quatro paixões é um estado baixo e que, ao contrário, o homem deve libertar-se delas. Eu já falei desse assunto umas três ou quatro vezes aqui no blog. Quem se interessar, é só procurar.

Dizíamos, ainda, no post anterior, que a busca frenética por prazer pode provocar o efeito negativo de originar medos neuróticos. E aqui entramos precisamente no assunto específico pelo qual me propus a escrever estes posts.

Há uma tendência natural em nós, dizíamos no primeiro artigo, que se orienta à preservação da própria vida. O primeiro princípio da Lei Natural é justamente este: "a vida física é um bem e deve ser preservado". Naturalmente, então, nós nos protegemos das ameaças e temos certa repugnância pela morte. A soberba, porém, estende este cuidado natural à sensibilidade, fazendo que o indivíduo fuja de todo desprazer. Nós, de fato, temos esses chamados "mecanismos de defesa" que são reações naturais cujo fim é nos preservar das ameaças que podemos encontrar no mundo.

Acontece, porém, que, assoberbados, passamos a avaliar toda e qualquer coisa nas suas possibilidades de nos causar algum desconforto. Naturalmente, os mecanismos de defesa passam a operar de modo exagerado. Há, já, aí uma tensão desnecessária. Aquele estado tão saudável da comum despreocupação, de um certo arriscar-se naturalmente, é abandonado. Como o nosso ser é constituído de tal modo que, em face de perigos reais, todo ele se prepara para a fuga ou para a luta e concentra-se totalmente na possível ameaça, o neurótico, procurando todas as potenciais ameaças ao seu conforto, se verá num trabalho contínuo de destacar objetos ou situações, perdendo a visão do contexto e distraindo-se, como já dissemos, do valor inerente às próprias coisas e situações.

Como a calma ou o silêncio supõem um certo abandono, o neurótico meio que desconhece este estado. Além disto, quando encontra, segundo seus argumentos despropositados, algo que possa lhe causar alguma dor, voltando-se totalmente para aquele objeto e separando-o do seu contexto, o neurótico o agiganta de tal modo que, em todo o universo, parece que só há aquilo. Moscas se tornam monstros e a humanidade passa a existir apenas para assistir essa sua luta pela própria sobrevivência. Tudo, porém, se dá no nível imaginário. Se ele confidencia a alguém os seus medos, esta outra pessoa, habitando fora do seu mundo ilusório, verá pouco sentido naqueles temores todos. Para o neurótico, porém, é tudo muito racional. Ele elabora uma teoria, e tudo começa com um "e se?". Como está ameaçado, todo o seu ser se dispõe a ajudá-lo para checar se há ou não fundamento no seu temor. A memória privilegia as informações relacionadas; há mirabolantes acrobacias de associação de idéias; a sensibilidade responde com certas doses de angústia, como se estivesse a concordar com as conclusões que se passaram no íntimo da alma. O indivíduo se vê rigorosamente estreitado neste seu drama; falta-lhe ar. O mundo, antes tão amplo, agora lhe oprime com paredes estreitíssimas das quais, pensa, seria imensamente feliz em libertar-se. Felizes são os outros que não experimentam o que ele experimenta. Como a neurose o acostuma a sempre fazer previsões - para ver se há ameaças no caminho - no auge da sua neurose ele também prevê: "nunca conseguirei sair dessa enrascada..."

Pobre neurótico... Escravo dos monstros que ele mesmo cria. Conhecerá a angústia e o medo. Será como alguém no deserto que, padecendo de grande sede, vê miragens. Nessas suas visões, ele distingue sombras de animais ameaçadores que, naturalmente, o forçam a correr, a gastar energia, e quanto mais corre, mais ele reforça em si mesmo que a ameaça é verdadeira. Somente depois de bastante tempo é que poderá lhe ocorrer a idéia de que aqueles monstros têm algo de estranho porque nunca o alcançam. Mesmo quando ele, exausto, numa atitude de coragem desesperada, se rende, os animais misteriosamente não fazem o desfecho.

Porém, até chegar aí, o coitado correrá bastante. Acontece que ele está preso na própria subjetividade. A sua fuga da dor pregou-lhe uma peça que é, mesmo, muito incômoda. Todos os acontecimentos da vida parecem confirmar a sua teoria. Todos os objetos que encontra parecem ser um símbolo daquele seu drama. Se escuta uma música na rua, a frase específica que ouviu pareceu falar dele. Talvez pense que é um aviso de outro mundo, rs.. Mas não, trata-se apenas da sua alma, sempre atenta, que reconhece rapidamente qualquer mínima coisa que possa ter relação com os seus medos. 

Grande parte da sua angústia vem, também, de que ninguém consegue compreendê-lo, ou pouca gente dá o devido valor ao suposto perigo que corre. Vê-se sozinho. Gostaria muito que alguém, ao olhá-lo, adivinhasse o que lhe vai na alma e oferecesse uma mínima luz que fosse. Mas ninguém nota. Na verdade, mesmo que aparecesse alguém, não faria, a princípio, tanta diferença assim, pois o neurótico, acostumado a guiar-se somente pelas próprias previsões e suposições, não tarda a julgar inútil a intervenção de outra pessoa. Ele simplesmente não acredita que algo vá servir; é cético. Se é necessário todo um processo para libertar-se da neurose, ele até ousa dar o primeiro passo, mas como nada há que mude nesse primeiro passo, o neurótico se apressa em fazer uma negativa previsão: não vai dar certo. E realmente tende a desistir. O neurótico é muito chato.

É como alguém numa sala escura. Ele não vê nada. No entanto, tampouco acredita que alguém compreenda melhor que ele a situação em que se encontra. Se alguém diz: "dê dez passos à frente, pois você vai encontrar uma porta pela qual poderá sair dessa sala escura", ele até dá um ou dois, mas depois, escravo da própria suposição, não dá os outros. E assim, perdura o seu próprio drama. Se fosse capaz de abrir mão de si mesmo, do próprio parecer, e de seguir um outro, poderia sair desse aperto. Claro que, sendo a neurose um hábito, seria necessário trabalhar para adquirir o hábito oposto: de duvidar das próprias suposições e de fazer as coisas independentemente do prazer ou desconforto que vê nelas. Quando uma pessoa vive assim - fazendo o que deve ser feito, independentemente dos gostos -, os seus horizontes tornam-se sempre mais amplos, pois ela não se reduz ao campo da própria subjetividade.

Para o neurótico, no entanto, é preciso muito esforço para se confiar a outra pessoa. Voltemos ao exemplo da miragem no deserto. O rapaz está sentado na areia e, de repente, divisa um monstro ameaçador. A sua natural inclinação é correr. Só que é precisamente no ato de correr que ele reforça a miragem. Suponhamos, então, que outra pessoa dissesse: "se quiser sair disso, fica sentado. Não corre." Para o neurótico, que se sente ameaçado e para quem a angústia que experimenta é muito real, este é um conselho irrazoável. Talvez ele veja lá longe na possibilidade de estar sendo enganado por uma ilusão. No entanto, ele pensa: "se eu estiver errado, verei que é uma miragem. Mas se eu estiver certo e o monstro for real, perderei a vida. O que compensa mais? Ficar e morrer, ou ser um iludido angustiado, porém vivo?" E aí ele dá uma banana à pessoa que tentou ajudá-lo e volta a correr, rsrs. Neuróticos são, mesmo, muito chatos. Haha...

Claro que estas situações que vou descrevendo são apenas estruturas gerais dos tipos de neurose que podem existir num sujeito. Há pessoas que não dirigem, porque pensam que o carro pode, justamente naquela hora, estar com os freios roídos ou coisa do tipo; há outros em que a neurose toma a forma de ciúme e tudo no universo parece confirmar que a outra pessoa está a traí-la. Há outros que, obcecados com a existência de bactérias, lavam demasiadamente as mãos, supondo que, se não o fizerem, poderão ingerir qualquer coisa mortal que os levará para a cova nas próximas horas ou dias ou semanas, e coisas do tipo. Há ainda os que vivem preocupados excessivamente com a opinião dos outros a seu respeito: "será que fui grosseiro naquele dia?", "será que a pessoa tá pensando isso ou aquilo de mim"? Acontece que, no neurótico, esses pensamentos não são uma coisa num momento do dia. Eles tendem a ficar continuamente o dia inteiro causando realmente muita angústia e cansaço. E tudo tem, sem dúvida nenhuma, origem na soberba, neste medo exagerado do desconforto, nesta supervalorização de si mesmo que o faz perder de vista as coisas que realmente importam.

É muito interessante, então, a gente considerar umas coisas que Jesus diz, e que, se praticadas, serviriam como uma luva para os neuróticos. Enquanto estes se apegam excessivamente à própria vida, Jesus diz: "Tenha a própria vida em pouca conta" e "quem não odeia a própria vida não é digno de mim" e ainda "quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la. Quem aceitar perdê-la por Mim (por algo exterior ao próprio sujeito), vai ganhá-la".

Jesus conhece os efeitos funestos da soberba na alma humana e vem, por isto, nos ensinar como viver em liberdade. Enquanto o egoísmo nos coloca numa busca frenética e contínua de prazer, o que Jesus nos oferece? A Cruz! E a Cruz se torna instrumento de liberdade, justamente porque corta esta tendência à neurose que temos; porque nos liberta desta escravidão, e nos ensina a abrir-nos, passando pela dor, a algo que nos transcende. Este é o caminho da liberdade. O amor verdadeiro sempre provoca um êxtase - um sair de si - que é precisamente o oposto da neurose ou da soberba, que são um fechar-se em si mesmo. Portanto, se é essa a natureza do negócio, podem existir vários modos de lutar contra uma neurose ou outra, mas para acabar com a raiz da neurose, que é a soberba, somente a vida espiritual.

A teologia mística nos ensina que a soberba é o último inimigo com o qual iremos lutar de frente. Até lá, nós vamos enfrentando os seus filhos, que são os demais vícios. Depois, porém, que alguém a vence, essa pessoa adquire uma quietude profunda. A inquietação é sempre amor-próprio.

Uma última coisa sobre a neurose: ela se associa a situações ou objetos específicos. Quando tomamos a firme resolução de combatê-la e vencê-la, ela se solta da tal situação e fica como que suspensa, podendo vincular-se, posteriormente, a outra situação. É que ela consiste numa inclinação natural da pessoa à defesa exagerada de si mesmo. E naturalmente o neurótico encontrará outras ameaças. Mas é interessante isto: a neurose geralmente se fixa mais especificamente em uma só situação. Vez ou outra, está vinculada a duas, mas isto lhe diminui a força em ambas. Por estas coisas a gente vai percebendo que quem tem a própria vida em pouca conta, como diz Jesus, deixa de ser neurótico. ^^

E quem duvida disso, eu digo: faça o teste! Se você não quer fazer, pensando de antemão que não vai servir, é que você é um neurótico. haha... Vai uma frase do filho do Simba, do Rei Leão, que traduz a atitude que o neurótico deveria tomar diante dos seus medos: "eu rio na cara do perigo!" ^^ 

No próximo post, tratarei ainda de certas características da neurose, ainda mais minuciosas, e já irei pondo uns modos de sacaneá-la, rsrs..  Dizia S. Paulo: "aborrecei o mal com o bem". Serve pra o nosso assunto também. 

Fábio

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Love is Forever

Jesus: Desânimo e Inquietação são frutos do amor próprio


Jesus: Minha filha, fica sabendo que os maiores impecilhos à santidade são o desânimo e a inquietacão infundada. Eles impedem de praticar a virtude. Todas a tentacões juntas não deveriam nem por um momento perturbar a tua paz interior. A suscetibilidade e o desânimo são frutos do teu amor próprio. Não deves nunca desanimar, mas esforçar-te para que no lugar do amor próprio possa reinar o amor a Mim. Potanto, tem confiança, Minha filha; não deves desanimar. Vem buscar o Meu perdão. Eu estou sempre pronto a te perdoar. Quantas vezes Me pedires o perdão, tantas vezes glorificarás a Minha misericórdia.

Diário de Santa Faustina,  n.1488

Soberba - Frutos Gerais


Dizíamos, antes, que o mal não pode ser substância; este é também o motivo pelo que a soberba, na sua revolução contra a verdade, nada pode fazer senão distorcê-la, associando-se, para tal, a substâncias e valores existentes.

Como seres humanos, nós temos várias necessidades e aptidões naturais cujas satisfações e exercícios constituem um bem. Eis alguns exemplos: temos uma inclinação à preservação da vida, decorrente da Lei Natural; temos a necessidade de nos alimentarmos; somos naturalmente orientados à busca da verdade e em geral canalizamos as nossas ações para aquilo que nos parece ser um bem, atitude decorrente de uma sede intrínseca de felicidade que existe no ser humano. Temos ainda uma tendência à procriação, entre outras coisas. Tudo isto, vivido com ordem, tende a contribuir para que o homem se realize em sua natureza.

O que, porém, a soberba faz? Ela associa-se a cada uma dessas necessidades e aptidões e as distorce. Desse modo, a inclinação à preservação da vida se torna egocentrismo e fuga de todo e qualquer desprazer - no sentido negativo, se torna medo neurótico. A necessidade de nos alimentarmos se degrada em uma das formas de gula (a gastrimargia ou a laudamargia)*; a inclinação natural à verdade se torna curiosidade; a busca do bem e da felicidade se converte em mera busca de prazer; a tendência à procriação se perverte em luxúria. Eis o retrato do homem egoísta.

Acontece, porém, que desviada assim a finalidade de todas essas nossas aptidões, elas terminam impedindo o termo natural do ser humano que é a felicidade. Ausentado deste bem, o homem busca distrair-se continuamente com a posse de prazer. Este se torna o critério para as suas ações e escolhas: o que causa prazer é buscado; o que causa desprazer é evitado. Deste modo, nubla-se a dimensão transcendente e reduz-se tudo ao âmbito subjetivo. Os valores perdem seu fundamento ontológico e tornam-se relativizados. Não há mais uma primazia do real, o que causa um embotamento da inteligência que, a partir de então, anda ocupada predominantemente com o seu drama egoísta de encontrar prazer e de evitar a dor. Tudo se reduz ao seu tamanho. Retirou-se o sol do centro; caiu-se no egocentrismo. 

Este tipo de sujeito não percebe o valor intrínseco das coisas; vive preocupado com a própria imagem; pode se tornar avarento, luxurioso, guloso, etc. É incapaz de fazer sacrifícios, de sofrer em silêncio, de mortificar-se. Sua alma é um tumulto de caprichos e banalidades. A soberba tende a se tornar hábito, isto é, vício e, para que o homem recupere a saúde, torna-se necessário a intervenção de um outro. Em seguida, comentaremos algumas sutilezas deste processo, não ainda de intervenção, mas das implicações interiores da soberba, sobretudo na confecção de ameaças imaginárias.

Por fim, convém sintetizar toda a dinâmica da soberba nestas duas características, que, na verdade, não são mais que uma só, vista sob aspectos diversos: "A busca do prazer, e a fuga da dor". Disto surgem as quatro paixões fundamentais, abordadas por vários filósofos e retomadas por Boécio e por S. João da Cruz: 

1 O gozo
2 A dor
3 A esperança - expectação do gozo
4 O medo - expectação da dor

* Gastrimargia é a gula que consiste em comer muito. Laudamargia é a gula que consiste em comer só o que satisfaz o paladar.

Fábio

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Soberba - Origem e Traços Gerais


Como sabemos, o mal não existe enquanto substância. Já o provara Sto Agostinho mostrando que o mal é sempre ausência; ausência de que? De ser ou de ordem. Um buraco não existe por si mesmo; ao contrário, ele precisa se vincular a um ser determinado. Assim, falamos de buraco no chão, na parede, no papel, etc. Neste exemplo, observamos a falta de ser. Ninguém, porém, poderia pensar num buraco em si, sem qualquer ser no qual se anexasse. Da mesma forma, se nos nascessem orelhas nos braços, isto seria um mal por ser falta de ordem.

Portanto, a existência do mal é absolutamente condicionada à pré-existência do bem. Isto significa que a ocorrência do mal denuncia forçosamente o predomínio do bem. Isto é interessantíssimo. Jamais se poderá dizer que o mal dominou o mundo absolutamente - podemos falar algo semelhante do mal moral -, pois, toda vez que ele acontece, dá testemunho do bem. Enquanto houver mal no mundo é porque há mundo, isto é, permanece o bem da existência do mundo.

Portanto, o mal não pode criar substâncias. Mesmo o demônio substancialmente é bom. Sua inteligência e vontade férrea são, naturalmente, bens. Porém, ele usa estes seus dotes para o mal; eis, aí, o mal moral. A contradição de Lúcifer é que, se alguém por acaso se admira da sua inteligência e da maestria dos seus planos para perder os homens, satisfazendo, portanto, ao seu orgulho, esta mesma pessoa rende, no mesmo ato, uma profunda admiração a Deus, o seu Criador. Eis o drama do demônio: detestar a Deus mas contemplar em si mesmo a perfeição que fala continuamente dAquele que o fez.

O demônio é chamado de Pai da Mentira. Naturalmente, se Deus é a Verdade, e o demônio se opõe a Deus, é lógico que só o poderia fazer aderindo à mentira. Daí que, desde o início dos tempos, o demônio trabalha com imprecisões, suposições falsas, versões torcidas, teorias falaciosas. Lembremos que os anjos - e Lúcifer é um anjo - não têm corpos. Como, então, se pode entender a célebre batalha que ocorreu no Céu e que resultou na queda de Lúcifer e sua expulsão do Paraíso? O combate, obviamente, não se podendo dar fisicamente, se empreendeu no campo das idéias, pois os anjos são substâncias espirituais simples, dotadas de inteligência e vontade. Dar uma estudada nas relações entre estas duas potências, pode ajudar a entender tudo isso um pouco melhor.

A oposição de Lúcifer, o que o levou a mentir e torcer a verdade, deu-se por causa de sua soberba (Superbia), pela qual se indignou contra a ordem das coisas. Veremos que é esta mesma soberba o que se insere na alma humana quando esta sofre a Queda. Reparemos esta relação entre soberba e mentira.

Naturalmente, Deus é o centro da criação, como um Sol ao redor do qual devem gravitar todos os demais seres. A ordem do todo depende disso. Quando, porém, se exclui o sol do centro, provoca-se uma revolução contra a harmonia, donde resulta, logicamente, a desarmonia, a desordem. Esta desordem perpetuada poderia muito bem ser chamada de inferno, isto é, uma eterna rebelião contra Deus.

O que Lúcifer faz é pretender igualar-se a Deus. Não o podendo - obviamente - ele sugere esta mesma vontade no homem. Este passa a querer ser igual a Deus sem Deus, o que o insere numa atitude de oposição à ordem e ao bem. Algumas consequências disso são o que aqui chamaremos neurose, que é uma facilidade em torcer o sentido das coisas, em fazer suposições erradas, em se proteger freneticamente de ameaças inexistentes.

Quando o homem se torna soberbo, isto o afasta do amor, pois amor e soberba são antagônicos. Quanto mais há amor numa alma, menos há soberba e, logo, há mais humildade. Quanto, porém, mais soberba há, menos amor e menos humildade se tem. A soberba é a mãe de todos os pecados humanos, todos eles consistindo numa revolta contra Deus, numa preferência das criaturas em detrimento da divindade, numa negação prática do amor. No entanto, todos os pecados, considerados em si, podem ser entendidos como uma fuga de Deus. Já a soberba, diferentemente, não foge, mas O enfrenta. Daí a Escritura dizer que Deus resiste ao soberbo e se revela ao humilde.

Se desgraçadamente este mal, a soberba, se inseriu na alma humana, já se vê que ela - a alma - passará a encontrar em si uma tendência ao erro, ao egoísmo, à mentira, à negação do bem, e isso tanto mais quanto maior for a sua soberba. Falaremos, em seguida, da dinâmica própria desta mãe dos vícios.

domingo, 25 de setembro de 2011

Aos meus amigos medrosos e neuróticos

Caríssimos, vou passar a escrever, no meio dos artigos que vez ou outra vou postando aqui, uns textos relacionados a isto que chamam de neurose, no seu sentido mais comum. Lá nas minhas aulas, anos atrás, de Psicanálise, o professor costumava dizer: "nós, os neuróticos...". Esta teoria - que é provada ser falsa - Rudolph Allers que o diga - vê algo em comum nos homens pelo que os afirma neuróticos. Eu, particularmente, já sofri bastante com isso, mas aprendi a lutar, entendi a dinâmica do negócio, e alcancei uma quietude de alma; vez ou outra levo uns sopapos, mas nada comparado ao intenso sofrimento de anos atrás, além do que estas lutas vão amadurecendo e ensinando a arte do combate interior. Alguém, recentemente, dizia que a cruz é passageira, mas os seus efeitos benéficos são duradouros. Eu posso, penso, afirmar isso com um pouco de propriedade.

Pois bem. De lá para cá, fui notando certos traços peculiares da neurose - mantenho este termo por convenção, e não porque queira dar qualquer crédito a Freud - e, desde então, pude reconhecer estes traços em inúmeros indivíduos, dentre os quais, uns muito próximos. Deus parece também ter a intenção de fazer com que eu conheça pessoas que trazem este tipo de angústia. Um "marinheiro de primeira viagem", de fato, sofrerá bastante com isso; será uma marionete ingênua nas mãos dos seus medos. Mas a experiência amadurece e ensina. A quietude é, sem dúvida, alcançável.

Vou, então, escrever uns posts tratando disto que eu chamo de neurose, mas que é tão somente o drama da nossa natureza decaída e marcada vivamente pelo ferro da soberba. Compreender direito a dinâmica desta mãe de todos os vícios nos permitirá, depois de um tempo de luta inteligente e estratégica, repetir com o salmista: "a minha alma como um pássaro escapou do laço que lhe armara o caçador". Os amigos reconhecerão aí, dentro de suas almas, bastante coisa que eu irei pondo por aqui. E, de antemão, não se preocupem: a neurose é uma coisa comum; é herança de Adão; é somente a consequência da nossa alma assoberbada. 

E se por acaso, não obstante as poucas visitas deste humilde espaço, algum simpático dos sofismas freudianos vier aqui vomitar baboseira técnica e besteirol gnóstico cabalístico, a depender do tom que usar, ou será ignorado ou respondido à altura. Não é com vocês que eu quero papo. Podem continuar com a sua religiãozinha do divã. Então, melhor ignorar o que eu escrevo; tenham-me como um tolo e pronto. ^^

Aos demais, sejam muito bem-vindos. Escreverei estes textos intentando ser útil.

Que Nosso Senhor e Sua Mãe Santíssima nos conduzam nestes assuntos. 

Pax.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Seja muito bem vinda, Primavera


"Oh, esta é a voz do meu Amado! Ei-lo que aí vem, saltando sobre os montes, pulando sobre as colunas. Meu bem-Amado disse-me: "Levanta-te, minha amiga; vem, formosa minha. Eis que o inverno passou, cessaram e desapareceram as chuvas. Apareceram as flores na nossa terra, voltou o tempo das canções. Em nossas terras já se ouve a voz da rola. A figueira já começa a dar os seus figos, e a vinha em flor exala o seu perfume. Levanta-te, minha amada, formosa minha, e vem." (Ct 2,8;10-13)

Que se faça primavera também na minha alma. 

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Primavera Chegando...



Quando uma flor se agita aos primeiros raios do sol, é uma suave lição, que podemos aproveitar; ela indica-nos um outro sol, cuja luz nos aquece o coração; quando se apraz crescer entre as urzes, ensina-nos a humildade e a vida oculta; quando nos olha e parece suplicar-nos que a reguemos a fim de reparar a vida quase extinta, ensina-nos a solicitar também o verdadeiro orvalho das almas. Enfim quando pende e morre, faz-nos sinal, e recorda-nos que a nossa vida será em breve descolorida; mostra-nos que a existência da flor e a do homem, que pareciam tão diferentes na duração, se confundem perante a eternidade, em que mil anos são como um dia.

Monsenhor Landriot

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Apóstolos da Santa Indignação


Por toda a história, podemos ver estes santos que personificam a divina Resignação, trovadores da perfeita alegria que consiste no perfeito desprezo de si mesmos. No entanto, vez ou outra também surge - e o nosso tempo clama desesperadamente por isso - outro tipo de santos que encarnam, por sua vez, a divina Indignação. Estes não se contentam apenas em se vencerem a si mesmos; em nome de Deus, eles partem para a guerra, segurando vigorosamente as armas de que dispõem. Um exemplo:

Para São Francisco de Assis, santo eminentíssimo do primeiro tipo, era-lhe suficiente ser maltratado e fazer que isto não repercutisse no seu interior. Mesmo debaixo de pauladas, a raiva sequer se insinuava na sua alma. Mas, e quanto ao seu agressor? De fato, pode acontecer de ele se converter a partir da profunda humildade que vê diante de si. Mas pode também acontecer que seu sono seja tão forte, que sua cegueira seja tal que, como São Paulo antes da conversão, nada lhe venha de remorso em maltratar um sujeito inocente. 

Neste caso, não fazer mais nada é como consentir em agravar a culpa de um cego tolo que bate num santo. Voltando a São Paulo, observemos que não foi a perfeição de nenhuma alma vitimada por ele o que provocou a sua conversão. No seu caso, Deus, Ele mesmo, precisou usar de uma certa violência: derrubou-o literalmente do cavalo e lhe mostrou irrefutavelmente como estava cego.

Estas intervenções mais enérgicas são absolutamente necessárias em nossa contemporaneidade. Não se deve, porém, esperar que Deus se faça ouvir e ver, como naquele caso, a todos os sonâmbulos que perambulam neste tempo. Não. O que é urgente é o surgimento de santos do segundo tipo; sujeitos que não apenas se vençam a si mesmos, mas que cheguem também, se necessário, a trocar pauladas com o agressor*, não para se defenderem, mas para defendê-lo da própria cegueira; para acordá-lo e convertê-lo.

Mas não nos iludamos. Não basta ser um caricato de santo, um santarrão. Este tipo de embate - o trocar pauladas - pode ser efetivado por quem sequer venceu o próprio egoísmo. Na verdade, esta atitude é a primeira requisitada pela soberba, quando esta sofre qualquer afronta. Responder com a mesma moeda é a condição torpe a que somos inclinados desde a Queda. Não é disso que tratamos aqui.

Os santos que aqui são sugeridos devem ser homens profundamente livres, isentos de amor próprio e respeito humano. Nota-se que estes devem ser gigantes do espírito que, esquecidos de si mesmos, combatam unicamente pela glória de Deus e a salvação das almas. Talvez sejam estes bem-aventurados os prenunciados por S. Luís Maria Grignion de Montfort e que, segundo ele, sobrepujariam todos os anteriores pela sua grandeza.

Santos do primeiro tipo também são absolutamente necessários. Mas os do segundo, mais que nunca. O que se espera, portanto, são Apóstolos da Santa Indignação que sejam capazes de fazer caírem do cavalo todos estes modernos inimigos de Deus. Deus saberá suscitá-los. Ao que tudo indica, eles já devem estar por aí, sendo formados...

Fábio


*O exemplo de "trocar pauladas" é só ilustrativo. Não o defendemos num sentido literal. Os embates aqui referidos são, muito mais, intervenções no campo das idéias. Porém, também não temos, com esta ressalva, o intento de demonizar um combate literal. No decorrer da história, estes foram legítimos e necessários, diversas vezes. 

domingo, 18 de setembro de 2011

Que Deus nos livre disso tudo

Tenho notado as coisas ao meu redor, e parece-me que o nível de impaciência e de maldade tem crescido bastante. Pessoas que simplesmente não se entram; um simples pigarro ou uma expressão corriqueira são suficientes para levantar a poeira da discórdia, reativar as más paixões, cegar o indivíduo contrapondo, à limpidez do seu olhar, a trave bruta e grossa do seu egoísmo que vê no outro alguém a ser destruído.

Olhando assim, de longe, dir-se-ia que isto é, por força, resultado de uma intervenção sombria. Mas não será isto uma mera suposição de quem vive o fogo da experiência ou, ainda, de quem não compreendeu de todo a baixeza da natureza humana? De fato, o egoísmo descobre mil meios de fazer adentrar, na existência de um indivíduo, algumas centelhas do inferno e, quando algo se nota, já se tem uma vida em labaredas. Que tosquice isso tudo! E nós, que um dia fomos chamados de deuses... 

No entanto, o mistério da iniquidade, não obstante ser ausência de bem, é bastante denso e real. Aquela sombra suspeita e fedida que vive a espreitar e, dizia o Apóstolo, a rugir procurando a quem devorar, existe e não nos quer bem. Dia a dia, torna-se mais evidente que, se Alguém não intervém de cima, pouco ou nada poderíamos fazer. "Como a ti se elevará o homem que criaste, se Tu não o levantares?", pergunta S. João da Cruz a Nosso Senhor. 

Porém, rendamos graças a Deus porque esta intervenção vertical existe, e é constante. É a Igreja que a dispensa aos pobres filhos de Adão. Acuda-nos, Senhor. Não deixeis que nenhum de nós escape de vossas santas mãos. Não deixeis a vossa obra inacabada. Dai aos teus servos, de novo, um coração puro e um espírito decidido. 

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Primeiro dia de Professor num Cursinho


Hoje foi o meu primeiro dia como professor de Filosofia num Cursinho Pré-Vestibular. Ainda estou em fase de experimentação; pelo que me disseram, o critério pra saber se fica ou se sai, é os alunos gostarem. Estou procurando, então, ser bastante claro na exposição, mas nada de inventar um sujeito que eu não seja. Depois, não creio que os responsáveis estarão nos pés dos alunos a fim de saber se a aula lhes agradou ou não. Além do que, pelo que noto, a necessidade deles de um professor na área de Filosofia é grande. Uma das responsáveis insistiu bastante pra eu ficar. Pois bem, hoje dei minha primeira aula. Habituado às aulas do curso, a tendência é, logo, aprofundar o assunto. Mas recentemente, dando uma aula de doutrina católica, notei que os presentes não acompanhavam bem. Portanto, tenho de fazer um esforço mesmo para explicar os rudimentos e fazer-me compreender. Para tal, é preciso passar bastante tempo numa mesma idéia, explicando-a de diversos modos. Mas a experiência foi boa. Eu, particularmente, gostei bastante.

Na verdade, eu já venho dando aulas num cursinho popular; mas é um trabalho voluntário, e minha aula é somente uma vez por mês, algo meio que representativo. Não dá pra dar três milênios de Filosofia, nem sequer por cima, com somente uma aula por mês. Além disto, este trabalho que iniciei hoje é remunerado, coisa que eu estava precisando muito, seja pela questão financeira mesmo, seja pra fazer parar ou diminuir o falatório por aqui.

Mas, enfim. Rezo pra que eu possa ficar. E que se resolvam uns outros problemitas aí. Mas isso aí é com Nosso Senhor.

Gustavo Corção sobre Léon Bloy


Léon Bloy jovem
Gustavo Corção


"O que admiramos em Bloy é a estrutura gótica de sua alma, o ardor incondicional de sua fé, e, de certo modo, o motivo mesmo que o leva ao univocismo na compreensão do fenômeno histórico. O que nele admiramos, a par da grandeza de escritor que nem sempre tinha razão contra Rafael, Bossuet, ou contra seu diletíssimo amigo Roualt, é a perfeita fidelidade à Dama Pobreza, que fez dele um genuíno descendente de S. Francisco de Assis."

("Respondendo a uma Provocação", A Ordem, Dezembro de 1947)


"Léon Bloy testemunhou, e nos fez sentir como ninguém, a invisível presença dos eleitos, o acotovelar dos anjos, o hálito dos vivos e dos mortos. Muitas noites passava a chorar com as almas do purgatório; e muitos dias passava a esperar as notícias distantes dos invisíveis próximos. Sentia a comunhão dos santos como a aranha sente a teia, como o pássaro sente a brisa, como o ouvido de mãe mal adormecida sente os mil rumores de uma casa cheia de filhos, que se agitam, que ressonam, que estremecem... Sentia os passos dos santos como se o chão da eternidade fosse a pele de um tambor.


"A Igreja de Deus é verdadeiramente um corpo, aquecido por um sangue e animado por um espírito: as partes se comunicam, se encontram, e muitas vezes se chocam. O Universo não é tão grande como o pintam os astrônomos: é antes uma nave de catedral onde o humilde cochilo de um penitente ressoa em cada nicho e interessa cada alma." 

("Léon Bloy", in Dez Anos)

Fonte: Permanência

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

O Gênero Humano Adormecido


"É a mais banal das ilusões acreditar que se é realmente o que se parece ser. E essa ilusão universal é corroborada, ao longo da vida, pela impostura tenebrosa de todos os nossos sentidos. Não será preciso nada menos do que a morte para nos ensinar que nos enganamos sempre. No momento em que nos for revelada nossa identidade, tão desconhecida por nós mesmos, inconcebíveis abismos se desvendarão ante nossos verdadeiros olhos - abismos em nós, e fora de nós. Os homens, as coisas, os acontecimentos, ser-nos-ão enfim divulgados, e cada um poderá verificar a afirmação daquele místico que dizia que, a partir da Queda, o gênero humano inteiro adormecera profundamente."

Léon Bloy