quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Soberba e Neurose


Dizíamos que é no intento de buscar prazer e fugir da dor que a soberba tem a sua razão prática de ser. De fato, esse é o costume mais ordinário dos homens. Vemos isso a toda hora e podemos mesmo observá-lo em nós: estamos constantemente procurando os alimentos mais saborosos, a posição corporal mais confortável, o colchão mais macio, o clima mais agradável, etc e etc. De tal modo isso é comum que Freud, o sofista, chegou a dizer que eram justamente estes dois movimentos - busca do prazer e fuga da dor - o que moviam todos os homens. Vimos, porém, que daí podemos inferir as quatro paixões fundamentais da alma - o gozo, a esperança, a dor e o temor. Sim, estas são muito comuns justamente por serem traços da mediocridade.

Boécio dirá que só quando o homem vence estas quatro paixões fundamentais é que ele verá as coisas como verdadeiramente são. Só quando uma pessoa ama um amigo pelo que ele é e não pelo quão agradável ele é, é que poderá conhecê-lo de fato. Só quando alguém supera os limites do seu gosto pessoal é que poderá julgar objetivamente sobre qualquer coisa. A sensibilidade é, por força, uma característica particular; portanto, não é possível, com base nela, universalizar o que quer que seja. Os filósofos já o tinham dito há muito. Porém, na nossa modernidade  - ou pós-modernidade, como queiram - as pessoas parecem cultivar uma sacro-santa ignorância dos clássicos enquanto inebriam-se com os devaneios da renascença e da revolução francesa. Nada mais natural, então, do que os equívocos serem tão comuns.

Dizia o Gustavo Corção que Freud poderia ter sido contra-argumentado por qualquer estudante medieval. Hoje, porém, ele está entre os gurus da Academia. Dizia o Chesterton que os antigos devem ter sido mesmo muito tolos se realmente conseguiram a inacreditável façanha de terem sido mais tolos que nós. Enfim, erramos muito não conhecendo essas grandes luzes e nos atendo somente aos pálidos pisca-piscas desse nosso tempo desorientado.

S. João da Cruz dirá que ser cativo das quatro paixões é um estado baixo e que, ao contrário, o homem deve libertar-se delas. Eu já falei desse assunto umas três ou quatro vezes aqui no blog. Quem se interessar, é só procurar.

Dizíamos, ainda, no post anterior, que a busca frenética por prazer pode provocar o efeito negativo de originar medos neuróticos. E aqui entramos precisamente no assunto específico pelo qual me propus a escrever estes posts.

Há uma tendência natural em nós, dizíamos no primeiro artigo, que se orienta à preservação da própria vida. O primeiro princípio da Lei Natural é justamente este: "a vida física é um bem e deve ser preservado". Naturalmente, então, nós nos protegemos das ameaças e temos certa repugnância pela morte. A soberba, porém, estende este cuidado natural à sensibilidade, fazendo que o indivíduo fuja de todo desprazer. Nós, de fato, temos esses chamados "mecanismos de defesa" que são reações naturais cujo fim é nos preservar das ameaças que podemos encontrar no mundo.

Acontece, porém, que, assoberbados, passamos a avaliar toda e qualquer coisa nas suas possibilidades de nos causar algum desconforto. Naturalmente, os mecanismos de defesa passam a operar de modo exagerado. Há, já, aí uma tensão desnecessária. Aquele estado tão saudável da comum despreocupação, de um certo arriscar-se naturalmente, é abandonado. Como o nosso ser é constituído de tal modo que, em face de perigos reais, todo ele se prepara para a fuga ou para a luta e concentra-se totalmente na possível ameaça, o neurótico, procurando todas as potenciais ameaças ao seu conforto, se verá num trabalho contínuo de destacar objetos ou situações, perdendo a visão do contexto e distraindo-se, como já dissemos, do valor inerente às próprias coisas e situações.

Como a calma ou o silêncio supõem um certo abandono, o neurótico meio que desconhece este estado. Além disto, quando encontra, segundo seus argumentos despropositados, algo que possa lhe causar alguma dor, voltando-se totalmente para aquele objeto e separando-o do seu contexto, o neurótico o agiganta de tal modo que, em todo o universo, parece que só há aquilo. Moscas se tornam monstros e a humanidade passa a existir apenas para assistir essa sua luta pela própria sobrevivência. Tudo, porém, se dá no nível imaginário. Se ele confidencia a alguém os seus medos, esta outra pessoa, habitando fora do seu mundo ilusório, verá pouco sentido naqueles temores todos. Para o neurótico, porém, é tudo muito racional. Ele elabora uma teoria, e tudo começa com um "e se?". Como está ameaçado, todo o seu ser se dispõe a ajudá-lo para checar se há ou não fundamento no seu temor. A memória privilegia as informações relacionadas; há mirabolantes acrobacias de associação de idéias; a sensibilidade responde com certas doses de angústia, como se estivesse a concordar com as conclusões que se passaram no íntimo da alma. O indivíduo se vê rigorosamente estreitado neste seu drama; falta-lhe ar. O mundo, antes tão amplo, agora lhe oprime com paredes estreitíssimas das quais, pensa, seria imensamente feliz em libertar-se. Felizes são os outros que não experimentam o que ele experimenta. Como a neurose o acostuma a sempre fazer previsões - para ver se há ameaças no caminho - no auge da sua neurose ele também prevê: "nunca conseguirei sair dessa enrascada..."

Pobre neurótico... Escravo dos monstros que ele mesmo cria. Conhecerá a angústia e o medo. Será como alguém no deserto que, padecendo de grande sede, vê miragens. Nessas suas visões, ele distingue sombras de animais ameaçadores que, naturalmente, o forçam a correr, a gastar energia, e quanto mais corre, mais ele reforça em si mesmo que a ameaça é verdadeira. Somente depois de bastante tempo é que poderá lhe ocorrer a idéia de que aqueles monstros têm algo de estranho porque nunca o alcançam. Mesmo quando ele, exausto, numa atitude de coragem desesperada, se rende, os animais misteriosamente não fazem o desfecho.

Porém, até chegar aí, o coitado correrá bastante. Acontece que ele está preso na própria subjetividade. A sua fuga da dor pregou-lhe uma peça que é, mesmo, muito incômoda. Todos os acontecimentos da vida parecem confirmar a sua teoria. Todos os objetos que encontra parecem ser um símbolo daquele seu drama. Se escuta uma música na rua, a frase específica que ouviu pareceu falar dele. Talvez pense que é um aviso de outro mundo, rs.. Mas não, trata-se apenas da sua alma, sempre atenta, que reconhece rapidamente qualquer mínima coisa que possa ter relação com os seus medos. 

Grande parte da sua angústia vem, também, de que ninguém consegue compreendê-lo, ou pouca gente dá o devido valor ao suposto perigo que corre. Vê-se sozinho. Gostaria muito que alguém, ao olhá-lo, adivinhasse o que lhe vai na alma e oferecesse uma mínima luz que fosse. Mas ninguém nota. Na verdade, mesmo que aparecesse alguém, não faria, a princípio, tanta diferença assim, pois o neurótico, acostumado a guiar-se somente pelas próprias previsões e suposições, não tarda a julgar inútil a intervenção de outra pessoa. Ele simplesmente não acredita que algo vá servir; é cético. Se é necessário todo um processo para libertar-se da neurose, ele até ousa dar o primeiro passo, mas como nada há que mude nesse primeiro passo, o neurótico se apressa em fazer uma negativa previsão: não vai dar certo. E realmente tende a desistir. O neurótico é muito chato.

É como alguém numa sala escura. Ele não vê nada. No entanto, tampouco acredita que alguém compreenda melhor que ele a situação em que se encontra. Se alguém diz: "dê dez passos à frente, pois você vai encontrar uma porta pela qual poderá sair dessa sala escura", ele até dá um ou dois, mas depois, escravo da própria suposição, não dá os outros. E assim, perdura o seu próprio drama. Se fosse capaz de abrir mão de si mesmo, do próprio parecer, e de seguir um outro, poderia sair desse aperto. Claro que, sendo a neurose um hábito, seria necessário trabalhar para adquirir o hábito oposto: de duvidar das próprias suposições e de fazer as coisas independentemente do prazer ou desconforto que vê nelas. Quando uma pessoa vive assim - fazendo o que deve ser feito, independentemente dos gostos -, os seus horizontes tornam-se sempre mais amplos, pois ela não se reduz ao campo da própria subjetividade.

Para o neurótico, no entanto, é preciso muito esforço para se confiar a outra pessoa. Voltemos ao exemplo da miragem no deserto. O rapaz está sentado na areia e, de repente, divisa um monstro ameaçador. A sua natural inclinação é correr. Só que é precisamente no ato de correr que ele reforça a miragem. Suponhamos, então, que outra pessoa dissesse: "se quiser sair disso, fica sentado. Não corre." Para o neurótico, que se sente ameaçado e para quem a angústia que experimenta é muito real, este é um conselho irrazoável. Talvez ele veja lá longe na possibilidade de estar sendo enganado por uma ilusão. No entanto, ele pensa: "se eu estiver errado, verei que é uma miragem. Mas se eu estiver certo e o monstro for real, perderei a vida. O que compensa mais? Ficar e morrer, ou ser um iludido angustiado, porém vivo?" E aí ele dá uma banana à pessoa que tentou ajudá-lo e volta a correr, rsrs. Neuróticos são, mesmo, muito chatos. Haha...

Claro que estas situações que vou descrevendo são apenas estruturas gerais dos tipos de neurose que podem existir num sujeito. Há pessoas que não dirigem, porque pensam que o carro pode, justamente naquela hora, estar com os freios roídos ou coisa do tipo; há outros em que a neurose toma a forma de ciúme e tudo no universo parece confirmar que a outra pessoa está a traí-la. Há outros que, obcecados com a existência de bactérias, lavam demasiadamente as mãos, supondo que, se não o fizerem, poderão ingerir qualquer coisa mortal que os levará para a cova nas próximas horas ou dias ou semanas, e coisas do tipo. Há ainda os que vivem preocupados excessivamente com a opinião dos outros a seu respeito: "será que fui grosseiro naquele dia?", "será que a pessoa tá pensando isso ou aquilo de mim"? Acontece que, no neurótico, esses pensamentos não são uma coisa num momento do dia. Eles tendem a ficar continuamente o dia inteiro causando realmente muita angústia e cansaço. E tudo tem, sem dúvida nenhuma, origem na soberba, neste medo exagerado do desconforto, nesta supervalorização de si mesmo que o faz perder de vista as coisas que realmente importam.

É muito interessante, então, a gente considerar umas coisas que Jesus diz, e que, se praticadas, serviriam como uma luva para os neuróticos. Enquanto estes se apegam excessivamente à própria vida, Jesus diz: "Tenha a própria vida em pouca conta" e "quem não odeia a própria vida não é digno de mim" e ainda "quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la. Quem aceitar perdê-la por Mim (por algo exterior ao próprio sujeito), vai ganhá-la".

Jesus conhece os efeitos funestos da soberba na alma humana e vem, por isto, nos ensinar como viver em liberdade. Enquanto o egoísmo nos coloca numa busca frenética e contínua de prazer, o que Jesus nos oferece? A Cruz! E a Cruz se torna instrumento de liberdade, justamente porque corta esta tendência à neurose que temos; porque nos liberta desta escravidão, e nos ensina a abrir-nos, passando pela dor, a algo que nos transcende. Este é o caminho da liberdade. O amor verdadeiro sempre provoca um êxtase - um sair de si - que é precisamente o oposto da neurose ou da soberba, que são um fechar-se em si mesmo. Portanto, se é essa a natureza do negócio, podem existir vários modos de lutar contra uma neurose ou outra, mas para acabar com a raiz da neurose, que é a soberba, somente a vida espiritual.

A teologia mística nos ensina que a soberba é o último inimigo com o qual iremos lutar de frente. Até lá, nós vamos enfrentando os seus filhos, que são os demais vícios. Depois, porém, que alguém a vence, essa pessoa adquire uma quietude profunda. A inquietação é sempre amor-próprio.

Uma última coisa sobre a neurose: ela se associa a situações ou objetos específicos. Quando tomamos a firme resolução de combatê-la e vencê-la, ela se solta da tal situação e fica como que suspensa, podendo vincular-se, posteriormente, a outra situação. É que ela consiste numa inclinação natural da pessoa à defesa exagerada de si mesmo. E naturalmente o neurótico encontrará outras ameaças. Mas é interessante isto: a neurose geralmente se fixa mais especificamente em uma só situação. Vez ou outra, está vinculada a duas, mas isto lhe diminui a força em ambas. Por estas coisas a gente vai percebendo que quem tem a própria vida em pouca conta, como diz Jesus, deixa de ser neurótico. ^^

E quem duvida disso, eu digo: faça o teste! Se você não quer fazer, pensando de antemão que não vai servir, é que você é um neurótico. haha... Vai uma frase do filho do Simba, do Rei Leão, que traduz a atitude que o neurótico deveria tomar diante dos seus medos: "eu rio na cara do perigo!" ^^ 

No próximo post, tratarei ainda de certas características da neurose, ainda mais minuciosas, e já irei pondo uns modos de sacaneá-la, rsrs..  Dizia S. Paulo: "aborrecei o mal com o bem". Serve pra o nosso assunto também. 

Fábio

2 comentários:

Kushina disse...

sou uma iludida angustiada, mas estou viva. hihi

Fábio Graa disse...

rsrs... abandone essa vida rsrs