domingo, 7 de julho de 2013

A Graça e a aceitação feliz da nossa dependência total de Deus


As expressões de desmerecimento que a prática cristã põe na boca do fiel soam, para o mundo exterior, como as adulações degradantes e insinceras do bajulador diante do tirano, ou, na melhor das hipóteses, como um modo de falar, à maneira da autodepreciação do cavalheiro chinês ao se referir a si mesmo como "esta pessoa rude e iletrada". Na verdade, porém, elas expressam uma tentativa permanentemente renovada - porque permanentemente necessária - de refutar um equívoco sobre nós mesmos e sobre nossa relação com Deus que a natureza está nos sugerindo, mesmo quando rezamos. Tão logo acreditamos que Deus nos ama, imediatamente vem o impulso de acreditar que ele o faz não porque ele é Amor, mas porque nós somos intrinsecamente amáveis. Os pagãos obedeciam a esse impulso imperturbavelmente: o bom homem era "querido pelos deuses" por ser bom. Nós, tendo sido mais bem informados que eles, recorremos a subterfúgios. Longe de nós pensar que temos virtudes pelas quais Deus nos amaria. Mas veja só que magnífico o nosso arrependimento! Como diz Bunyan, descrevendo sua primeira e ilusório conversão: "Eu pensava que não havia ninguém na Inglaterra que agradasse mais a Deus do que eu". Quando nos dissuadimos dessa idéia, oferecemos a Deus nossa humildade para que ele admire. Disso ele vai gostar, não? Ou então oferecemos nossa nítida e humilde admissão de que ainda nos falta humildade. Assim, camada após camada e sutileza após sutileza, permanece em nós a obstinada idéia de que temos algum atrativo nosso, e só nosso. É facil admitir, mas quase impossível perceber por muito tempo, que somos espelhos cujo brilho - se é que o temos - deriva inteiramente do Sol que resplandece sobre nós. Mas certamente temos alguma luminosidade natural, por menor que seja, não? Não somos apenas criaturas, certo?

A graça substitui esse intrincado absurdo de uma necessidade, ou mesmo de um Amor-Necessidade, que jamais reconhece inteiramente a própria indigência por uma aceitação plena e infantil de nossa Necessidade - pela alegria da dependência total. Nós nos tornamos "mendigos felizes". O bom homem se entristece pelos pecados que lhe intensificaram a necessidade. Mas não se entristece de todo pela nova necessidade que produziram. E não se entristece nem um pouco pela necessidade intrínseca a sua condição de criatura. Afinal, essa ilusão a que a natureza se apega como último recurso, essa pretensão de que temos algo realmente nosso ou de que seríamos capazes de conservar, por uma hora, com nossas próprias forças, alguma bondade que Deus eventualmente tenha nos outorgado nos impede o tempo todo de ser felizes. Somos como um banhista tentando manter os pés - ou um dos pés, ou um dedo - no fundo do mar, porque perder o pé seria render-se a um glorioso abandono às ondas. As consequências de romper com nossa última pretensão de liberdade, poder ou valor intrínsecos são a liberdade, o poder e o valor verdadeiros, realmente nossos, simplesmente porque Deus os dá e por sabermos que (em outro sentido) não são "nossos". Anodos se livra de sua sombra.

C.S. Lewis, Os Quatro Amores. São paulo: WMF Martins Fontes, 2009. p.181-182.

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