Se o freudismo afirma que a racionalidade não é senão uma camuflagem hipócrita de uma animalidade reprimida, essa afirmação – evidentemente racional – cai sob o mesmo veredito; o freudismo, se tivesse razão, seria ele próprio tão-somente uma desnaturação simbolizante de instintos físico-psíquicos. Sem dúvida, os psicanalistas dirão que em seu caso o raciocínio não é função de repressões inconfessadas; mas não vemos nem um pouco, em primeiro, em virtude de que essa exceção seria admissível com base em sua própria doutrina, e, em segundo, por que essa lei de exceção só atuaria em seu favor, e não em favor das doutrinas espirituais, que eles rejeitam com ódio e com uma revoltante falta de senso das proporções. No mais, nada é mais absurdo do que um homem se erigindo em acusador, não de um acidente psicológico qualquer, mas do homem como tal; de onde vem então esse semideus que acusa, e de onde vem sua faculdade de acusar? Se o acusador tem razão, é que o homem não é tão mau assim e há nele uma capacidade de adequação; se não, seria preciso admitir que os protagonistas da psicanálise sejam deuses caídos imprevisivelmente do céu, algo para o que não se vê sombra de verossimilhança, para dizer o mínimo.
A psicanálise em primeiro lugar elimina os fatores transcendentes essenciais ao homem e depois substitui os complexos de inferioridade ou de frustração por complexos de vida fácil e de egoísmo; ela permite pecar calmamente, sentindo-se seguro, e se danar com serenidade. Como todas as filosofias de demolição – a de Nietzche, por exemplo –, o freudismo atribui um alcance absoluto a uma situação relativa; como todo pensamento moderno, ele só sabe cair de um extremo a outro, incapaz como é de se dar conta de que a verdade – e a solução – se encontra na natureza mais profunda do homem, da qual as religiões e as sabedorias tradicionais são, precisamente, os porta-vozes, as conservadoras e as garantias.
Na prática, a mentalidade criada e difundida pela psicanálise consiste em recusar o diálogo lógico ou intelectual – o único digno de seres humanos – e a responder com o viés de conjecturas insolentes; já não se procura saber se o interlocutor tem razão ou não, pergunta-se quem eram seus pais ou qual é sua pressão sanguínea – para nos limitarmos a exemplos simbólicos e ainda bastante anódinos –, como se tais argumentos não pudessem ser aplicados de volta contra seus autores, ou como se, mudando mesmo de argumentos, não fosse fácil responder a uma análise com outra análise. Os pseudo-critérios da análise são de preferência fisiológicos ou sociológicos, em conformidade com a mania da época; não seria difícil encontrar contra-critérios e fazer a análise séria da análise imaginária.
Se o homem é um hipócrita, das duas, uma: ou ele o é fundamentalmente, e então nenhum homem pode constatar isso sem sair milagrosamente, ou divinamente, da natureza humana; ou o homem só é acidental e relativamente hipócrita, e então seria inútil esperar a psicanálise para se dar conta disso, pois então a saúde está mais fundamentalmente na natureza do homem que a doença, e, por esse fato, houve sempre homens que se deram conta do mal e conheceram o remédio. Ou ainda: se o homem está profundamente doente, não se vê por que só a psicanálise teria podido se dar conta disso e por que só sua explicação, totalmente arbitrária e de fato mesmo essencialmente perversa, seria a correta; pode-se, evidentemente, pôr este fato na conta da “evolução”, mas nesse caso é preciso ser cego para as qualidades de nossos ancestrais e para os vícios de nossos contemporâneos, sem falar da impossibilidade que há em demonstrar – ou da absurdez que há em admitir – a possibilidade de uma súbita objetividade intelectual e moral num desdobramento puramente biológico e quantitativo.
Pois se um desenvolvimento natural resulta finalmente numa inteligência reflexiva, a uma tomada de consciência que percebe o desenvolvimento enquanto tal, essa resultante será uma realidade que sai totalmente do domínio dessa evolução, de modo que não haverá mais nenhuma medida comum entre a tomada de consciência e o movimento totalmente contingente que a precedeu e que, por esse fato mesmo, não podia em nenhum caso ser a causa da consciência de que se trata. Este argumento é, aliás, a própria negação do evolucionismo transformista, portanto de toda noção de um “homem-elo” ou de um “homem-acaso”, e, por consequência, de toda mística de matéria geradora, de biosfera, de noosfera, de “ponto ômega”. O homem é o que ele é, ou ele não é; a capacidade de objetividade e de absolutez do pensamento prova o caráter quase absoluto, ou seja, fixo e insubstituível, da criatura que pensa; é o que indicam as palavras escriturárias: “Feito à imagem de Deus”.
Frithjof Schuon, A contradição do relativismo.