Há dois modos de se alcançar a casa vizinha. Um é dando a volta ao mundo e o outro, caminhando uns poucos passos. Há também dois modos de se encontrar o céu. Um é subir, subir em busca de um firmamento sempre fugidio e o outro é compreender que, aqui na terra, já nos encontramos no céu e que nosso planeta é, de fato, um dos corpos celestes. É fácil perdermo-nos na caminhada à v0lta do mundo até a casa vizinha e mais fácil ainda desesperarmos na tentativa de alcançar uma altura infinita. Esses dois modos de abordagem são repetidamente exemplificados n a história da vida espiritual do homem.
Houve certas regiões, como o budismo primitivo, o neoplatonismo, certas formas de ioga, o gnosticismo, etc., que ressaltavam a dificuldade de ascensão do homem ao estado divino. Essas são religiões do eros, da ânsia infinita do homem para chegar a Deus; seu estado ideal é normalmente de identificação com a Realidade final em que a alma, por assim dizer, absorve Deus. Há, por outro lado, religiões que concebem a vida espiritual como a aceitação e a afirmação de uma realidade presente. Essas religiões são do ágape, religiones naturaliter Christianae, e compreendem muitas formas do budismo mahayana e do hinduísmo, do taoísmo primitivo e, naturalmente, do próprio cristianismo.
Essas religiões, quando tendem para a teologia panteísta, não contêm uma manifestação explícita da concessão da união com Deus, vez que o panteísmo considera essa união necessária e automática; afirmam, entretanto, que essa união não tem de ser atingida mas sim realizada, por ser, desde o seu início, uma realidade presente. Em outras palavras, essas religiões descobriram por experiência própria o amor de Deus pelo homem, mas ressentem-se de uma teologia para expressá-lo e interpretá-lo.
Muito frequentemente, o primeiro tipo de religião se transforma no segundo. A alma, em seu empenho em atingir, por seu próprio esforço, o estado divino, chega a um ponto de total desespero e subitamente desperta, com um choque de grande luminosidade, para o fato de que o estado divino simplesmente EXISTE, a cada momento, não precisando ser atingido. Por exemplo, o budismo Zen da China e do Japão desenvolveu toda uma técnica de meditação envolvendo essas duas fases e denomina de satori, ou despertar súbito, o choque repentino da passagem da primeira para a segunda fase. A Encarnação, a vinda de Cristo, é satori no plano da história humana, a mudança súbita da velha ordem de se empenhar pela redenção mediante a obediência à lei para a nova ordem de consecução da redenção pela dádiva da divina graça.
Enquanto tudo estava no maior silêncio
e a noite ainda ia em meio,
tua Palavra Divina, Senhor,
ressoou do trono real, aleluia.
(Antífona do Magnificat nas Vésperas do domingo dentro da Oitava da Natividade)
Em meio da escura noite do desespero da alma face à frustração do eros, reluz o ágape de Deus - a compreensão de que embora a alma seja impotente para atingir a união com Deus, Este, com seu amor infinito e imutável, fez a Sua própria união com a alma.
O significado da Encarnação, portanto, é simplesmente que não se tem de atingir a união com Deus. O homem não tem de subir ao infinito e transformar-se em Deus, pois, por amor, o Deus infinito desce ao finito e se torna homem. Não obstante a rejeição de Deus pelo homem, seu orgulho, seu medo, ,seu envolvimento inevitável e desesperado no círculo vicioso do pecado, a natureza de Deus permanece inalteravelmente de amor - o ágape que consiste em dar-se inteiramente e sem reservas ao ser amado. O Verbo eterno, o Logos, portanto, se transforma em carne, fazendo sua a nossa natureza e assumindo as nossas limitações, sofrendo as nossas dores e morrendo como nós. E mais do que tudo isso, suporta a carga dos nossos pecados, isto é, permanece em união conosco, mesmo que o crucifiquemos e lhe cuspamos em cima; ele continua a morar em nosso íntimo e a oferecer, ou sacrificar, as nossas vidas a Deus, mesmo que venhamos a cometer todas as formas imagináveis de depravação. Em resumo, Deus casou-se com a humanidade, uniu sua essência divina ao nosso ser mais íntimo, "para o melhor e para o pior, para a riqueza e a pobreza, na doença e na saúde", por toda a eternidade, mesmo que escolhamos a nossa condenação.
Se eu subir ao céu, tu ali estarás;
Se eu fizer minha cama no inferno,
Eis que tu também lá estarás.
Tudo que nos resta fazer é dizer: "Sim - Amém" a esse tremendo fato, e isso ainda está dentro do poder de nossa natureza degradada. Nosso motivo para dizê-lo, por mais pervertido que esteja pelo orgulho e pelo medo, não faz a menor diferença, porque o fato é um fato: a união com Deus nos foi concedida, gostemos ou não, queiramos ou não, saibamos ou não. Nossa carne se transformou em Sua carne e não há coo sairmos de nossa própria pele. E tão logo compreendamos a futilidade do nosso orgulho, que não podemos subir até Deus nem, por uma questão de orgulho, impedir que Ele desça até nós, o soberbo núcleo do egoísmo estará simplesmente dissolvido - sobrepujado pelo amor de Deus.
Alan Watts. A vida contemplativa. Rio de Janeiro: Record, 1971. p.92-95.