quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Algumas questões muito interessantes.

Ontem à noite, após a Santa Missa, fui a uma praça, onde frequentemente levo alguns livros ou apostilas para fazer algumas leituras e/ou anotações. Gosto de ir lá, pois, além de estar de frente a uma capela e poder avistar a imagem da Virgem de Fátima, o ambiente costuma ser bem ventilado, e as crianças geralmente estão a brincar... Num dia destes eu as ouvi conversar sobre astronomia (kkk...), claro que dentro da simplicidade que lhes é própria.

Ontem levei um livro que há tempo não abria. Trata-se dos escritos de um rapaz chamado Bruce Jun Fan Lee (o famoso Bruce Lee) que, embora poucos saibam, era formado em filosofia chinesa. O livro é entitulado "Tao of Jeet Kune Do" e, além de tratar de artes marciais, é permeado de Filosofia. Eu diria, mesmo, que há muito mais filosofia nele do que, propriamente, técnica marcial. Sua orientação é assumidamente zen-budista, pelo que, realmente, algumas coisas não se aproveitam. Fiquei feliz e um tanto surpreso em notar que, na leitura, identificava com facilidade alguns falsos pressupostos e, consequentemente, o caráter irremediável de certas afirmações dele, enquanto que, antigamente (na adolescência), eu costumava lê-lo quase com devoção e tudo me aparecia como que revestido de uma grande autoridade.

No entanto, muito do que ele escreve, realmente, visto sob a ótica do Evangelho, é muito verdadeiro. Claro que eu estou fazendo como que um deslocamento de sua teoria. É como se eu conservasse-lhe certos acidentes, mudando porém a substância ou a base em que se firmam.

Numa de suas assertivas, ele escreve mais ou menos o seguinte: "Seja simples. Não estabeleça objetivos. Quando o homem estabelece um objetivo, ele está se condicionando a um limite, ele se fragmenta".

Considerei isto muito profundo.Claro que, alguém que me queira importunar, pode ler isto e identificar aí alguma heresia... esta constatação, porém, deve-se mais à lente com que se olha. Esvaziemo-nos um pouco, eu peço.

A princípio, isto parece identificar-se com um preceito dos padres do deserto, em que se afirma mais ou menos o que segue: "o santo não estabelece metas; ele não se atém à própria vontade". Cito estas coisas de memória, e, portanto, me atenho mais ao sentido que à exatidão dos termos. O estabelecer um objetivo muito bem definido, de fato, pode significar um estreitamento de potencialidades. Além disto, considerar as coisas segundo a nossa vontade, ou o gosto que delas temos, significa ver a realidade de forma fragmentada, o que impede-nos de observá-la em sua totalidade. Daí S. João da Cruz afirmar que o processo de santificação do homem faz com que ele deixe de amar e de querer segundo o modo que lhe é próprio; ele deve esvaziar-se disto; é o que ele chama de "pássaro sem cor definida".

Também S. Gregório de Nissa, grande místico, escreve a um discípulo sobre o preceito de ser perfeito, dado por Nosso Senhor. Sabemos que, na filosofia, o conceito de perfeição supõe o de limite e acabamento. É perfeito algo que é acabado em si mesmo. Portanto, S. Gregório afirma que "alcançar a perfeição", no sentido evangélico, é quase que uma contradição. Isto não implica nenhuma falsidade ou erro na ordem dada por Nosso Senhor, mas é conveniente que compreendamos bem isto, para não darmos à santidade um limite que ela não tem.

Para S. Gregório, a perfeição, no sentido evangélico, não tem limites, pois é própria de Deus. Mesmo assim, o homem pode e deve aspirá-la, pois foi-lhe dito: "sede perfeito como Deus é perfeito". Quando dizemos que alguém alcançou a perfeição, é como se disséssemos que alguém chegou ao termo do ilimitado, o que é uma contradição em si mesmo. A perfeição, neste sentido, só é limitada pela sua falta ou ausência. Assim, a vida é limitada pela morte, a santidade pelo pecado, a virtude pelo vício. Mas é próprio da perfeição, no sentido evangélico, estar aberta ao infinito. Alcançar a perfeição não se faz nesta vida, embora desde já devamos iniciar o processo de aperfeiçoamento que se consumará na eternidade. Esta consumação, embora nos evoque ainda o sentido de um termo, abre-nos a uma liberdade que não é tolhida, pois a eternidade é a participação na própria vida de Deus.

Enfim, lendo o rapaz Bruce Lee, a quem tanto estimei em outros tempos, de fato, pude retirar certos preconceitos erigidos por mim mesmo, na compreensão de muitas coisas. E isto não foi, senão, como que um dedo apontando para a seriedade e profundidade da teologia negativa ou apofática, que tanto admiro, e que tem esta capacidade única de nos abrir à eterna novidade de Cristo, de nos desprender de nosso pequeno leque de experiências e conceitos, de nos corrigir as pretensões, de mostrar que Deus está sempre além. Quando aprendemos a ser simples, com aquela simplicidade das crianças que Nosso Senhor recomendou, então enxergamos a realidade também sem rodeios, de forma direta, e não segundo um grupo condicionado de respostas que, não obstante possam ser verdadeiras em si, não impedem que as usemos de forma superficial e que nos limitemos às suas imagens. É então, na simplicidade, que conhecemos a liberdade.

E, antes que estranhem, talvez, estas afirmações, advirto que o seu sentido se encontra nas páginas do grande místico S. João da Cruz, doutor da Igreja que, como escreveu o Papa João Paulo II, é claríssimo dardo de luz, erguido até o fim dos tempos, a fim de guardar contra as heresias, e mostrar um caminho seguro.

Fábio Luciano

Obs.. Não simpatizo com o budismo, não gosto do sincretismo feito pelo Thomas Merton na última fase de sua vida...

Um comentário:

Fábio Graa disse...

Creio que se podem fazer duas objeções a este texto.
1 - Se a perfeição é algo que nunca se alcança, como pode, então, o próprio Deus, nos diálogos de Santa Catarina de Sena, falar dos "perfeitíssimos"?
Os próprios místicos falam de alma perfeita.

Bem.. O termo perfeição pode ser usado de diferentes sentidos. A crítica do texto é feita à visão de esgotamento das potencialidades de algo. Não é neste sentido que Deus fala, nem os seus santos. A perfeição destes últimos não é algo estático, que não pode ir adiante, mas, antes, fala-se de perfeição visando o estado em que já se encontram, de uma conversão profunda; não há, porém, a pretensão de que estão travados sem poder adiantar-se. Assim, seria perfeito quem atingisse determinado estágio; tanto que o termo "perfeitíssimos" está para além dos "perfeitos".

II - Embora a alma participe das perfeições de Deus, ela só o faz na medida de sua própria natureza. Os atributos divinos se dão numa criatura na medida de sua essência. Esta, ao mesmo tempo que define o que algo é, limita-lhe a uma determinada forma de operação.
Dessa forma, seria falso falar de ilimitação, visto que a alma, sendo a forma substancial do homem, está, de certa forma, restrita ao campo que lhe é próprio.

Estas coisas são complicadas. Mas, vejamos...
Falando da eternidade: é sabido que a própria alma, por sua própria natureza, não "suporta" a presença divina. Por isto, pelo que a Igreja denomina Lumen Gloriae, a alma recebe um aperfeiçoamento da sua própria natureza, como que uma divinização, para poder gozar da visão beatífica e participar da vida intima da Santíssima Trindade. Aqui temos uma deificação da alma, algo que a aperfeiçoa, sem porém violentar-lhe a natureza. No entanto, quem poderia delimitar definidamente este aperfeiçoamento? Está além do que "o olho viu, o coração imaginou ou a mente concebeu".

Com relação à vida mortal, o próprio S. Joao da Cruz define 9 graus de amor possíveis a esta vida. Sta Teresa D'Avila estabelece sete tipos de moradas. Estas figuras parecem estabelecer um limite definido. Porém, o que passa por tais estágios, compreende que o que aí se experimenta está além dos termos. A sua "tradução" em termos, por vezes, precisa fazer-se por alegorias. E, como dizia alguém, não se consegue exprimir de todo o ouro da experiência pela prata das palavras. Não se trata de dissecar a vida mística, mas de oferecer um norte aos que caminham por tais densidades. O místico da noite dizia que, por mais que se expresse, é muito maior o que fica por dizer.

Portanto, mesmo nesta vida, a vida do espírito pode atingir alturas inimagináveis, pelo que, se há um limite, não temos a condição de demarcá-lo. Convém, muito mais, avançar indefinidademente na noite da Fé, onde se ruma de forma segura.