quinta-feira, 21 de julho de 2016

Sobre Moral, Liberdade, Egoísmo e Tristeza


"Para saborear tudo, não queiras ter gosto em coisa alguma" 
São João da Cruz

O ser humano é um ser que intelige e decide, mas não necessariamente nessa ordem, já que o objeto de intelecção já é submetido a um prévio ato de deliberação. Não apenas faço o que entendi dever fazer, mas escolho aquilo no que vou pensar. Porém, é verdade que este prévio ato deliberativo se relaciona muito mais com o desejo - uma espécie de instinto imediato - do que com a vontade. Temos então a seguinte ordem: desejo - inteligência - vontade. É possível e comum que desejo e vontade discordem. Neste caso, a vontade age como sucessora corretiva do desejo. Como este é prévio à inteligência, ele tende a ser amoral, pois agir moralmente é agir segundo regras ou motivos; é saber por que agir assim é correto ou errado. A vida moral - a não ser quando já se tem o hábito - não pode ser fruto de qualquer inspiracionismo, como se nós tendêssemos naturalmente à vida correta. Qualquer mínimo exame da nossa realidade psíquica dá conta de ver que isso não é assim. Tendemos ao mal, e não é raro que mesmo aquela ação que julgamos naturalmente boa encubra intenções e desejos que não o são.

Na vida moral, há que se distinguir, portanto, estas duas coisas: a ação objetiva e a intenção ou finalidade que se pretende alcançar com a ação. Isoladas, elas não são suficientes ainda para constituir a ação moral. Mas se pode dizer que a intenção isolada tende a ser mais desculpável para o sujeito do que a ação isolada. Claro que há nisso controvérsias. Se um dado ato irrefletido, mas munido de boas intenções, só foi executado assim na ignorância de sua efetividade real devido a alguma negligência anterior do sujeito, ele já não se torna tão desculpável assim porque o conjunto da negligência anterior contamina a intenção atual do sujeito. Por trás de sua intuição de sinceridade pessoal há de se esconder qualquer senso de vigarice, pois o desconhecimento da objetividade da situação é fruto de um vício prévio.

Quanto às ações, tomadas isoladamente, é sabido que quaisquer delas podem ser inspiradas por um sem fim de motivos internos. Uma pessoa pode dar esmolas porque quer alimentar o esfomeado, ou porque quer cultivar a imagem de honesto para os outros, ou porque quer cultivá-la para si, ou porque quer impressionar alguém, ou porque quer impressionar Deus, ou porque quer ir para o Céu, ou porque não quer ir para o Inferno, ou porque quer que o pedinte o deixe em paz, ou porque se recordou de alguma situação anterior que o empurra para essa ação, ou porque simpatizou com aquele pedinte em particular, ou porque se sentiu momentaneamente comovido e aí obedece a si mesmo nesse ímpeto atual e totalmente instintivo de dar, etc. Do ponto de vista exterior, temos somente a ação. É por isso que o julgamento das intenções só é reservado a Deus, pois uma ação nem sempre é efeito fiel de correspondentes interiores. É preciso ainda dizer que essa fonte confusa dos nossos atos nem sempre é totalmente consciente. Bem, é comum que não o seja. Nós costumamos mentir para nós mesmos, e por isso não nos agrada quando alguém nos acusa de algo justamente. Nos é preferível à sensibilidade ficar na ignorância dessas coisas. E isso é assim também conosco. Se quem tenta conhecer-se encontra nisso extrema dificuldade, imaginem que não tem interesse nisso.

O que caracterizaria então a ação moral? Parece-me poder dizer que é a conjugação de ação boa em si - isto é, tomada objetivamente - com o desinteresse pessoal, isto é, sem qualquer cálculo de ganho pessoal em quem age. Quando há dissociação entre ação e intenção, temos a clássica situação da hipocrisia. Esta pode ser mais consciente e voluntária, mas também pode sê-los menos. Uma pessoa que, enquanto faz uma boa ação, diz interiormente que não quer recompensa e que faz somente pelo outro, pode ainda assim esconder, numa região mais  interior e ao abrigo da visão atual da consciência, a intenção de comover a Deus, e, assim, alcançar d'Ele algum favor. São João da Cruz, por isso, pedia para que, quando fizéssemos um ato correto, fizéssemo-lo como se mesmo Deus nunca fosse tomar notícia dele.

É bastante comum também que um sujeito passe a agir moralmente depois de alguma experiência que o tenha comovido. Inspirados, todos tendemos a agir de modo diferente, e isso não é ruim, mas a esfera da comoção, que é o campo dos nossos sentimentos, é por natureza volúvel e não há que se construir nada nisso aí. Óbvio que este pode ser um começo, mas, em quem não o percebe, haverá uma vaga e tola esperança de que aquele estado de espírito que então se vive seja perpetuado, o que asseguraria então que a nova direção das ações pessoais estaria resguardada. Contudo, além da falsidade dessa conclusão - que, não obstante, retomamos de novo e de novo -, o próprio ato de agir quando isto dá à consciência aquele conforto característico - quando a ação é um modo de assegurar o próprio valor moral, ou a própria concordância a um ideal - torna a ação, já, maculada. Há, no fim, uma busca por auto-satisfação. Notem que o problema não é a satisfação que uma boa ação pode causar à pessoa, mas a busca por ela. O prazer e a felicidade não devem ser objetos diretos da busca humana. Eles, por natureza, são acompanhantes. Eles se vinculam a objetos. Se buscamos objetos prazerosos, eles nos darão prazer. Se buscamos somente o prazer, ele até se permitirá fruir, mas não o fará sem resistência. É por isso que os vícios tendem a produzir efeitos cada vez menores. Com a felicidade é o mesmo: ela será tanto maximizada quanto menos for o objeto de busca principal. "Nega os teus desejos e encontrarás o que deseja o teu coração".

Se uma pessoa se habitua a agir buscando o prazer e a felicidade nas coisas, ainda que inconscientemente, ela se condenará a uma série de prejuízos: terá um tipo de vida moral muito condicionada às circunstâncias, será necessariamente inconstante - pois se moverá segundo suas disposições interiores -, tenderá ao egoísmo - pois está sempre gravitando em torno dos próprios ganhos -, e, como sua consciência estará enredada no fluxo das sensações exteriores e interiores, será necessariamente inquieta e superficial, pois nunca entra fundo em si mesma, onde as coisas são mais estáveis. O produto disso tudo é uma espécie de cegueira e de depressão crônica subjacente, pois, a rigor, a alma anda perdida. E isto se torna um círculo vicioso: quando mais tristeza, mais busca desesperada por algo que a supra, e, como esta busca mantém a lógica da tristeza, esta aumenta, levando a mais ações e mais angústia. A pessoa age como alguém que, estando machucado, golpeia os pregos diante de si, e, ao aumento da dor, aumenta a violência dos golpes.

O desinteresse interior, ao contrário, reorienta a alma para além de si mesma. Isto gera uma saída do solipsismo, e ela se torna disponível a qualquer outra voz além da sua. Relativizar-se é o começo da saúde. Aceitar que Deus é Outro, e não eu mesmo, é algo que não basta compreender: é necessário intuir e saborear. Isto permite que a pessoa aja independentemente do que está sentindo no momento. Se ela passa a agir assim, chegará o dia em que já não se perguntará se o que tem de fazer é agradável ou não. Ela fará. A pessoa cessa de ter uma intenção curva - que voltava sempre pra ela mesma - e passa a ter uma intenção reta, e a intenção reta, diz o Imitação de Cristo, alcança Deus.

Para reorientar a intenção interior, não é suficiente somente um esforço de consciência, embora este já seja útil. Compreender essas verdades é fundamental para alguém que quer fazer da vida algo além de um rodopio em torno de si mesmo. Mas é preciso acrescer outras coisas: a nossa vida inteira foi vivida nessa lógica, e o nosso pecado não é senão uma culminância natural disso que ocorre na nossa alma. Se é verdade que a operação segue o ser - e é verdade -, o nosso pecado é sempre a exteriorização de um tipo de enfermidade interior. O que fazer, então? Primeiramente, compreender isso tudo, mesmo, pois a nossa consciência, embora seja atingida por esse fluxo desordenado de paixões, ainda é capaz, em geral, de, com o devido esforço, olhar como que por cima da tempestade. Estes saltos permitem-na ver. Em seguida, é preciso combater ativamente a desordem, e, para isso, não há outro meio que a mortificação. Mortificar-se é inverter a ordem. Se antes se vivia para o prazer e para o ganho sensível, agora o sujeito buscará ativamente os desprazeres e, passivamente, não reclamará nem fugirá dos desconfortos. É isso o que quer dizer ainda São João da Cruz quando escreve: "Deixa-te ensinar, deixa-te mandar e desprezar, e serás perfeito." É como quando, depois de girar muito para um lado, e já bêbados, precisamos agora girar para o outro para diminuir a tontura. Quanto menos tontura, melhor disposição interior e mais clara a visão. E quanto mais avançados nesse caminho, mais perceberemos detalhes e sutilezas. Desde já, porém, é preciso notar: não há caminho alternativo. Haveria somente se Deus coagisse a alma. E Ele de certo modo o faz quando nos dá sofrimentos. Os sofrimentos são como um empurrão por esse caminho em quem ia totalmente pelo outro lado. Mas, ainda assim, isso não é determinante, pois, em última instância, a decisão é sempre da pessoa.

Atos morais, que são totalmente bons, são os atos desinteressados e que se orientam em direção ao bem objetivo. É assim que Deus age, e é assim que o cristão deve viver: imitando-O.

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