quinta-feira, 3 de abril de 2014

Crítica à democracia - o caos social


René Guénon

O argumento mais decisivo contra a democracia resume-se em poucas palavras: o superior não pode emanar do inferior, porque o "mais" não pode sair do "menos"; isto é de um rigor matemático absoluto, contra o qual nada poderia prevalecer. Importa notar que é precisamente o mesmo argumento que, aplicado numa outra ordem, vale também contra o materialismo; nada há de fortuito nesta concordância e as duas coisas são muito mais estreitamente solidárias do que poderia parecer à primeira vista. É demasiado evidente que o povo não pode conferir um poder que ele próprio não possui; o verdadeiro poder só pode vir do alto, e é por isso, diga-se de passagem, que só pode ser legitimado pela sanção de qualquer coisa de superior à ordem social, ou seja, uma autoridade espiritual; se for de outra maneira, será apenas uma contrafacção de poder, e em que não pode haver senão desordem e confusão. Esta inversão de toda a hierarquia começa no momento em que o poder temporal se quer tornar independente da autoridade espiritual e, a seguir, subordiná-la, pretendendo que sirva fins políticos; há uma primeira usurpação que abre caminho a todas as outras, e poder-se-ia, assim, mostrar que, por exemplo, a realeza francesa, desde o séc. XIV, trabalhou ela própria, inconscientemente, na preparação da Revolução que a devia derrubar. (...) 

Se se define a democracia como o governo do povo para si mesmo, trata-se de uma verdadeira impossibilidade, uma coisa que nem mesmo pode ter simples existência de facto, e não mais na nossa época do que em qualquer outra; não nos devemos deixar enganar pelas palavras e é contraditório admitir que os mesmos homens possam ser simultaneamente governantes e governados, visto que, para utilizar a linguagem aristotélica, um mesmo ser não pode ser "em ato" e "em potência" ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Há uma relação que supõe necessariamente dois termos em presença; não poderia haver governados se não houvesse também governantes, fossem eles ilegítimos e sem outro direito ao poder que aquele que atribuíram a si mesmos; mas a grande habilidade dos dirigentes, no Mundo Moderno, é a de fazer crer ao povo que ele se governa a si próprio; e o povo deixa-se persuadir de boa vontade, tanto mais quanto é nisso lisonjeado e que, aliás, é incapaz de reflectir bastante para ver o que há aí de impossível. Foi para criar essa ilusão que se inventou o "sufrágio universal": é a opinião da maioria que é suposto fazer lei; mas do que se não apercebem é que a opinião é qualquer coisa que se pode facilmente dirigir e modificar; pode-se sempre, com o auxílio de sugestões apropriadas, provocar nela correntes dirigidas neste ou naquele sentido determinado; não sabemos já quem falou em "fabricar a opinião" e esta expressão é completamente justa, embora se deva dizer, aliás, que não são sempre os dirigentes visíveis que têm realmente à sua disposição os meios necessários para obter este resultado. Esta última observação dá-nos certamente a razão pela qual a incompetência dos políticos mais destacados parece ter apenas uma importância muito relativa; mas como não se trata aqui de desmontar as engrenagens do que se poderia chamar a "máquina governativa", limitar-nos-emos a assinalar que essa mesma incompetência oferece a vantagem de manter a ilusão de que acabamos de falar: é somente nestas condições, efectivamente, que os políticos em questão podem aparecer como a emanação da maioria, sendo assim feitos à sua imagem, porque a maioria, seja qual for o assunto acerca do qual for chamada a dar a sua opinião, é sempre constituída pelos incompetentes, cujo número é incomparavelmente maior do que o dos homens que são capazes de se pronunciar com perfeito conhecimento de causa.

Isto leva-nos imediatamente a dizer em que é a idéia segundo a qual a maioria deve fazer a lei é essencialmente errônea, porque mesmo se essa idéia, pela força das coisas, é sobretudo teórica e não pode corresponder a uma realidade efectiva, resta, no entanto, explicar como é que ela se pôde implantar no espírito moderno, quais são as tendências deste às quais ela corresponde e que ela satisfaz, pelo menos aparentemente. O defeito mais visível é exactamente aquele que indicávamos há instantes: a opinião da maioria só pode ser a expressão da incompetência, quer esta resulte, aliás, da falta de inteligência, ou da ignorância pura e simples; poder-se-ia fazer intervir, a este respeito, certas observações de "psicologia coletiva" e lembrar nomeadamente esse facto, bastante conhecido, que numa multidão o conjunto das reações mentais que se produzem entre os indivíduos que a compõem leva à formação de uma espécie de resultante que está, nem sequer ao nível da média, mas ao dos elementos mais inferiores. Haveria aqui lugar para fazer notar, por outro lado, como certos filósofos modernos quiseram transportar para a ordem intelectual a teoria "democrática" que faz prevalecer a opinião da maioria, fazendo do que chamam o "consenso universal" um pretenso "critério da verdade": supondo mesmo que haja efectivamente uma questão acerca da qual todos os homens estejam de acordo, esse acordo não provaria nada em si mesmo; mas, além disso, se essa unanimidade existisse realmente, o que é tanto mais duvidoso quanto há sempre muitos homens que não têm nenhuma opinião sobre qualquer questão e que nunca a puseram, seria em todo o caso impossível verificá-la de facto, pelo que, o que se invoca a favor de uma opinião e como sinal da sua verdade, reduz-se a ser apenas o consentimento do maior número e ainda restringindo-se a um domínio aparece ainda mais claramente que a teoria carece de bases, porque é mais fácil subtrair-se à influência do sentimento que, pelo contrário, entra em jogo quase inevitavelmente quanto se trata do domínio político, e é esta influência que um dos principais obstáculos à compreensão de certas coisas, mesmo entre aqueles que teriam capacidade intelectual largamente suficiente para alcançar sem dificuldade essa compreensão; os impulsos emotivos impedem a reflexão e é uma das mais vulgares habilidades da política a que consiste em tirar partido dessa incompatibilidade.

Mas vamos mais ao fundo da questão: o que é exactamente essa lei do maior número que invocam os governos modernos e de que pretendem extrair a sua única justificação? É simplesmente a lei da matéria e da força bruta, a lei em virtude da qual uma massa, arrastada pelo seu peso, esmaga tudo o que se encontra no seu caminho; é aí que se encontra precisamente o ponto de junção entre a concepção "democrática" e o "materialismo", e é também o que faz que essa messa concepção esteja tão estreitamente ligada à mentalidade actual.

É a inversão completa da ordem normal, visto que é a proclamação da supremacia da multiplicidade como tal, supremacia que, de facto, só existe no mundo material; pelo contrário no mundo espiritual e, mais simplesmente ainda na ordem universal, é a unidade que está no cimo da hierarquia, porque é ela o princípio de onde parte toda a multiplicidade; mas quando o princípio é negado ou perdido de vista, só resta a multiplicidade pura, que se identifica com a própria matéria. Por outro lado, a alusão que acabamos de fazer à gravidade dos corpos implica mais do que uma simples comparação, porque a gravidade representa efectivamente, no domínio das forças físicas, no sentido mais vulgar desta palavra, a tendência descendente e compressiva, que traz para o ser uma limitação cada vez mais estreita, e que vai, ao mesmo tempo, no sentido da multiplicidade, representada aqui por uma densidade cada vez maior; e essa tendência é realmente a que marca a direcção segundo a qual a actividade humana se desenvolveu desde o começo da época moderna. Além disso, é caso para notar que a matéria, pelo seu poder de divisão e de limitação, sumultaneamente, é o que a doutrina escolástica chama o "princípio de individuação" e isso luga as considerações que expomos agora ao que dissemos anteriormente a respeito do individualismo: essa mesma tendência a que acaba de se fazer referência é também, poder-se-ia dizer, a tendência "individualizante", aquela segundo a qual se efectua o que a tradição judaico-cristã designa como a "queda" dos seres que se separam da unidade. A multiplicidade vista fora do seu princípio, e que, desse modo, não pode mais ser remetida à unidade, é, na ordem social, a colectividade concebida como sendo simplesmente a soma aritmética dos indivíduos que a compõem e que não é, com efeito, senão isso mesmo desde que não se encontra ligada a qualquer princípio superior aos indivíduos; e a lei da colectividade, sob este aspecto, é bem essa lei do maior número sobre a qual se funda a idéia "democrática".

Nesta altura devemos parar um instante para dissipar uma confusão possível: falando do individualismo moderno consideramos quase exclusivamente as suas manifestações na ordem intelectual: poder-se-ia crer que, pelo que respeita à ordem social, o caso é diferente. Com efeito, se se tomasse esta palavra "individualismo" na sua acepção mais estreita, poderia ser-se tentado a opor a colectividade ao indivíduo e a pensar que factos tais como o do papel cada vez mais invasor do Estado e o da complexidade crescente das instituições sociais, são a marca de uma tendência contrária ao individualismo. Na realidade não é assim, porque a colectividade, não sendo outra coisa senão a soma dos indivíduos, não pode ser oposta a estes, aliás como o próprio Estado concebido à maneira moderna, ou seja, como simples representação da massa, onde não se reflecte qualquer princípio superior; ora é precisamente na negação de todo o princípio supra-individual que consiste verdadeiramente o individualismo tal como o definimos. Portanto, se há no domínio social conflitos entre diversas tendências todas elas pertencentes igualmente ao espírito moderno, estes conflitos não existem entre o individualismo e qualquer outra coisa, , mas simplesmente entre as múltiplas variedades de que o próprio individualismo é susceptível; e é fácil de se dar conta que, na falta de todo o princípio capaz de unificar realmente a multiplicidade, tais conflitos devem ser mais numerosos e mais graves na nossa época do que jamais o foram, porque quem diz individualismo diz necessariamente divisão; e essa divisão, com o estado caótico que origina, é a consequência fatal de uma civilização totalmente material, visto que é a própria matéria que é a raiz da divisão e da multiplicidade.

Disto isto, devemos ainda insistir numa consequência imediata da ideia "democrática", que é a negação da elite entendida na sua única acepção legítima; não é propriamente "por acaso" que "democracia" se opõe a "aristocracia", esta última palavra designando precisamente, pelo menos quando é tomada no seu sentido etimológico, o poder da elite. Esta, de qualquer modo, por definição não pode ser senão o pequeno número, e o seu poder, ou antes, a sua autoridade, que vem apenas da sua superioridade intelectual, nada tem de comum com a força numérica sobre a qual repousa a "democracia", cujo carácter essencial é o de sacrificar a minoria à maioria, e também por isso mesmo, como dizíamos mais acima, a qualidade à quantidade, e, portanto, a elite à massa. Assim, o papel director de uma verdadeira elite e a sua própria existência, porque ela desempenha forçosamente este papel desde que exista, são radicalmente incompatíveis com a "democracia", que está inteiramente ligada à concepção "igualitária", quer dizer, à negação de toda a hierarquia: o próprio fundo da idéia "democrática" é o de que qualquer indivíduo vale tanto como outro porque são iguais numericamente, e embora só o possam ser numericamente. Uma autêntica elite, já o dissemos, só pode ser intelectual; é por isso que a "democracia" apenas se pode instaurar onde a pura intelectualidade já não existe, o que é efectivamente o caso do Mundo Moderno. Somente, como a igualdade é impossível de facto, e como não se podem suprimir praticamente todas as diferenças entre os homens, apesar de todos os esforços de nivelamento, chega-se, por um curioso ilogismo, ao ponto de inventar falsas elites, aliás, múltiplas, que pretendem substituir-se à única elite real; e estas falsas elites são baseadas na consideração de quaisquer superioridades, eminentemente relativas e contingentes, e sempre de ordem  puramente material. Podemo-nos aperceber facilmente disto notando que a distinção social que mais conta no actual estado de coisas é a que se baseia na fortuna, isto é, sobre uma superioridade toda ela exterior e de ordem exclusivamente quantitativa, a única, em suma, que é conciliável com a "democracia", porque procede do mesmo ponto de vista. Acrescentaremos, de resto, que aqueles mesmos que se colocam actualmente como adversários deste estado de coisas, não fazendo intervir qualquer princípio de ordem superior, são incapazes de remediar eficazmente uma tal desordem, se é que não se arriscam mesmo e agravá-la ainda, indo sempre mais longe no mesmo sentido; a luta é apenas travada entre variedades da "democracia", acentuando mais ou menos a tendência "igualitária", que se encontra, tal como dissemos, entre as variedades do individualismo, o que aliás, vem dar exactamente ao mesmo.

Estas curtas reflexões parecem-nos suficientes para caracterizar o estado social do mundo contemporâneo, e para mostrar, ao mesmo tempo, que neste domínio, como em todos os outros, não pode haver senão um único meio de sair do caos: a restauração da intelectualidade e, por consequêcia, a reconstituição de uma elite que actuamente deve ser encarada como inexistente no Ocidente, porque não se pode dar este nome a alguns elementos isolados e sem coesão que representam apenas, de certo modo, possibilidades não desenvolvidas. Com efeito, estes elementos, em geral, têm apenas tendências ou aspirações, que os levam sem dúvida a reagir contra o espírito moderno, mas sem que a sua influência se possa exercer de maneira efectiva; o que lhes falta é o verdadeiro conhecimento, são os dados tradicionais que não se improvisam, e aos quais uma inteligência entregue a si própria, sobretudo em circunstâncias tão desfavoráveis em todos os aspectos, não se pode substituir senão muito imperfeitamente e em fraca medida. Não há, então, senão esforços dispersos, e que muitas vezes se perdem por falta de princípios e de direcção doutrinal; poder-se-ia dizer que o Mundo Moderno se defende pela sua própria dispersão, à qual os seus próprios adversários não conseguem subtrair-se. Será assim enquanto estes se mantiverem no terreno "profano", em que o espírito moderno tem vantagem evidente, visto que é esse o seu campo próprio e exclusivo; e, aliás, se eles se mantêm aí é porque este espírito tem ainda sobre eles, apesar de tudo, forte domínio.

É por isso que tantas pessoas, animadas, no entanto, de incontestável boa vontade, são incapazes de compreender que se deve necessariamente começar pelos princípios, e obstinam-se em gastar as suas forças neste ou naquele domínio relativo, social ou de outro tipo, embora nada de real ou de duradouro possa ser feito nessas condições. A verdadeira elite, pelo contrário, não teria que intervir directamente nestes domínios nem que se misturar com a acção exterior; ela dirigiria tudo por uma influência inapreensível para o comum e tanto mais profunda quanto menos visível fosse. Se se pensar no poder das sugestões de que falávamos há pouco, e que, no entanto, não supõem qualquer verdadeira intelectualidade, pode-se suspeitar o que seria, com muito mais razão, o poder de uma influência como essa, exercendo-se de maneira ainda mais escondida, em virtude da sua própria natureza e buscando a sua origem na intelectualidade pura, poder que, aliás, em lugar de ser diminuído pela divisão inerente à multiplicidade e pela fraqueza que comporta tudo o que é mentira ou ilusão, seria, pelo contrário, intensificado pela concentração na unidade principal e identificar-se-ia com a própria força na verdade.

GUÉNON, René. A crise do mundo moderno. Lisboa: Editoral Vega, 1977. p. 116-124.