sexta-feira, 28 de outubro de 2011

O que se fazer na oração


"Você me diz que não faz nada em oração. Mas o que é que você quer fazer em oração além do que está fazendo, que é apresentar e representar seu nada e sua miséria a Deus? Quando os mendigos expõem suas úlceras e suas necessidades à nossa vista, esse é o melhor apelo que podem fazer. Mas, pelo que me diz, você, às vezes, não faz nada disso, mas fica lá como uma sombra ou uma estátua. Colocam-se estátuas em palácios simplesmente para agradar aos olhos do príncipe. Contente-se com ser isso mesmo na presença de Deus: Ele dará vida à estátua quando bem entender."

S. Francisco de Sales

Oração e Desejo


"Quase não tenho desejos, mas, 
se tivesse de nascer outra vez, não teria desejo nenhum. 
Não deveríamos pedir nada nem recusar nada, 
mas abandonar-nos nos braços da Providência divina, 
sem perder tempo com qualquer desejo, 
exceto desejar o que Deus deseja de nós."

S. Francisco de Sales

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

IV e Final - Psicoterapia e Conversão


Na escola adleriana, da que Allers provém, a psicoterapia é no fundo pedagogia. Se trata de educar ou reeducar o caráter para que se conforme com os fins reais da natureza humana. Desse modo, a psicoterapia se afasta das ciências médicas e naturais, inscrevendo-se entre as morais.

Para esta escola, a psicoterapia teria duas partes: uma analítica, na qual se põe de manifesto a finalidade fictícia que persegue o indivíduo, e os meios que a mantêm; outra sintética ou pedagógica, que visa reformar o caráter.

Allers assume estas idéias, mas "desde o alto", a partir de uma visão mais profunda do ser humano, dada pela antropologia cristã. Este processo de transformação do caráter neurótico, a cura, é considerado por nosso autor essencialmente como uma conversão, ou melhor "metanóia", uma mudança da mente.

Para permanecer firme diante dos conflitos, as dificuldades, as tentações, é necessário ser simples. Para curar uma neurose não é necessário uma análise que desça até as profundezas do inconsciente para achar não sei que reminiscências, nem uma interpretação que veja as modificações ou as máscaras do instinto em nossos pensamentos, em nossos sonhos e atos. Para curar uma neurose é necessária uma verdadeira metanóia, uma revolução interior que substitua o orgulho pela humildade, o egocentrismo pelo abandono. Se nos tornamos simples, poderíamos vencer o instinto pelo amor, o qual constitui - se lhe é verdadeiramente dado se desenvolver - uma força maravilhosa e invencível.

A transformação interior que leva à saúde, começa pela humildade que vence a soberba e a vontade de poder que é o motor oculto do caráter neurótico, segundo Allers. Isto não se pode fazer sem ser movido pelo amor autêntico, que é a força mais potente que impulsiona à plenitude de vida. Justo à humildade e ao amor, Allers coloca um terceiro remédio: a verdade. Allers sempre teve presente como lema de seu trabalho psicológico, a frase de Nosso Senhor: "A verdade os fará livres".

Para poder chegar a esta simplicidade, a esta atitude ante o mundo e ante si mesmo, é necessário fazer entrar em jogo a segunda das grandes forças postas à nossa disposição pela bondade divina: a verdade. Estas duas forças, a verdade e o amor, são as únicas a ser invencíveis. Para libertar-se das cadeias que nos atam aos valores inferiores, para poder resistir às tentações que desde fora ou desde dentro surgem tão frequentemente, para permanecer firmes através dos inevitáveis conflitos da existência, não há que fiar-se do estoicismo que não é no fundo mais que uma forma refinada de orgulho, nem dar-se à pesquisa de causas inconscientes perdidas na distância nebulosa de um passado problemático.

O papel do psicoterapeuta, do pedagogo ou de quem seja que acompanhe a pessoa nesta mudança, é secundário e auxiliar. Se trata de remover os impedimentos ao desenvolvimento destas forças curativas no interior da pessoa, através do amor. Isto implica um certo grau, no iniciante, de desenvolvimento moral e espiritual por parte do terapeuta, que muito frequentemente é tomado como exemplo por quem necessita de ajuda.

É por tudo isto que, na perspectiva "desde o alto" adotada por Allers, psicoterapia e direção espiritual não somente não se contrapõem, mas convergem.A segunda se converte em continuação mais lógica e adequada da primeira.

Uma direção de alma compreensiva, carinhosa, respeitosa, paciente e puramente religiosa, pode chegar a corrigir, a uma vez, a conduta religiosa e a neurótica; porque tal influência aborda, com efeito, o problema mais central de todos. Claro que nem todos esses homens estão em disposição de conhecer e compreender, sem mais nem mais, esse problema, nem ver que é problema para eles. Em tais casos, é necessário um penoso trabalho de ilustração e educação, a fim de levar esses homens até o ponto onde já é possível discutir esse problema, a saber, se precisa, justamente, de uma psicoterapia sistemática.

Rudolf Allers, como bom cristão, é consciente d"os limites dos meios naturais. Em nossa opinião, o domínio mais perfeito de todos os conhecimentos e de todos os procedimentos que deles se seguem, tem que fracassar, em última instância, quando não se liga à conexão, fundamentante e superior em seu alcance, do saber religioso. Estamos convencidos de que é impossível, tanto a fundamentação teórica de uma doutrina sobre a educação do caráter, como a de uma teoria geral do caráter, sem referir-se às verdades religiosas nem enraizar aquelas nestas. Vimos como as abordagens de nossas questões, surgidas de uma imediata necessidade prática, levavam sempre a últimos problemas que unicamente se resolviam no terreno da metafísica e no amplo curso da fé baseada na revelação."

Conclusão

Esperamos que esta breve exposição de algumas das idéias de Rudolf Allers referidas a temas psicoterapêuticos sejam suficientes para despertar o interesse em seu estudo. Nosso autor tem escrito sobre muitos outros temas, psicológicos, filosóficos e pedagógicos, mas pensamos que o que brevemente temos apresentado aqui constitui seu aporte mais pessoal e original.

Por certo, não é necessário estar de acordo à letra com tudo o que Allers diz. Se pode, todavia, aprofundar, completar e precisar em muitos aspectos. Mas é opinião de quem isto escreve que as abordagens principais que aqui expusemos devem ser pontos firmes e fundamentais para uma psicologia que queira ser a uma vez integral e eficaz.

Deste ponto de vista, Rudolf Allers aparece como uma figura emblemática, como um autorizado exemplo de psicólogo cristão, que em modo valente e sincero não contentou em acomodar-se à mentalidade do século, mas buscou sempre o acordo entre fé e razão. Por isso, nos parece digno de ser recordado e imitado.

Martin. F. Echevarria

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

III - Neurose e Santidade: Aridez-Estado e Aridez-Sintoma


Se isto é assim, se a santidade e a neurose são incompatíveis, como se explicam certos fenômenos aparentemente neuróticos que podemos observar na vida de alguns santos, e sobre os quais há abundantes estudos?

Em primeiro lugar, temos que ter presente que para importantes escolas de psicologia, entre as quais se destaca o freudismo, o santo é o protótipo do neurótico. Isto não é uma conclusão, baseada na experiência, senão uma premissa que depende da influência que filosofias como a de Nietzsche tiveram na psicanálise. Não é incomum que logo, analisando a vida dos santos, encontrem o que foram procurar, o que seus princípios teóricos obrigam a concluir.

Por outro lado, temos que ter presente que, salvo Cristo e a Virgem Maria, que não têm a mancha do pecado original, a inclinação à neurose é, segundo Allers, comum a todos os homens. O caminho de santidade, com a ajuda da graça, leva a superar esta inclinação, mas nos estados iniciais da vida cristã, as manifestações de desordem podem ser evidentes. Não, porém, no final.

Para concluir, temos esse período particular na evolução espiritual que São João da Cruz chamou "noite escura". Rudolf Allers propõe distinguir, para não cair no equívoco de confundir a neurose com uma purificação espiritual, o que ele chama "aridez-estado" da "aridez-sintoma". Isto nos remete à distinção feita mais acima entre o caráter neurótico, seus sintomas, e traços ou condutas aparentemente neuróticos, que se dão em uma personalidade fundamentalmente sadia. A aridez como estado, é a que se verifica ao largo de uma purificação passiva da alma, durante a qual se podem dar alguns fenômenos aparentemente neuróticos. A segunda, é sintoma de um transtorno verdadeiramente neurótico de base, um caráter neurótico. Como o distinguimos? Não é fácil; às vezes implica uma agudeza interior e uma sabedoria verdadeiramente sobrenaturais. O critério básico é, a princípio, segundo Allers, o juízo desde a totalidade da personalidade.

Com ele se facilita a compreensão de episódios ou fases neuróticas que com tanta frequência ocorrem, ou que pelo menos se lhes parecem extraordinariamente, no transcurso da vida de muitos santos. Estes fatos não devem induzir-nos a concluir que a vida santa é uma atitude neurótica ou germina no terreno da neurose, como acredita uma incompreensiva explicação pseudocientífica. Ao observar com atenção essas vidas, se vê que os episódios neuróticos não são mais que simples episódios de certos períodos da vida, estados de etapa, nos quais se trava uma luta com o "déspota sombrio do eu" e cuja superação leva sempre o homem a um nível mais alto na vida. Assim se explica também que se possam repetir tais episódios, pois que correspondem a diversos passos da ascensão do homem e iniciam sempre uma "sobreformação" mais completa deste em Deus - para servirmos da expressão de Tauler -. [...] Nos pareceria perfeitamente descabido o intento de explicar a "Noite Escura" e outros fenômenos análogos, como neuróticos ou simplesmente naturais.

Martin F. Echevarria

terça-feira, 18 de outubro de 2011

II - A Normalidade: Ordem, Santidade e Amor


Sendo universal esta inclinação à neurose, tem sentido falar de normalidade ou de saúde? Não tem razão, no fundo, Freud, e os que o seguem, ao negar a possibilidade de uma cura total? Absolutamente não. A postura de Allers está muito longe do pessimismo psicanalítico, que reduz a cura à tomada de consciência da desordem, sem possibilidade de remediá-la.

Em primeiro lugar, Allers põe de manifesto a limitação de uma concepção meramente estatística da normalidade.

Suponhamos que em um país houvesse 999 homens afetados pela tuberculose e só um que não estivesse enfermo. Se poderia concluir que o "homem normal" é aquele cujos pulmões estão carcomidos pela enfermidade? O normal não se confunde com a média. Se pois, segundo a média, o homem se decide pelo instinto, isto não prova que não possa fazer outra coisa, nem que os valores elevados são por natureza débeis.

Se o critério estatístico fosse a norma decisiva, a normalidade seria a tristeza, o fracasso, a rebelião, o desequilíbrio... Para Allers, o critério de normalidade se toma da ordem da realidade, e isto já no nível da medicina.

A medicina, tratando um enfermo, não tem somente a intenção de liberá-lo de seus sofrimentos e de fazê-lo capaz de ganhar a vida; quer também e sobretudo restaurar o estado "normal", porque sabe que o "normal" é o que "deve" ser. [...] A medicina não pode mais que aceitar, seja inconscientemente, seja mesmo contra sua vontade, a idéia de uma ordem para além dos fatos, um estado de coisas que não existe sempre, mas que deve existir e cuja realização constitui o estado "normal".

A anormalidade constitui, portanto, uma ruptura da ordem, embora seja para recair em uma ordem inferior ao devido a sua natureza, pois o homem não pode abolir absolutamente toda a ordem da realidade, senão o que lhe está sujeito. A desordem e anormalidade humanas acontecem, segundo Allers, por três razões: a vontade, a alienação mental em sentido estrito, e a neurose, que participa um pouco de ambas.

A ação anormal é o resultado ou de uma vontade consciente, ou de uma alienação mental, ou desta curiosa modificação do caráter que chamamos neurose. Cada ação ou cada conduta está determinada por seu fim. Este fim é, sem exceção alguma, a realização de um valor julgado mais alto que todo outro considerado na mesma circunstância. As leis que regem a normalidade das ações são as da ordem objetiva dos valores. A anormalidade de uma ação é, em certos casos, causada pela ignorância ou por uma visão errônea da ordem. É mais ou menos o caso do alienado. Em outros casos - esperamos que sejam muito raros - o sujeito age contra umas leis não só conhecidas por ele, senão contra leis das quais não põe em dúvida a validez. Isto é, então, a rebelião aberta, o satanismo declarado. Finalmente, há uma terceira atitude que se localiza de alguma maneira entre as duas precedentes: é a rebelião cuja natureza e existência o sujeito mesmo ignora.

Vimos no ponto anterior que esta última forma de desordem está virtualmente em todo homem pelo pecado original, embora nem sempre se manifeste. Por isso voltemos à pergunta inicial: É possível a normalidade? Em caso afirmativo, em que consiste? Allers responde da seguinte maneira:

Do fato que a inautenticidade constitui, como a todo mundo é dado a entender, uma característica essencial do comportamento neurótico, se segue ademais a consequência de que somente aquele homem cuja vida transcorra em uma autêntica e completa entrega às tarefas da vida (naturais ou sobrenaturais) poderá estar livre por inteiro das neuroses; aquele homem que responde constantemente com um decidido 'sim' ao seu posto de criatura em geral e de criatura com uma específica e concreta constituição. Ou dito com outras palavras: "fora da neurose não fica ninguém além do santo".

Isto pode soar estranho e, com efeito, tem causado muitas polêmicas. Mas se se analisa bem a concepção allersiana da neurose, como não reduzida ao transtorno declarado e explícito, mas como existente radicalmente em todo homem por causa da natureza decaída, estas afirmações são de todo lógicas (para não dizer, ademais, que são congruentes com a experiência cristã). Mas Allers não fica na constatação, por assim dizer, "negativa" da ausência da neurose em uma vida santa ou que tenda realmente à santidade, senão que, "positivamente", afirma que a autêntica "saúde da alma" só se encontra na santidade.

Deste modo, Allers supera amplamente as mesquinhas definições de normalidade da psicologia contemporânea, quando as há, mesmo a de seu mestre Alfred Adler. Sem embargo, assume o que na postura deste último há de verdadeiro. Para Adler, o fim real da vida humana, ao qual se contrapõe o fim fictício da superioridade egocêntrica neurótica, está indicado pelo "sentimento de comunidade", que impulsiona ao altruísmo e a dar a vida pelo bem comum. Em Adler, esta visão fica encerrada em uma atitude imanentista, de tal modo que ao final termina quase por divinizar a comunidade humana. Ao contrário, em Allers, a tendência à vida comunitária, que ele chama, não "sentimento", mas "vontade de comunidade", se cumpre no modo mais pleno na comunidade sobrenatural dos santos, na Igreja, que realiza totalmente a tendência à universalidade por sua intrínseca "catolicidade".

A educação tem que resolver esta difícil tarefa: encontrar o caminho que media entre aquelas medidas que podem minar a vivência do valor próprio, e as que propendem a instaurar uma absolutização desta mesma pessoa. [...] Este paradoxo e antinomia (não maior, ademais, que as restantes divergências antinômicas da vida humana) encontra sua expressão, ou melhor, seu modelo na pervivência de Cristo na Igreja, enquanto comunidade dos santos, podendo viver também na pessoa humana individual: "não vivo eu, mas é Cristo que vive em mim". Assim, pois, o ideal do caráter que unicamente pode satisfazer por inteiro as condições da existência e a natureza humanas - por muito que em concreto varie, de acordo com a constituição individual e a estrutura cultural, nacional, situacional - deve permanecer inscrito no quadro de uma forma de vida que reduza à unidade as divergências polares de indivíduo e comunidade, de pessoa auto-valiosa e totalidade fundadora de valor, de finitude criadora e vocação a participar na vida divina. Não são necessárias mais aclarações para ver que todas estas exigências se cumprem em uma vida católica profunda e exatamente entendida. Assim como Katholikè não somente se estende sobre todas as culturas, povos e tempos, senão que também abarca toda a qualitativa diversidade das pessoas humanas individuais, assim também a vida católica, uma vida segundo o princípio católico, pode satisfazer as divergências de nosso ser, reduzindo-as à unidade de contrários. Não só a Igreja deveria poder viver Kat'olon - por cima de tudo - como de fato o faz, senão, também, cada um dos seus membros.

Aquilo que leva a transcender de alguma maneira a solidão original em que o homem se encontra, e sobre todo seu egoísmo antinatural, é a força do amor. O desejo de união substancial com o amado, sem embargo, não é possível no nível criatural, nem sequer na união nupcial, imagem do amor por excelência. Só o amor de Deus é capaz de preencher o desejo de união e completude a que aspira o coração humano.

Com efeito, que o amor, atitude do eu, seja capaz de levar o homem a transcender seu próprio eu, é uma coisa inimaginável. Para que o eu seja lançado além de si mesmo, é indispensável a intervenção de uma força exterior a si mesmo. Esta força, o amor não pode exercê-la se não é, não somente o ato, a paixão, a atitude do eu, mas um ser em quem o eu e o amor se confundem. É necessário que seja o Amor substancial, e não uma modificação de um ser essencialmente diferente dele. Quando age este Amor, de Deus, a união pode ser realizada (não pelas propriedades de nossa natureza, mas pela graça que vem do alto) a um grau que nenhuma união daqui de baixo poderia produzir jamais. A realização dos desejos que o amor desperta na alma só é possível no amor de Deus e pela ajuda outorgada à nossa impotência pela bondade do Altíssimo.

Martin F. Echevarria.

I - Neurose, Pecado e "Conflito Metafísico"


Este artigo, que disponibilizarei aqui por partes, é de autoria do Sr. Martin F. Echevarria. A tradução, porém, do espanhol, é minha. O texto trata da Psicologia de Rudolph Allers, autor conhecido como o "Anti-Freud", e versa sobre a sua compreensão do fenômeno neurótico. Talvez, por ser dito por um intelectual de renome, o que aqui vai transcrito possa ser crido com maior segurança. Boa leitura.

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Allers distingue entre aqueles transtornos mentais que são enfermidades no sentido estrito do termo, e a neurose, que só é enfermidade por analogia. Como as enfermidades propriamente ditas são desordens do corpo, a neurose não é primeiro e principalmente um transtorno do corpo, senão da alma.

Segundo Allers, antes de tudo, há que distinguir os "sintomas neuróticos" do "caráter neurótico". Ademais, uma coisa é uma neurose propriamente constituída, e outra a aparição de características, que integram a neurose, em uma personalidade que é fundamentalmente sã. Aqui se põe de manifesto a insuficiência de um diagnóstico meramente descritivo. Para diagnosticar a neurose é necessário o conhecimento da personalidade total, de seu estilo de vida, dos fins que persegue, e sua atitude diante da vida como um todo.

É necessário saber distinguir entre a neurose que se manifesta com sintomas, sejam orgânicos, sejam puramente mentais, e o 'caráter nervoso' como dizia o Dr. Adler; também é necessário saber distinguir entre a neurose - manifesta ou não - e a aparição de certas características mais ou menos neuróticas em uma pessoa sadia. Não se deve declarar neurótico a cada indivíduo que sofre de alguma perturbação 'nervosa'; o diagnóstico da neurose repousa sempre e sem nenhuma exceção sobre o estudo da personalidade total.

Allers segue em geral a concepção adleriana da neurose. Para o fundador da psicologia do indivíduo, o caráter neurótico surge do intento supercompensatório do complexo de inferioridade através da vontade de poder, que tem como meta o sentimento de personalidade. O neurótico é uma pessoa que busca por todos os meios, ainda através da debilidade e da enfermidade, chegar a ser alguém, chegar ao topo. A esta meta, o neurótico subordina todas as suas forças cognitivas (imaginação, memória, etc) e afetivas. Este fim de superioridade se concretiza em particular através de determinadas imagens e figuras, complexos de representações, que se põem como metas ou fins "fictícios" (a masculinidade, o poder, a riqueza, etc). Deste modo o neurótico vai criando uma "técnica de vida", e mesmo às vezes a justifica com uma "filosofia de vida", que se traduz no "estilo de vida", que configura seu caráter.

Nosso autor, nestas idéias, se mantém fiel a Adler. Allers identifica a "vontade de poder" do neurótico com a Superbia, que muitas vezes pode não ser consciente, e que configura o caráter em um sentido negativo e destrutivo.

O Dr. Adler foi mais exato do que ele o sabia, quando ensinava que os traços característicos do neurótico são a expressão e a consequência desta ambição inaudita, ambição, porém, velada aos olhos do "enfermo". Mas não poderia, seja por causa de certas limitações do seu pensamento, seja por causa de outros fatores, medir toda a importância de seu descobrimento. Para dizer a verdade, este descobrimento não era novo; se encontra aqui e ali em certos tratados, muito antigos e ignorados pelos psicólogos e médicos, passagens que denotam um conhecimento surpreendente destas coisas.

O caráter fictício da vida do neurótico é chamado por Allers, mentira existencial. No fundo do caráter neurótico se daria, segundo Allers, uma subversão, consciente ou não, de ordem axiológica. A realidade se vinga desta pretensão egoísta do neurótico com o mal estar.

Temos dito que a rebelião consciente ou não, contra a ordem axiológica e a ordem da dignidade conduz necessariamente à mentira. Isto é - entre parênteses - o que faz que tantos neuróticos dêem a impressão de não ser realmente "enfermos" e por isso os demais os acusam de má vontade, de exagero e mesmo de simulação. Esta mentira é inextricável porque para rebelar-se é necessário que o homem exista, e porque existindo, está incorporado, por assim dizer, nesta ordem que ele recusa aceitar.

No homem se dá uma dualidade interior. É a dualidade constatada pela tradição cristã, por São Paulo e por Santo Agostinho, da carne que se rebela contra o espírito. Diz Allers: "O homem arrastado por uma força misteriosa, não necessariamente demoníaca (cf. o que diz Sto Agostinho da 'segunda vontade', Confissões VIII, 9) para uma atitude essencialmente insensata, contrária à objetividade, se torna por isso mesmo, em virtude de uma lei inexorável, a presa da mentira. Essa mentira se instala quando a pessoa não quer ver a realidade: "Não somente existe a mentira que afirma uma proposição contrária à verdade, senão também aquela que fecha voluntariamente os olhos diante da verdade". A mentira é também chamada por Allers "inautenticidade".

Segundo Allers, no fundo do coração do homem existe a tendência à rebelião, e esta é a causa profunda do transtorno característico chamado neurose. Allers fala também de um "conflito metafísico", pois não se trata simplesmente de uma rebelião frente a uma coisa particular, senão frente à ordem total da existência.

Não é possível explicar aqui como esta atitude de rebeldia interior, que geralmente o sujeito não reconhece como tal, constitui um fator de uma importância central na evolução das neuroses. O objeto da rebeldia não é um fato isolado, um sofrimento, um conflito, senão o fato total de não ser mais que uma criatura, limitada em seu poder, em sua existência, em seus direitos. Apesar dos milhares ou milhões de anos que se passaram depois que a serpente empurrou os primeiros homens à rebelião, as palavras do demônio não cessaram de fazer-se escutar devidamente nas profundidades do nosso eu: eritis sicut Dii.

A referência de Allers ao pecado original não é ociosa. Segundo o psiquiatra vienense, a natureza caída é a fonte desta tendência à rebelião, dessa dualidade que está na base do transtorno neurótico. Deixado a si mesmo, todo homem é virtualmente um neurótico.

A neurose surge do exagero ocorrido na divergência - que existe em toda vida humana - de vontade de poder e possibilidade de poder. Em outras palavras: é um resultado da situação puramente humana, tal como está constituída na natureza decaída. Pode igualmente dizer-se que, orientada para o mórbido e o pervertido, faz-se em consequência da rebelião da criatura contra sua finitude e impotência naturais.

Esta neurose virtual, que caracteriza a todo homem pelo fato de ter a natureza decaída e sofrer dentro de si a rebelião de seus membros contra a lei da razão, se atualiza, segundo Allers, quando se manifesta o "conflito metafísico".

O caráter nervoso se transforma em neurose manifesta desde que a situação do indivíduo ameaça pô-lo de frente ao "conflito metafísico". Em certas condições, este conflito pode ficar absolutamente ignorado. Este é o caso quando o indivíduo vive em um meio onde as leis da metafísica - e portanto da realidade - foram abolidas por algum decreto. (Realmente não podem ser abolidas, isso se entende, mas se lhe pode fazer crer às massas porque são demasiado crédulas). Seria possível haver uma diminuição da neurose onde o homem, a raça, a sociedade, o Estado são declarados o bem supremo. Mas não se poderia concluir disso que essas ideologias são mais "sadias" do que o é a filosofia cristã. Deveria somente fazer-nos julgar que estas ideologias impedem a eclosão da neurose porque ensinam à maioria dos homens um método próprio de apartar os olhos da verdade.

Martin F. Echevarria

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Objetivo da Ascese: trocar o medo pelo amor


"A substituição do medo pela caridade graças à prática da humildade 
- nisso consiste toda a ascese de São Bernardo, 
o seu começo, o seu progresso, o seu fim".

Étienne Gilson

Tu não és; Eu Sou.


"Tu és o que não é. Eu sou o que sou. 
Se perceberes essa verdade em tua alma, 
o inimigo nunca te enganará; 
escaparás a todas as suas armadilhas"

Deus a Santa Catarina de Sena

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Reza Tu Mesmo em mim


"Senhor, não sei o que devo pedir-te. Só Tu conheces aquilo de que preciso. Amas-me mais do que sei amar-me. Pai, dá a teu filho o que ele mesmo não sabe pedir. Bate ou cura, abaixa-me ou ergue-me; adoro todos os teus propósitos sem conhecê-los. Estou em silêncio; ofereço-me para o sacrifício; entrego-me a Ti; não quero ter outro desejo senão o de fazer a tua vontade. Ensina-me a rezar. Reza Tu-Mesmo em mim."

Fénelon

terça-feira, 11 de outubro de 2011

The fisherman and the banker


An american banker was walking on a beautiful beach in a small Mexican village. He saw a fisherman in his boat with a few fish on it.

"Great fish!", he said. "How long did it take you to catch them?"

"Not very long", answered the fisherman.

"Why didn't you stay at sea longer to catch some more?", asked the banker.

"There are just enough fish here to feed my family", answered the Mexican.

Then the american asked: "But what do you do the rest of time?"

"I sleep late, I fish a little, I play with my kids, I have siestas. In the evening, I go to see my friends in the village. We drink wine and play the guitar. I'm busier than you think. Life here isn't as..."

The American interrupted him: "I have an MBA from Harvard University and I can help you. You're not fishing for longer periods of time, you'll get enough money from selling the fish to buy a bigger boat. Then with the money you'll get from catching and selling more fish, you could sell them directly to a fish factory, or even open your own factory. Then you'll be able to leave your little village for Mexico City and finally move to New York, where you could direct the company".

"How long will that take?", asked the Mexican.

"About 15 to 20 years", answered the banker.

"And then?"

"Then it gets more interesting", said the American, smiling and talking more quickly. "When the moment comes, you can put your company on the stock market and you will make millions."

"Millions? But then what?"

"Then you can retire, live in a small village by the sea, go to the beach, sleep late, play with your kids."

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O Sair de si mesmo e alguns paralelos da Escritura


Sigamos com a nossa exposição sobre o modo de lidar com as neuroses.

Compreendamos, primeiramente, que o desejo e o medo têm uma íntima relação, sendo este último basicamente um desejo de que algo não aconteça. Quando, por exemplo, nós temos medo de ir para o inferno - e realmente devemos temer isso -, o que na verdade estamos fazendo é desejando não ir ao inferno. Pois bem. 

O desejo é basicamente uma tensão da alma em direção a algo. Logo, o medo seria uma tensão da alma em direção oposta a algo. Se assim é, uma pessoa que se põe a desejar inúmeras coisas, como a temê-las também, viverá com a alma tensa. A tranquilidade, então, se faria quando tanto os desejos quanto os medos cessassem. Esta tranquilidade é fundamental para que o sujeito possa ter uma visão clara e objetiva das coisas. Diz Deus por meio de um salmista: "Cessai, e vede que eu sou Deus". Por "Cessai", Ele está dizendo: "Pare com essa tua busca desenfreada, com essa tua agitação, com esse drama das TUAS coisas e dos TEUS interesses.. Parai.. cessai.. e vede que sou Deus.". É interessante notar ainda outro episódio. 

Certa vez, Jesus estava com os discípulos no alto mar. Acontece que, de um lado, o mar estava revolto e ameaçava pela sua violência; do outro lado, Jesus dormia, rsrs... Com este fato, Jesus parece fazer uma troça das nossas agitações, do nosso esperneamento. Os apóstolos, porém, se viam na iminência da morte. Então, acordaram a Jesus, que, criticando-os pela falta de Fé, olhou, em seguida, para a tempestade e o furor das águas, e simplesmente disse: "silêncio..."

Quando as coisas se acalmaram, os apóstolos então puderam colocar a sua atenção em Jesus e fazer uma pergunta que os levaria a uma resposta importantíssima: "Quem é este que até o vento e o mar obedecem?" Eles chegariam, a partir desta questão, àquilo que concluiu o beato Tito de Brandsma: "tudo é bom perto de ti". Esta quietude que se estabeleceu é importante para que as coisas sejam bem vistas, e é este o estado de alma que Jesus pretendia que os seus discípulos assumissem, quando lhes disse: "Nada temam; creiam somente."

Sta Teresinha, discípula eminente do divino mestre, aprendeu a lição de modo perfeito, e por isso escreveu, fazendo uma menção com o episódio que relatamos acima: 

"Viver de amor quando Jesus dormita: 
eis o repouso entre os escarcéus. 
Jesus, não temas que eu te acorde aflita; 
espero em paz o alvorecer dos céus." 

A analogia com o aspecto neurótico é, aqui, por demais conveniente, pois, embora fosse evidente aos Apóstolos o fato de que estavam ameaçados, é claro que não havia, na verdade, nenhuma possibilidade de morrerem ou se machucarem, pois Jesus estava com eles. Só o notarão, porém, quando estabelecida a calmaria. 

A diferença aqui é que a tranquilidade é estabelecida pelo próprio Deus. Com relação à neurose, é óbvio que Nosso Senhor está a nos ajudar e quer, muito mais do que nós mesmos, que saiamos dessas armadilhas; porém, o passo decisivo é nosso.

Abordemos ainda outra passagem. Há uma ocasião em que Pedro se comporta basicamente como neurótico. De novo, eles estão num barco, e já são três horas da madrugada. Dessa vez, o mar não está agitado. Porém, Jesus aparece ao longe andando sobre as águas. A primeira reação dos Apóstolos é ficarem com medo e pensarem em fantasmas. Jesus, porém, lhes esclarece que era Ele. Escutando isso, Pedro toma uma resolução interessante: "Se és Tu, manda que eu vá ter contigo sobre as águas", ao que Jesus responde: "vem". Esta atitude de Pedro é importantíssima; porém, mal começa a dar passos, ele volta a olhar para as supostas evidências de perigo e começa a preocupar-se - é tipo o outro que sai da redoma pela primeira vez. Pedro desvia os seus olhos da Verdade e volta a acreditar somente nas próprias suposições, o que faz com que comece a afundar.

O que Jesus propõe, sempre e em todo o tempo, é que o sujeito abandone o limite estreito dos seus interesses e preocupações, isto é, dos seus desejos e medos, e se lance acima disso, abandonando-se a si mesmo. Se Pedro tivesse feito isto, não teria afundado.

Interessante também é o caso do rapaz que vai ter com Jesus a fim de saber o que deve fazer para ser salvo. Jesus lhe indica a prática dos mandamentos. Quando alguém obedece regras, isto significa que ele reconhece uma autoridade externa a si mesmo; já não vive apenas para o próprio umbigo. Isto é fundamental. No entanto, o rapaz responde que faz isto desde a juventude. Jesus então, olha-o, ama-o - isto é dito pelo Evangelista - e, por fim, diz: "se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres; depois, vem e segue-me." Obviamente, o que Jesus oferece, agora, é uma radicalização do "viver para Outro" que o rapaz já tinha iniciado na juventude. O problema é que, no caso do jovem, a prática dos mandamentos tinha sido adotada porque isto não lhe exigia ultrapassar a si mesmo. Era-lhe confortável, natural e ele não se sentia pressionado a, na prática, abandonar a si mesmo. Os mandamentos funcionavam como uma legitimação dele próprio, do seu modo de vida; como um espelho que lhe confirmava a própria beleza; como uma garantia de que ele valia alguma coisa. Porém, quando Jesus lhe pede segui-Lo na nudez do espírito, - e só o pediu porque o amou muito, reforcemos - o sujeito sentiu-se ameaçado e, simplesmente, hesitando deixar-se a si mesmo, volta para casa "triste, porque tinha muitos bens". Aqui está um segredo profundo: os muitos bens significam muitos cuidados e estes se inserem naquela estrutura de que falávamos no início: a satisfação de muitos desejos e a verificação constante de possíveis ameaças. A princípio, parece-nos que a posse de muitos bens seria causa de uma grande alegria. Este sujeito, porém, nos confirma a fragilidade de nossas suposições. A alegria, a liberdade parecem estar justamente no abandono de si mesmo em função de um Outro. Ávido, assim, de tantos bens, o sujeito não possui a clareza suficiente para enxergar as coisas de modo profundo. É por isto que S. Francisco de Assis exigia dos seus discípulos uma pobreza completa.

O problema aqui não está estritamente nos bens materiais. S. João da Cruz explicando esse tema da pobreza, diz mais ou menos o que segue: "os bens materiais, por serem exteriores à alma, nada podem fazer, por si mesmos, a ela. O que a enfeia e obscurece é o desejo e o apego que a eles ela investe." O apego, aqui, poderia ser entendido como um medo de deixá-las. Como vimos, este tipo de atitude aprisiona e faz que a pessoa permaneça limitada nos seus próprios interesses, sem abrir-se à Verdade maior.

Jesus, ao contrário, propõe um caminho de liberdade: "Negue-se a si mesmo e siga-me".

É preciso, portanto, transcender o limite dos próprios desejos e medos, e isto se faz por meio do abandono. Quem quer que viva assim, de modo correto, experimentará que sua alma retoma uma saúde que ela nem suspeitava que tinha. E se a pessoa se decide trilhar, de fato, a via da santidade, notará que sua vida vai rendendo, em satisfação, como que cem por um.

Se a neurose se caracteriza por uma proteção pessoal contra supostas ameaças, para desfazê-la, o sujeito deverá munir-se de uma absoluta confiança em algo fora de si. Porém, esta confiança não pode surgir do nada. É preciso adquiri-la e, para tal, o indivíduo terá de iniciar a prática do abandono, isto é, de sair de si e fazê-lo com gratuidade, sem esperar respostas imediatas. Apenas fazê-lo.

Quando uma pessoa vive somente de desejos e medos, ela faz com que sua alma esteja sempre tensa, como já dissemos, e tende a adquirir modos grosseiros, perdendo a sua delicadeza. Isto acontece porque, como ela pretende ser a garantia de seu próprio bem, toda ação da qual for sujeita se ordenará ou para agarrar (pegar por si mesmo) algo que considere um bem (que lhe possa causar prazer, o que é raiz do pecado), ou para afastar violentamente o que considere ser um mal (o que lhe cause desprazer), atitude que é a raiz da nossa dificuldade de aderir à virtude, à mortificação, aos sacrifícios, etc.

Agarrar e empurrar: eis a vida do neurótico. Ambas se caracterizam por movimentos bruscos. Como uma pessoa assim poderá amar profundamente, sendo o amor, basicamente, doação de si mesmo? Como poderá ter uma religiosidade profunda se esta supõe, sempre, amor a Deus e, portanto, abandono? Não é que lhe seja impossível amar ou ser religiosa; é que, para amar profundamente e ter uma religiosidade autêntica, ela terá de contrariar este seu hábito soberbo. A vivência de um amor autêntico, sobretudo com Deus, pode sim ensinar-lhe a dar este salto sobre si mesmo, ao ponto de oferecer-se inteiramente a um outro. A constituição de uma família, neste sentido, também é fundamental. Diz-se, por aí, que quando uma pessoa casa, ela muda pra melhor - em alguns casos sim, rs. E isto se dá porque, a partir do momento em que o sujeito deixa de pensar só em si, só na própria segurança, só no próprio gozo, e nota que os outros são realmente outros, e não objetos para aquisição de prazer, ele como que se reencontra consigo mesmo, e descobre o que significa ser um homem - um humano.

Sobre isso, escreve Thomas Merton: "fazer o bem e renunciar ao mal não é, ainda, a santidade. É tão somente o tornar-se homem. Um animal não pode ser um santo".

Ainda sobre estes modos bruscos do neurótico que se pretende a garantia de si mesmo, escreve S. João da Cruz que o santo deve passar por um longo processo de educação: "para que a delicadeza encontre a Delicadeza". Para encontrar-se com Nosso Senhor é preciso aprender a amar como Ele ama. É o que mais ou menos dizia Plotino: "para que nosso olho pudesse contemplar perfeitamente o sol, teria de tornar-se algo semelhante a ele. Assim, para contemplarmos a beleza, é forçoso que a nossa alma se torne, também, beleza".

Adão quis agarrar o fruto proibido e quis agarrar a condição de ser igual a Deus. É basicamente esta atitude que reside no íntimo de cada alma humana e que é causa de toda rebelião contra Deus, isto é, contra a verdade; é a raiz de toda auto-suficiência, de toda recusa da gratuidade, de toda recusa da confiança num Outro e, portanto, de todo pecado e de todo desamor. O que é o pecado senão um agarrar, de modo ilegítimo e grosseiro, um prazer? O que é o pecado senão uma satisfação bruta do próprio egoísmo? E é justamente este egoísmo que, rebelando-se contra a verdade, confecciona os medos imaginários.

Sobre isto, escreve o Apóstolo S. João: "onde há medo, o amor não é perfeito". Pensem nisso... Abandonem a si mesmos; arrisquem-se. Diz Jesus aos que ficam temerosos: "os pardais não ajuntam em celeiros; no entanto, embora sejam tantos, Deus os alimenta. Os lírios não tecem nem fiam; no entanto, embora sejam tantos e de tão curta duração, Deus os veste de modo mais belo do que qualquer rei jamais conseguiu se enfeitar. Acordem: vocês valem mais que pássaros; vocês valem mais que lírios..."

Por fim, Nosso Senhor, embora seja Deus, está tão sedento do nosso bem que Ele praticamente apela: "Se não credes pelas minhas palavras, crede pelo menos ao verdes as obras que eu faço..." e ainda "a obra de meu Pai é que vocês creiam nAquele que Ele enviou".

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Neste post, não abordei exatamente o que prometi no último, mas penso que estes paralelos com ensinamentos de Nosso Senhor sejam luminosos para nos fazer entender a natureza de tudo isto, conforme havia dito o Apóstolo João: "Ele é a Luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem".

Pax.

Fábio

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Lidando com as Neuroses - Um aventurar-se e o contato com os primeiros lampejos de luz


Continuemos, então, a nossa exposição sobre a natureza das neuroses. Dizíamos, no último artigo a respeito, que ela se configura como um medo exagerado de que algo nos cause desprazer. Ela surge por vezes quando, intentando alcançar um certo ideal, nos tornamos, a partir daí, excessivamente temerosos com o que pode dar errado, compondo, para tal, inúmeros fantasmas e nos assustando com eles. Notem que o fato de criar estes fantasmas se deve, não a um prazer de se passar a perna em si mesmo, senão ao contrário, a uma busca exagerada e frenética de isentar-se de toda e qualquer ameaça. A pessoa age como se estivesse num ninho, onde respira com dificuldades, e a todo momento fica checando se algum inimigo conseguiu se infiltrar na sua fortaleza. Essa questão da verificação é bastante característica e é o que origina certos hábitos repetitivos, certos rituais obsessivos. 

Esse indivíduo, enquanto estiver sendo uma marionete de seus desejos e medos, se verá coibido e privado de exercer seu potencial. É irônico isso: seus medos se levantam numa tentativa de garantir a realização do desejo da pessoa e, no entanto, são eles que sacaneiam tudo. Ela se coloca sob uma redoma que, ao mesmo tempo que tenta cumprir o objetivo de lhe proteger, limita também o seu passo e, obviamente, a sua visão. Enquanto não anda, a sua perspectiva tende a ser sempre a mesma. Assim, parado, a única coisa boa que pode se motivar a fazer é reunir coragem para sair de sua pequena prisão. Agora, notem essa relação: a redoma existe para ele como garantia de segurança e de vida. Sair dela é como expor-se, como desproteger-se; não poderia fazê-lo sem auto-violência. Quando, porém, se decide a arriscar-se, é como se uma luz incidisse sobre este sujeito e o seu coração retomasse um pouco de vida. No ato de abandonar sua casca, ele passa a praticar o preceito evangélico: "quem perder a sua vida, vai ganhá-la" e ainda "o prêmio é dado aos violentos". Eis, portanto, o caminho por onde o sujeito deve trilhar. Essa retomada da vida é um negócio por demais claro. Não é preciso fazer nenhum esforço para, se alcançar este estágio, a pessoa sentir a alegria de uma criança diante de um presente de aniversário. No entanto, a sua soberba é que é lasca: mal sinta a alegria, lá está a pessoa fazendo todo tipo de estratégia para se apossar daquilo, rsrs.. Nós somos uma porcaria mesmo. kkk Continuemos.

Dissemos que estas atitudes covardes se tornam um hábito. O neurótico deverá, portanto, habituar-se a fazer disso - o abandono de si - o seu agir natural, o que não quer dizer que deva ser precipitado. De início, isto pode acontecer, pela falta de tato. Mas é possível perceber, uma vez livre da prisão, a diferença entre as situações que trazem um padrão potencialmente neurótico das outras com as quais o sujeito pode lidar com neutralidade. O objetivo é fazer com que todas as situações sejam tratadas dessa segunda forma.

Porém, retomemos esta questão. O sujeito que renuncia o passo, temeroso de se machucar com qualquer coisa, terá obviamente a sua interpretação das coisas muito limitada. Como tende a descontextualizar o objeto supostamente ameaçador e a considerá-lo com lente de aumento, é óbvio que não estará em condições de, permanecendo do mesmo jeito, elaborar uma estratégia objetiva. Na verdade, o que poderá e deverá fazer é perceber que a sua neurose sempre se dá por meio de suposição, verificação e previsão. Se tal é o caso, o sujeito deve se convencer a, uma vez reconhecido o caráter padrão de seus medos, assumir um absoluto ceticismo quanto a eles. Se toda vez que a pessoa supõe, essa suposição é viciada, então duvide desse negócio, oras. Ainda que seus fantasmas lhe pareçam evidentes, deverá aprender, não sem boas doses de angústias no início, a ficar indiferente e duvidar sempre de si mesmo.

E aqui convém entender o seguinte: como o neurótico está acostumado a fazer todo tipo de previsão com base no que sente no momento atual, supondo que aquela disposição neurótica tende a permanecer, ele não está muito habituado a dar passos sucessivos se não vê, logo nos primeiros, algum resultado. Portanto, se o sujeito por acaso resolve-se a dar uma saída da sua redoma e, ao fazê-lo, não nota de imediato que a sua angústia se foi, tenderá a voltar. Só que as coisas não funcionam assim. Como a neurose causa angústia e cansaço, estes tendem a permanecer durante um tempo, mesmo depois que a pessoa cessou de alimentá-los. É como um rapaz que nunca tenha saído na rua, com medo do barulho dos carros. Na primeira vez que se aventurar, isto não significa que desde o seu primeiro contato com os automóveis ele estará totalmente tranquilo. Este estado de calma só virá com um certo tempo, seja pela constatação de que, na verdade, não há perigo algum, seja porque o sujeito deixou de imaginar situações assustadoras infundadas.

A neurose, portanto, tem essa "inércia", isto é, tende a manter a angústia durante um certo tempo, mesmo quando se optou por não mais ceder às suas ludibriações. No entanto, se o sujeito persevera, antes expondo-se do que escondendo-se, não tardará por sentir uma estranha espécie de paz interior - aqui é que tá a festa do negócio - e o seu ambiente exterior parecerá, de repente, tomado de uma luz mais viva. De repente, o mundo parece um pouco mais amplo e mais belo e se insinua, no fundo da sua alma, um tipo de despreocupação que já era esquecida e que, se perseverar - e há uma certa esperança - será suficiente para que este sujeito, depois de ter sofrido tanto, possa viver com tranquilidade e felicidade. Mal sabe o sujeito que isto é só o início de uma liberdade muito maior. No entanto, é também só o início dos seus combates; atá agora não tinha lutado, mas tão somente dançado a música da própria soberba. Como já o dissemos, é preciso adquirir esse hábito. E muitas vezes a pessoa tenderá a cair, de novo, na própria armadilha.

Porém, se alcançar este primeiro estado de liberdade, este encontro com um raiozinho de sol, a primeira coisa que o neurótico fará é garantir-se desesperadamente de não esquecer o método. E aí, ele fica obcecado pelo caminho que o levou até lá, e, de novo, cai na própria armadilha, porque se fecha, novamente, em si mesmo. O método se torna outra redoma e pode se insinuar na sua alma, posteriormente, o medo de que não seja possível, em algum momento, praticar o que aprendeu. A atitude dele se torna muito semelhante ao que era antes de arriscar-se. Está, de novo, fazendo planos para se defender, e enquanto estiver obcecado pelo método terá, também, os olhos constantemente voltado para os seus medos. 

A este respeito, há um preceito muito interessante no zen que diz: "aprenda o método; esqueça o método". É que o neurótico encontrou uma outra segurança e se aferrou como um náufrago que descobriu qualquer suporte que o impedisse de afundar. Porém, daí a voltar à atitude fundamental de soberba é um passo. Terá de aprender, de novo, a abandonar-se. Por isto que é importante, uma vez aprendido e assimilado o método, esquecê-lo, pois a sua constante lembrança implica, também, em manter distintas as ameaças que o próprio indivíduo criara. Não é por aí.

Outra coisa: dissemos que a neurose geralmente se fixa em situações particulares. No entanto, se o indivíduo arma-se de coragem e a enfrenta - ainda não dissemos claramente o modo de enfrentá-la - e resiste também ao "tempo de inércia", a defesa exagerada se desvincula daquela situação que, de repente, já não parece tão ameaçadora e o sujeito se surpreende em ver que está a meio que banalizar os seus antigos medos. Talvez lhe apareça, lá no fundo da alma, um certo medo de voltar a ter medo, e isto o leva a afastar-se daqueles assuntos mesmo assim e, em geral, ele não está ainda pronto para troçar disso tudo. Ele respeita seus medos, quase como se eles fossem conscientes e pudessem se vingar de qualquer atrevimento. Então, lhe é suficiente deixá-los quietos. Não é bom, a seu ver, desafiá-los nem tratar com eles. No fundo de tudo isto, ainda há a estrutura fundamental de garantir-se proteção e isentar-se de qualquer perigo. Ou seja, o sujeito ainda é neurótico; ele apenas começou o processo de libertar-se desses laços. Melhor seria se os partisse todos de uma vez, mas não está ainda capacitado para tal. Todavia, chegar aqui é, já, ver distintamente uma luz clara no fim do túnel. Agora, é só continuar e fazer-se violência de, como diz a Escritura, não desviar-se para a esquerda ou para a direita. Não há que ficar, porém, obcecado com o método, como dissemos. Pode alegrar-se, naturalmente. Deve até fazer isso; na verdade, ele não está ainda para desforrar, mas já pode divertir-se porque, abandonando a lavagem dos seus medos, embora ainda traga sujeira na boca e nas mãos, esse pobrezinho como que tornou a viver.

Uma vez que a neurose se desvincula de uma situação particular, ela não some simplesmente. Fica meio que em suspensão e tenderá a vincular-se a outra situação - podendo ocorrer de voltar à mesma de antes, se o sujeito se emaranha de novo. Aqui há que se lutar utilizando duas coisas: a inteligência e a coragem. Aprenda a se conhecer e, quando perceber que está a descer a ladeira dos seus medos, trave o passo e se esforce para voltar à indiferença com relação àquilo. Lembre-se que todo o processo neurótico inicia-se com suposições. Não desaprenda a duvidar de si mesmo. Nós somos muito bobinhos e basta um lampejo de luz para nos deixar desarmados. A atitude fundamental que o neurótico deve assumir é o oposto de sua soberba, ou seja, uma radical pobreza espiritual. Lembrem-se de Adão que, enquanto era pobre e aceitava que o Paraíso lhe fosse dado por Outro, podia nele permanecer. Porém, a partir do momento que ele quis, por si mesmo, ser a garantia de seus bens, foi expulso, porque se ensoberbeceu. É a mesmíssima coisa aqui.

Se a neurose assume outra situação, embora haja uma distinção natural por ter mudado de "hospedeiro", o padrão de fundo é o mesmo. Se ela foi vencida no seu último disfarce, tenderá a aparecer agora com um pouco menos de força. E, se vencida de novo, tenderá a assumir outras formas, cada vez mais fracas. Isto é um negócio que só dá pra ter a noção exata quando se faz a experiência. Parece-me, porém, que há muitas pessoas que sequer chegam a essa vitória sobre um só de seus medos.

No próximo artigo sobre o tema, tratarei destes medos comparando-os a crianças mimadas, descreverei o modo prático de contrariar esses chatos e abordarei um negócio chamado "teoria da vinculação" que, ao menos para mim, é fundamental para saber passar a perna nesses danados, rsrs..

Pax

Fábio.

A Coragem - Chesterton

Detesto tourada, mas a imagem é legal.

A coragem é quase uma contradição nos seus termos. Significa um forte desejo de viver, que toma a forma de uma absoluta prontidão para morrer. "Aquele que perder a sua vida salva-la—á", este não é um lema de misticismo para santos e heróis, é um conselho diário para alpinistas e marinheiros. Podia estar impresso no guia do alpinista ou num manual de instrução militar.

Este paradoxo é todo o principio da coragem, mesmo que se trate de uma coragem absolutamente terrena ou de uma coragem absolutamente brutal. Um homem isolado pelo mar poderá salvar sua vida, se arrisca-la, lançando-se ao precipício. Ele só pode escapar da morte, aproximando-se continuamente dela, até que reste apenas uma polegada de distancia. Um soldado cercado pelos inimigos, se quiser salvar-se, precisa combinar um forte desejo de viver com uma extraordinária despreocupação em relação à morte. Não deve, apenas, agarrar-se a vida, pois, nesse caso, seria um covarde e não escaparia. Não deve, tampouco esperar pela morte, pois seria, então, um suicida e também não escaparia. Deve procurar a vida com um ímpeto de furiosa indiferença para com ela; deve desejar a vida como quem deseja água e, no entanto, deve beber a morte como quem bebe vinho.

G. K. Chesterton, Ortodoxia

domingo, 2 de outubro de 2011

Existência de Deus em Descartes


Depois, tendo refletido sobre o que duvidava, e que por conseguinte meu ser não era de todo perfeito, pois para mim era claro que perfeição maior do que duvidar era conhecer, deliberei procurar de onde aprendera a pensar em algo mais perfeito do que eu, e conheci, com evidência, que algo devia existir de natureza mais perfeita.

No que concerne aos pensamentos que tinha sobre várias outras coisas exteriores a mim, como o céu, a terra, a luz, o calor e milhares de outras coisas, não me era tão difícil saber de onde provinham, porque, não vendo neles nada que me parecesse torná-los superiores a mim, podia acreditar que, se eram verdadeiros, eram dependências da minha natureza, do que esta tinha de perfeição, e, se não o eram, isso significava que provinham do nada, isto é, que me haviam sido inspiradas pelo que eu tinha de falho. O mesmo, porém, não podia suceder com a idéia de um ser mais perfeito do que eu, pois era manifestamente impossível tirá-la do nada. E, uma vez que não é menos repugnante admitir o mais perfeito como resultado e dependência do menos perfeito do que admitir que do nada procede alguma coisa, tornava-se claro que tampouco de mim poderia eu tê-la recebido.

Chegava, assim, à conclusão de que fora em mim introduzida por uma natureza verdadeiramente mais perfeita do que eu e encerrasse em si todas as perfeições das quais pudesse eu fazer uma idéia, isto é, para explicar-me numa palavra: Deus. A isso acrescentei, que uma vez conhecendo algumas perfeições que não tinha, não era eu o único ser existente, mas era necessário haver outro mais perfeito do qual eu dependesse e de quem tivesse adquirido tudo o que possuía. Com efeito, se eu fosse só e independente de qualquer outro ser, e tivesse recebido de mim mesmo todo esse pouco pelo qual participava do Ser supremo, de mim teria podido tirar, pela mesma razão, tudo o mais que reconhecia não possuir e, dessa forma, ser também eu infinito, eterno, imutável, onisciente, onipotente, enfim, ter todas as perfeições que podia notar existirem em Deus.

De fato, de acordo com os raciocínios que acabo de fazer para conhecer a natureza de Deus, tanto quanto a minha era capaz, só Mem resta considerar se era ou não perfeição possuir todas as coisas de que tinha uma idéia. E estava seguro de que em Deus não havia nenhuma que apresentasse qualquer imperfeição, mas que todas as outras existiam. A dúvida, a inconstância, a tristeza e coisas semelhantes não podiam existir em Deus, uma vez que eu próprio me sentiria feliz se pudesse estar isento delas.

Além disso, eu tinha idéias de muitas coisas sensíveis e corporais, pois mesmo supondo que sonhava e que tudo o que via ou imaginava era falso, nem por isso podia negar que as idéias a respeito existiam de fato no meu pensamento. Mas, tendo observado em mim, com muita clareza, que a natureza inteligente é diversa da corporal, e considerando que toda composição é uma prova de dependência, sendo esta manifestamente um defeito, julguei que Deus não poderia ser perfeito se fosse composto dessas duas naturezas e, por conseguinte, não o era, e que, se no mundo havia corpos, inteligências ou outras naturezas que não eram inteiramente perfeitas, a sua existência devia depender do poder de Deus, de maneira que não pudessem subsistir um só momento sem ele.

Pretendi, depois, buscar outras verdades, e, tendo-me proposto o objeto dos geômetras, que eu concebia como um corpo contínuo ou um espaço infinitamente extenso em comprimento, largura e altura ou profundidade, divisível em diversas partes que podiam ter diversas figuras e grandezas, e ser movidas e transpostas de todos os modos, pois os geômetras supõem tudo isso no seu objeto, examinei algumas de suas demonstrações mais simples. Notei, então, que a grande certeza que todos lhe atribuem se baseia unicamente no fato de serem concebidas com evidência, de acordo com a regra que há pouco expus. Depois, também notei que não havia nelas nada que me certificasse da existência do seu objeto, pois via, por exemplo, que num triângulo os três ângulos devem ser necessariamente iguais a dois retos, mas não via nisso nada que me garantisse existir no mundo qualquer triângulo.

Assim, tornando a examinar a idéia que fazia de um ser perfeito, achei que a sua existência estava nele compreendida do mesmo modo que na de um triângulo está incluso que os seus três ângulos são iguais a dois retos, ou, na de uma esfera, que todos os seus pontos são eqüidistantes do centro, ou ainda mais evidentemente. Portanto, é pelo menos tão certo que Deus, esse ser perfeito, é ou existe, quanto o pode ser qualquer demonstração da geometria.

René Descartes, Discurso do Método, Quarta Parte

sábado, 1 de outubro de 2011

Quem é Deus?


Vez ou outra, eu fico a pensar na pessoa de Jesus e vejo, de um modo mais profundo e mais claro que eu, de fato, não sei muito a respeito d'Ele. Há momentos que eu fico a perguntar-Lhe: "Quem és?" Não é uma pergunta sem sentido... Eu poderia tranquilamente dizer que Jesus é Deus, o que é verdade, ou que Ele é amor, como diz João, o que é verdade também. Mas, peguemos essa definição: "Deus é amor". O que, de fato, isso quer dizer? Para mim, particularmente, é um mistério.

E é um mistério porque o meu conceito de amor é, por força, finito. E esta delimitação feita pelo conceito só pode ser aplicada a Deus por analogia, pois Deus a transcende absolutamente. Como saber quem é Ele? De um lado, é dito de Ele ser tão justo que o homem mais santo tem motivos suficientes para tremer e, ainda, que o poder do Seu braço é aterrador; outras vezes, ainda, sobre a timidez do Seu amor, a Sua ternura e Sua doçura. Outras tantas, Ele é o doce Sedutor que conquista a alma. Todas estas definições realmente dizem algo d'Ele, mas, diante desta variedade e, por vezes, aparente oposição de características, como saber quem, de fato, Ele é? Mesmo que tivéssemos um só conceito, como fazer uma perfeita adequação do nosso pensamento a Ele? Como conhecê-Lo de verdade, ao invés de apenas conhecermos as idéias que temos dEle?

Sim, eu e Ele temos momentos íntimos. Eu sempre O comungo. É difícil imaginar um tipo de união mais íntima, um tipo de abraço mais completo. No entanto, Ele mantém-Se escondido e eu continuo sem saber muito bem como Ele é. Por mais que eu me esforce, apenas obterei uma imagem, uma projeção, uma suposição, obviamente limitadas. E Ele está além disto. Como alcançá-Lo neste além?

Não há que se relativizar a Teologia. De modo algum. O pouco que podemos saber d'Ele nos vem por meio dela. O objeto da Teologia é, de fato, Deus, mesmo que ela se faça a partir de fórmulas conceituais humanas. A contemplação de Deus será uma experiência direta daquilo que, pelas fórmulas teológicas, já vislumbramos com o conceito.

Fico a pensar nessas coisas, e lembro-me, agora, de S. João da Cruz que, retomando S. Paulo, escreveu: "O justo viverá pela Fé". É preciso saltar no meio dessa nuvem, dessa indefinição, pois Aquele que fez nas trevas a Sua tenda está para além dos nossos conceitos e imagens. Agora, de fato, dEle temos apenas uma notícia confusa, mas um dia O veremos face a face. Conceda-nos Ele esta felicidade.

* É realmente dificílimo dizer com precisão quem é Ele, mas nos é possível afirmar o que Ele não é.