sábado, 10 de maio de 2014

Kierkegaard e Regine


Durante dois anos [Kierkegaard] estudou para valer, vivendo uma vida absolutamente cristã. Nesse período conheceu uma adolescente de boa família, Regine Olsen. Embora a garota tivesse dez anos menos que ele, Kierkegaard afeiçoou-se profundamente a ela. Cortejou-a na maneira formal da época, enviando-lhe livros e lendo para ela, escoltando-a de braço dado pela Esplanada nas tardes de domingo. Regine ficou deslumbrada com seu rico pretendente, cujo brilhantismo e graças sociais eram temperados por um toque de sedutora melancolia. A afeição de Kierkegaard era igualmente profunda mas inteiramente espiritual. 

Na sua inocência, Regine dificilmente percebia isso: tal comportamento era considerado bastante normal na sociedade dinamarquesa decente. O lado físico de qualquer relacionamento vinha depois — e ai do pretendente que pensasse de outro modo. Apesar da sua ingenuidade, logo ficou claro para Regine que ela havia se apaixonado por um jovem nada comum. 

Kierkegaard era meticuloso com os livros que lhe dava. Insistia em discutir de forma completa as idéias neles contidas, instruindo-a sobre a maneira correta de interpretá-las. Parecia que Kierkegaard queria dominar a jovem de 17 anos de modo tão completo quanto seu pai o dominara. Mas Kierkegaard não era feito da mesma obstinação do pai. Algo nele percebia que isso era errado, que toda a situação era um erro. Mas ainda a amava. Às vezes parava de ler para ela e Regine notava que ele chorava em silêncio. O mesmo ocorria quando, vez ou outra, ela tocava piano para ele. Como Regine observou, “Kierkegaard sofria medonhamente de melancolia” — o que se revelaria, além de tocante, tragicamente profético. 

Quando Kierkegaard passou nos exames universitários, ficaram noivos e ele começou sua formação para tornar-se pastor. Uma vida normal acenava para ele. Mas Kierkegaard era incapaz de uma vida normal — e sabia disso. Espiritualmente, psicologicamente, emocionalmente, fisicamente — em quase todos os níveis uma vida assim lhe era impossível. Mas o impossível havia acontecido: ele se apaixonara. Regine tornara-se bem mais que a protegida espiritual que ele havia pretendido. Ao mesmo tempo Kierkegaard sentia-se atraído por uma vida além do normal, uma vida “mais elevada”. Mas ainda não sabia plenamente que vida era essa. Tudo o que sabia era que desejava dedicar-se a escrever, à filosofia, a Deus. E por isso sentia instintivamente que era necessário sacrificar tudo o mais. 

Dois dias após ficar noivo, percebeu que tinha cometido um erro. Tentou romper o noivado da forma mais gentil possível, mas Regine não compreendeu. Ele lhe devolveu seu anel. Ela continuou sem compreender. (Regine sabia que ele a amava.) Seguiu-se uma tragicomédia, que perturbaria Kierkegaard até o fim da vida. Durante anos ele analisaria, fantasiaria, sofrendo desilusões e dissecando suas reações com uma honestidade de partir o coração. Quanto mais se preocupava com o assunto, mais profundos ficavam seus pensamentos.

Depois que Kierkegaard finalmente rompeu o noivado com Regine, fugiu para Berlim. Ficaria um ano lá.

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Aos 30 anos de idade, Kierkegaard dedicava sua vida quase inteiramente a escrever. Não via mais os velhos colegas e levava uma existência solitária. Só saía para longas caminhadas pelas ruas de Copenhague, onde sua aparência cada vez mais excêntrica chamava a atenção. Figura magra e recurvada, usava um chapéu alto e calças apertadas com uma perna sempre mais curta que a outra. Aparentando ser mais velho do que era, já passava por um homem de meia idade. Ocasionalmente parava e conversava com criancinhas. Dava-lhes pequenos presentes e elas cautelosamente se deliciavam com o humor travesso daquele estranho e jovem velhinho. 

Nos fins de semana Kierkegaard alugava um coche e passeava pelos jardins da cidade ou ia até o campo. Permaneceu cônscio do seu status como filho de um dos comerciantes mais ricos da cidade. Mas a família Olsen tinha ficado ultrajada com o seu comportamento em relação a Regine e o resultado foi que a sociedade educada o colocou no ostracismo. 

Nos domingos ia à igreja. Entre os outros membros da congregação muitas vezes via Regine. E ela o notava. Não se falavam, mas estavam bem cientes da presença um do outro. Embora a tivesse ferido gravemente (e mais ainda a ele mesmo), permanecia um laço oculto entre eles. Com todo o seu auto-exame psicológico e sua honestidade, Kierkegaard continuava curiosamente propenso à ilusão. Não conseguia evitar a esperança de que algum dia, de alguma forma, ele e Regine se uniriam de novo, presumivelmente em algum tipo de laço espiritual. Embora soubesse que era impossível, não podia impedir-se de desejar o impossível. A análise que fazia da relação deles continuava a ser uma preocupação constante. E isso apenas contribuía para seu 
autoconhecimento cada vez mais profundo. Tornou-se por demais consciente dos infindáveis subterfúgios que a mente emprega consigo mesma. O que havia começado como um fiasco extremamente pessoal da inadaptação levou-o a ver as inadequações universais da natureza humana.

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Em 1844 Kierkegaard concluiu O conceito de angústia e também um livrinho intitulado Migalhas filosóficas. A este acrescentou extenso Pós-escrito conclusivo não científico: Composição mímico-patético-dialética, uma contribuição existencial (sob o pseudônimo de Johannes Climacus mas “publicado por S. Kierkegaard”). Aí aparece pela primeira vez a palavra existencialista — na sua forma dinamarquesa Existensforhold (“condição de existência, relação existencial”). Kierkegaard a essa altura já tinha escrito mais de um milhão de palavras em cinco anos e não era de espantai que se sentisse perdido sobre o que dizer. 

Assim, mantendo a sua filosofia, ele decidiu agir — criar a si mesmo fazendo uma opção importante. Sua decisão de agir foi caracteristicamente perversa. Algumas de suas obras publicadas sob pseudônimo receberam críticas razoavelmente favoráveis na revista Corsair. Era a folha satírica e escandalosa de Copenhague, famosa pelos ataques e vitupérios contra personalidades locais. Kierkegaard optou então por instigar a Corsair a atacá-lo, publicando uma carta maldosa contra a revista (“é um insulto ser elogiado em tal publicação”) e revelando a identidade dos seus editores anônimos (o que fez um deles perder a oportunidade de um cargo no magistério). 

O resultado era previsível. Por vários meses, todas as edições de Corsair trouxeram ataques a Kierkegaard e seus pseudônimos. Sua aparência foi caricaturada, suas roupas ridicularizadas e suas idéias viraram motivo de zombaria. Antes, Kierkegaard era notado como uma figura estranha, um escritor e intelectual talentoso que fora “acometido de religião” e se tornara um recluso depois de um amor infeliz. Nas ruas era visto como uma curiosidade, mas pouca atenção despertava em geral. Agora tudo isso mudara. Em função da série de artigos e desenhos na Corsair, o homenzinho magro, curvado e envelhecido, com seu andar de caranguejo, suas calças com pernas de tamanho desigual e seu grande guarda-chuva, tornou-se objeto da chacota pública. 

Nas ruas, crianças e rapazolas passavam correndo por ele, fazendo zombarias. Lojistas e membros respeitáveis da sociedade riam abertamente quando ele passava. 

Kierkegaard era uma personalidade sensível e seus sofrimentos com esse tratamento podem ser imaginados. Mas a questão é que ele mesmo atraíra tudo isso. Ele sabia exatamente o que estava fazendo. (“Aluga-se a Corsair para abusar, assim como se aluga um tocador de realejo para fazer música.”) Então por que ele o fez? Como seria de esperar em se tratando de uma personalidade tão complexa, a resposta não é nada simples. Não há dúvida de que era uma manifestação do mesmo complexo de mártir que o levara a espicaçar os colegas mais velhos na escola. Não há dúvida também de que o desprezo público por sua obra tinha algo a ver com isso. Kierkegaard tinha agora 33 anos de idade e ainda mal era conhecido como escritor. Assim, se não podia ser famoso, ficaria notório. 

Por trás dessa dubiedade e egoísmo, Kierkegaard tinha também um propósito mais sério e sincero (embora não desprovido de egoísmo e dubiedade). Queria ser ultrajado pelos concidadãos para se tornar um homem melhor. Usava-os para tornar-se um cristão melhor. Se queria viver a vida do espírito, a única que valia a pena, essa era uma maneira de se estimular. (Se suas aspirações menores de antes foram em parte inconscientes, essa certamente não o era.) E naturalmente havia uma razão subjacente a todas elas. Nas palavras do único contemporâneo de Kierkegaard que a ele se compara como pensador religioso (Pascal), “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. A razão que se escondia no coração de Kierkegaard era Regine. Ele desejava chamar sua atenção, mostrar-lhe como estava sofrendo.

Mas se sua intenção era cativar Regine, ele evidentemente fracassou. Nessa época ela ficou noiva de outro homem e um ano depois se casava. Isso feriu profundamente Kierkegaard, embora não o demonstrasse. O que deixava ver era o prematuro envelhecimento em suas feições encarquilhadas. Os anos de sofrimento intenso, ascetismo, isolamento e constante esforço mental começavam a cobrar seu tributo. Mas, apesar de todo o seu discernimento cada vez mais profundo da condição humana, ainda apegava-se à sua impossível ilusão, sonhando que um dia se uniria de alguma forma a Regine. (Aos domingos ainda se viam na igreja.) Em abril de 1848 Kierkegaard teve uma experiência religiosa. “Toda a minha natureza mudou”, escreveu no diário. 

Percebeu que apenas seu amor por Deus poderia protegê-lo da preocupação excessiva consigo mesmo. Daí em diante passaria a escrever diretamente a palavra de Deus, não mais se escondendo por trás de pseudônimos. Fez isso numa outra série de livros, meia dúzia de obras nos três anos seguintes. A visão religiosa de Kierkegaard é totalmente louca, adequada apenas a santos e misantropos dedicados. Na sua opinião, “toda a existência humana opõe-se a Deus”. No centro da religião de Kierkegaard (como também no coração da sua psicologia) está a noção da Queda — a perda da graça do Jardim do Éden pela humanidade. Essa queda foi o egoísmo, cuja principal manifestação era o sexo. Como sempre, tudo culpa das mulheres, que ganham com a experiência imagem bem negativa. “As mulheres são o egoísmo personificado... Toda a história do homem e da mulher é uma enorme intriga construída sutilmente ou um truque calculado para destruir o homem como espírito.” A única resposta é o celibato — em escala universal. A vontade de Deus só será cumprida quando toda a raça humana se extinguir.

(...)

Kierkegaard decidiu que era hora de expor a charada do cristianismo tal como era pregada pela Igreja da Dinamarca. Apesar da escassez de recursos, lançou uma revista intitulada O Momento (editor e único colaborador: S. Kierkegaard). Nela atacava a Igreja como “uma máquina”, castigando um dos seus amados bispos como um hipócrita mundano. (Para piorar as coisas, era também hegeliano.) Numa edição chegou a sugerir que se descobrissem que Cristo não existiu, a Igreja continuaria exatamente como antes e poucos pastores renunciariam a suas vidas de conforto. 

Como era de esperar, isso causou grande escândalo. Não havia agora nenhuma chance de Kierkegaard perder sua liberdade: um emprego de pastor estava fora de questão. Sob vários aspectos, foi a repetição do incidente com a Corsair. Mais uma vez Kierkegaard alcançava a fama e atraía a atenção geral (seus artigos logo foram traduzidos em sueco e a controvérsia se espalhou pela Escandinávia). O mundo lhe dava o que ele achava (consciente ou inconscientemente) que lhe era devido. Mas era a fama da única maneira que Kierkegaard podia aceitar — notoriedade e execração. Ao mesmo tempo, não é difícil ver aqui um eco do jovem Kierkegaard pai amaldiçoando a Deus numa colina da Jutlândia. E, claro, o episódio trouxe-o novamente à atenção de Regine. 

O marido de Regine fora recentemente nomeado governador das Índias Ocidentais dinamarquesas (três ilhotas caribenhas). Kierkegaard quase certamente soube disso; até que ponto esse fato desencadeou o lançamento de O Momento é algo que só se pode especular. Em abril de 1855, na manhã em que zarpava para as Antilhas, Regine deu um jeito de encontrar Kierkegaard na rua. Parou então e lhe disse calmamente: “Deus o abençoe. Que as coisas saiam bem para você.” Kierkegaard ergueu o chapéu, “trocando saudações gentilmente”, e cada um seguiu o seu caminho. Foi a primeira vez que se falaram depois de rompido o noivado, quatorze anos antes. E seria a última vez em que poriam os olhos um no outro. 

Uma fraqueza crescente, combinada com o estresse da sua campanha contra a Igreja, logo cobrou tributo à saúde de Kierkegaard. Sete meses depois da partida de Regine para as Índias Ocidentais, ele sofreu um colapso na rua e foi levado para o hospital. Usou o que restava do seu dinheiro para pagar a impressão do número seguinte de O Momento. Fraco e em desespero (estado cuja topografia conhecia tão detalhadamente), perdeu a vontade de viver. Mas nunca perdeu a fé. Os que o viam reparavam o olhar radiante que dava vida a seu rosto emaciado e o seu ar de serenidade. Morreu em um mês, em 11 de novembro de 1855. Deixou em testamento seus poucos bens para Regine. 

Paul Strathern, Kierkegaard em 90 minutos