sábado, 16 de junho de 2018

Mais uma primavera...

Estou aqui no começo do meu dia pensando em como manter a tradição de escrever, como geralmente faço nessas ocasiões. Estes textos exprimem as evoluções ou involuções do meu espírito. O que eu posso dizer é que hoje em dia a minha vida é muito singular, no sentido de que o que ela é agora, em certo sentido parece não poder ser reduzido a uma mera e óbvia culminância do que já era. Pelo menos, parece. A vida humana é sempre misteriosa e nela coabitam, ao lado daquilo que percebemos, coisas subliminares, escondidas, discretas, mas reais. Há um estranho preconceito de que o que está submerso, subjacente, é mais real do que aquilo que aparece. E há um preconceito em tomar o termo "preconceito" por algo necessariamente ruim e falso. A vida parece ser um processo de desenrolar de uma espécie de essência que vai, aos poucos, tomando forma, realizando-se, tornando-se ato e fazendo com que o eu seja isso mesmo: atual. O ideal vai tomando corpo e vamos aparecendo, adensando ontologicamente, o nosso futuro não sendo somente o desabrochar do que já tínhamos existencialmente em estado de latência, mas a criação real de um quê - que procede do ideal - que é irredutível ao que já havia e que vem somar-se isso. De algum modo, somos mais o que já somos na medida em que já não somos o que fomos.

Este é um dia feliz. Pelo menos é o modo que eu tendo a considerar os aniversários, muito embora a essa altura do campeonato a gente já comece a lamentar mais um ano que se passou. Mas cá estamos, depois de mais 4 estações, e de tantas coisas vividas, e sofridas, e ridas. Tudo vai tomando lugar, se encaixando, formando esse mosaico que dá uma unidade gradativamente mais perfeita e significativa a todo o conjunto. Neste processo, mesmo o que não foi tão bom tem o seu lugar e dá o seu tom à personalidade e ao vibrar do ser. Somos vozes divinas que se sucedem durante um tempo. Dir-se-ia que daqui a alguns anos eu alcanço a linha de transição e passo ao início do fade-out. Mas como a voz é divina, embora a sua manifestação seja sucessiva, a sua natureza é imortal. A voz é um veículo de efetivação de uma ideia que é imediata e eterna. Sou eterno por participação.

É um dia privilegiado, porque por toda a parte vemos manifestações de carinho, e fica evidente se algum bem nós fizemos a alguém. Claro que estas coisas são enfatizadas e vistas às vezes com lentes de aumento. Mas como somos entes carentes, é importante que uma vez ao ano, pelo menos, alguém nos recorde da nossa importância e valor e do bem que, propositalmente ou não, conseguimos fazer. O aniversário é um símbolo do Céu, que invade a nossa vida de exílio e nos toca. É uma liturgia solene em que Deus dá uma espécie de direito particular ao agraciado. É um dia que lhe é separado, e, não houvesse gente sofrendo muito e até morrendo nessas ocasiões, dir-se-ia que tudo nos parece favorável. Nem sempre será assim, no entanto. E nem sempre o foi, pra falar a verdade. E nem é. O ponto é que a nossa alegria transfigura a vida, o mundo, e tudo reflete o que nos vai na alma.

Neste meu dia, sou grato a Deus pelo dom da existência, da vida, da família e dos amigos que eu tenho, e de tantas outras coisas com as quais Ele me presenteou e me presenteia. Minhas rebeldias excessivas recordam-me do Seu amor sobreexcessivo, e as minhas iniquidades me fazem contemplar, com mais relevo, a superabundância da Sua graça. E é por ser de graça que é amor. É como os raios do sol que vêm bater contra a superfície de uma porta. Nada é preciso fazer além de abri-la, para que aquela luz ilumine o interior. E então a casa será luz por participação. O material da alma humana, recorda-nos Sta Teresa, é de tal modo brilhante que recepciona perfeitamente aqueles dardos do sol divino e resplandece. Queria sempre resplandecer, mas as misérias que me habitam, os demônios que falta exorcizar, limitam muito a operação normal desse pobre grão de areia. Mas Deus o ama e, por isso, ele resiste. Deus é bom, e essa é uma verdade inconcussa que se obstina a manter-se, sem nenhum mínimo abalo, diante dos caprichos infantis dessa existência. Os braços amorosos de um pai são fortes o bastante para conterem o esperneio do filho. Na mente da criança, tudo é caos, mas só o pai é realista.

Quero passar os meus dias crendo no realismo do meu Pai, e não nas minhas perspectivas sempre tão limitadas. Espero também crescer sempre um pouco mais a fim de que o meu olhar seja sempre mais reto, mais verdadeiro, mais profundo. Mas o que importa, nisso tudo, é que Deus é invencível e sitia, diz o visceral Léon Bloy, certas almas com todo o Seu poder. Que belo presente seria se Ele me elegesse para isso. "Que terrível é cair nas mãos de Deus", escreveu São Paulo. E que terrivelmente belo e saboroso isso deve ser... Que eu jamais me aparte daí. "Ó meu astro amado, fascinai-me, a fim de que não me seja possível mais sair de vossa irradiação", escreveu Sta Teresa Elisabete da Trindade. E eu, que da santidade não tenho nem a poeira, ouso pedir o mesmo, e sou feliz desde já porque Ele me concedeu o dom da existência. Desde então, perceba eu ou não, Ele é mais íntimo de mim do que eu mesmo. Jamais estarei só. Mais um ano é menos um ano. E então tudo se descortinará, e o sorriso será pra sempre. Assim espero. Assim o creio.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

"É mais urgente pensar no que se deve ser do que no que se deve fazer" Mestre Eckhart

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Deves saber que jamais alguém renunciou tanto nesta vida que não encontre a que ainda não devesse renunciar. São poucos os que têm plena consciência disto e se mantêm firmes. No fundo, trata-se de uma troca proporcional e de um negócio justo: na medida em que sais de todas as coisas, nesta mesma medida - nem mais nem menos - Deus entra em ti com tudo o que Ele tem. Mas somente com a condição de que tu em todas as coisas te despojes completamente de ti mesmo. Começa com isso e paga para isto o quanto puderes.

É mais urgente pensar no que se deve ser do que pensar no que se deve fazer. Se as pessoas e suas atitudes forem boas, suas obras brilham com toda claridade. És justo, então tuas obras serão justas. Não se pense em fundamentar a santidade num fazer; antes deve-se fundamentar a santidade num ser, pois as obras não nos santificam; nós é que santificamos as obras. Por mais santas que forem as obras, elas, enquanto obras, jamais chegam a nos santificar. Mas na medida em que nosso ser e nossa natureza forem santos, nesta mesma medida santificamos todas as nossas obras como o comer, o dormir, o acordar, ou outra coisa qualquer. De nada valem as obras, pouco importa quais, daqueles que não são portadores de uma natureza elevada. Tira disto a seguinte lição: coloca todo o teu empenho em ser bom; não te preocupes com o que fazes ou com o tipo de obras que fazes, mas com o fundamento e o motivo das obras.

Mestre Eckhart, Conselhos espirituais

domingo, 7 de janeiro de 2018

O despertar de Satyakam

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Satyakam era uma criança muito questionadora. Não acreditava em nada a menos que ele mesmo o houvesse experienciado. Quando ficou mais velho - ele devia ter cerca de 12 anos -, disse à mãe: "Chegou a hora. O príncipe do reino foi para a floresta para se juntar à família de um mestre. Ele tem a minha idade. Eu também quero ir, também quero aprender qual o significado desta vida."

A mãe disse: "Vai ser muito difícil, Satyakam, mas sei que você já nasceu um buscador. Eu temia que um dia você me pedisse para enviá-lo a um mestre. Sou uma mulher pobre, mas esse não é um grande empecilho. A dificuldade é que quando eu era jovem trabalhei em muitas casas - eu era pobre, mas era bonita. Não sei quem é seu pai. E, se enviá-lo a um mestre, vão lhe perguntar qual é o nome do seu pai e temo que ele possa rejeitá-lo. Mas não custa fazer um esforço. Vá e diga a verdade, da mesma maneira que eu lhe contei a verdade. Muitos homens usaram meu corpo porque eu era pobre. Diga simplesmente que você não sabe quem é seu pai. Diga ao mestre que seu nome é Satyakam, que o nome de sua mãe é Jabala e que por isso o chamam de Satyakam Jabal. E, no que diz respeito à busca da verdade, não importa quem é seu pai".

Satyakam foi até um antigo mestre na floresta e, certamente, a primeira pergunta foi: "Qual é seu nome? Quem é seu pai?"

E ele repetiu exatamente o que sua mãe havia dito.

Havia muitos discípulos - príncipes, filhos de pessoas ricas. Todos começaram a rir. Mas o velho mestre disse: "Você está aceito. Não importa quem é seu pai. O que importa é que você é autêntico, sincero, corajoso - capaz de dizer a verdade sem se sentir constrangido. Sua mãe lhe deu o nome certo, Satyakam. Satyakam significa aquele cujo único desejo é a verdade. Você tem uma bela mãe, e será conhecido como Satyakam Jabal. E como segundo a tradição só os brâmanes podem ser aceitos como discípulos, eu o declaro um brâmane, porque só um brâmane pode ter a coragem de tal verdade."

Belos dias foram aqueles. O velho profeta se chamava Uddalak. Satyakam tornou-se seu mais amado discípulo. Ele o merecia: era tão puro e tão inocente.

Mas Uddalak tinha suas próprias limitações. Embora ele fosse um homem de grande sabedoria, não era um mestre iluminado. Então, ensinou a Satyakam todas as escrituras, ensinou-lhe tudo o que foi capaz de ensinar, mas não conseguiu enganar Satyakam como havia enganado todos os demais. Não que Satyakam estivesse levantando quaisquer dúvidas; mas sua inocência tinha tal poder que o velho homem teve de confessar: "Tudo o que eu tenho lhe dito é conhecimento extraído das escrituras; não é meu próprio conhecimento. Eu não experienciei isso, não vivi isso. Sugiro que você penetre mais fundo na floresta. Conheço um homem que alcançou a realização, que se tornou uma corporificação da verdade, do amor, da compaixão. Vá até ele."

Uddalak havia ouvido falar daquele homem, mas não o conhecia pessoalmente. Uddalak era bem mais famoso, era um grande erudito. Satyakam foi procurar o outro homem. Esse homem que ensinou muitas novas escrituras, todos os Vedas, as mais antigas escrituras do mundo. E após anos disse-lhe: "Agora você já sabe tudo; não há mais nada a saber. Você pode voltar para casa."

Na sua volta para casa, primeiro ele foi ver Uddalak. Da sua janela, Uddalak viu Satyakam chegando pela trilha que vinha da floreta. Ficou chocado. Satyakam havia perdido sua inocência; no lugar da inocência havia orgulho - naturalmente, porque agora ele achava que sabia tudo o que valia a pena saber no mundo. A simples ideia disso enchia seu ego. Ele entrou, e, quando começou a tocar os pés de Uddalak, este lhe disse: "Não toque os meus pés! Primeiro eu quero saber onde você perdeu sua inocência. Parece que o enviei ao homem errado."

Satyakam disse: "Ao homem errado? Ele me ensinou tudo o que vale a pena saber."

Uddalak disse: "Antes que você toque os meus pés, eu gostaria de lhe perguntar se você experienciou alguma coisa ou se isso é apenas informação. Aconteceu alguma transformação? Você pode dizer que qualquer coisa que saiba é um conhecimento seu?"

Satyakam disse: "Não posso dizer isso. O que eu seu está escrito nas escrituras; não tive a experiência de nada."

Uddalak disse: "Então volte, mas agora vá procurar outra pessoa da qual ouvi falar enquanto você estava fora. E, a menos que tenha experienciado, não volte. Você voltou para cá não com mais do que quando eu o enviei, mas com menos! Você perdeu algo de imenso valor. E o que você chama de conhecimento - se este é emprestado, ele só encobre sua ignorância; não faz de você um conhecedor. Vá até este homem e lhe diga que você não foi até lá em busca de mais informações sobre a verdade, sobre Deus, sobre o amor. Diga-lhe que você foi para conhecer a verdade, para conhecer o amor, para conhecer Deus. Diga-lhe: 'Se você puder cumprir a promessa, fico com você; do contrário, vou procurar outro mestre'".

Satyakam foi até o homem e lhe disse exatamente isso. O mestre estava sentado debaixo de uma árvore com alguns de seus discípulos. Depois de ouvir a solicitação, ele disse: "Isso é possível, mas você está me pedindo algo muito difícil. Há tantos discípulos aqui  e todos querem mais conhecimento. Eles querem saber sobre tudo. Mas se você insiste que não está interessado em informações, que está pronto para fazer qualquer coisa, que sua devoção à verdade é total, então encontrarei um caminho para você."

Satyakam disse: "Estou pronto para sacrificar minha vida, mas não posso voltar sem conhecer a verdade. Não posso voltar para meu professor nem posso voltar para minha mãe, que me deu o nome de Satyakam. E meu velho professor me aceitou sem se importar se eu era ou não um brâmane, simplesmente baseado no simples fato de que eu era uma pessoa honesta. Então, diga-me o que tem de ser feito."

O mestre disse: "Pegue todas as vacas que vir aqui e penetre bem fundo na floresta. Vá o mais longe possível, , para que não possa entrar em contato com nenhum ser humano. O propósito disso é que você esqueça a linguagem as palavras. Viva com as vacas, cuide das vacas, toque sua flauta, dance - mas esqueça as palavras. E, quando tiver mil vacas, volte aqui."

Os outros discípulos não conseguiam acreditar no que estava acontecendo - porque ali havia apenas uma ou duas dúzias de vacas. Quanto tempo demoraria para elas se tornarem mil?

Mas Satyakam pegou as vacas, entrou o mais fundo possível na floresta, além de qualquer contato humano, de qualquer contexto humano. Durante alguns dias foi difícil, mas pouco a pouco, lentamente... as vacas eram suas únicas companhias, e elas eram criaturas muito silenciosas. Ele tocava flauta, dançava sozinho na floresta, descansava sob as árvores.

Durante alguns anos ele continuou contando as vacas. Então pouco a pouco desistiu de fazê-lo, pois lhe parecia impossível que elas se tornassem mil. Além disso, ele havia esquecido como contar; a linguagem estava desaparecendo. As palavras desapareceram; a contagem não podia ser feita.

E a história é tão imensamente bela...

As vacas ficaram preocupadas quando se tornaram mil - porque elas queriam voltar para casa e este homem havia esquecido como contar! Finalmente, elas decidiram: "Nós temos de falar; do contrário esta floresta solitária vai se tornar nosso túmulo". Então, um dia, as vacas se aproximaram dele e lhe disseram: "Escute, Satyakam, agora já somos mil e está na hora de voltarmos para casa".

E ele lhes disse: "Sou muito grato a vocês. Se não tivessem me contado... Eu havia até me esquecido de casa ou de voltar para casa. Cada momento foi tão incrivelmente belo, com tantas bênçãos. No silêncio, as flores não paravam de florescer. Eu me esqueci de tudo. Não tinha ideia de por que vim para cá, de quem eu sou. Tudo se tornou um fim em si - tocar a flauta era o bastante, descansar sob as árvores era o suficiente, ver as belas vacas sentadas em silêncio à minha volta era tão belo. Mas, se vocês insistem, vamos voltar."

Os discípulos do grande mestre viram Satyakam chegando com mil vacas. Eles relataram ao mestre: "Nunca acreditamos que ele voltaria. Ele está chegando, e nós contamos exatamente mil vacas!"

E quando ele chegou ficou ali de pé... bem no meio da multidão de vacas.

O mestre disse aos outros discípulos: "Vocês contaram errado. Há mil e uma vacas; vocês se esqueceram de contar Satyakam! Ele se moveu para além do seu mundo; penetrou no inocente, no silente, no misterioso. Não está dizendo nada, está apenas ali junto com as vacas".

O mestre dissse: "Satyakam, agora saia do grupo das vacas. Agora você tem de ir para seu outro mestre que o mandou aqui. Ele é um homem velho e deve estar esperando. Sua mãe deve estar esperando".

E quando Satyakam foi até Uddalak, seu primeiro professor... Na última vez que o havia visto, ele não lhe havia permitido tocar seus pés, pois havia perdido sua inocência; não era mais um brâmane, havia caído, havia se tornado apenas um papagaio ilustrado. Quando Uddalak o viu chegando novamente, saiu correndo pela porta dos fundos - porque agora que Satyakam poderia ter permissão de tocar seus pés, era Uddalak quem teria de tocar os pés de Satyakam! Isso porque Uddalak continuava sendo um erudito, e Satyakam não estava vindo como um erudito, mas como alguém que havia despertado.

Uddalak fugiu da casa: "Não posso encará-lo. Estou envergonhado de mim mesmo". Mas antes pediu à sua esposa: "Diga-lhe que Uddalak está morto e que agora ele pode ir até sua mãe. Diga-lhe que eu morri me lembrando dele".

Estas eram pessoas feitas de uma determinação diferente. 

Satyakam voltou para casa. Sua mãe estava muito velha, mas continuava esperando por ele. E disse: "Satyakam, você provou que a verdade sai sempre vitoriosa. E provou que ninguém nasce brâmane: um brâmane é uma qualidade a ser adquirida. Todos nascem iguais. A pessoa tem de se provar, purificando-se, cristalizando-se, tornando-se centrado e iluminado - então ela se torna um brâmane. O simples fato de nascer em uma família brâmane não faz de ninguém um brâmane".

Se você meditar sobre a história, verá que a verdadeira essência da meditação é ficar em tal silêncio que não haja, em você, movimento dos pensamentos - as palavras não chegam entre você e a realidade, toda a rede de palavras desaparece e você é deixado só.

Essa solitude, essa pureza, esse céu do seu ser, sem nuvens, é a meditação. E a meditação é a chave de ouro para todos os mistérios da vida.

Osho. Inocência, conhecimento e encantamento.