quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Os dois grandes momentos

Há dois momentos na vida que são tudo: o momento presente, no qual somos livres para escolher o queremos ser, e o momento da morte, no qual não temos mais nenhuma escolha e no qual a decisão cabe a Deus.

Ora, se o momento presente é bom, a morte será boa; se estamos agora com Deus - neste presente que se renova sem cessar mas que continua sempre este único momento atual -, Deus estará conosco no momento de nossa morte.

A lembrança de Deus é uma morte na vida; ela será uma vida na morte. De maneira análoga: se entramos em Deus, Deus entrará em nós. Se habitamos esse centro que é seu Nome, Deus habitará esse centro que é nosso coração. Em toda a extensão do mundo, não há nada além dessa reciprocidade; pois o centro é em todo lugar, como o presente é sempre.

Entre o momento presente, em que nós nos lembramos de deus, e a morte, em que Deus se lembrará de nós - e essa reciprocidade já está em cada Invocação -, há o resto da vida, a duração que se estende do momento presente até o último momento; mas a duração não é senão uma sucessão de momentos presentes, pois vivemos sempre 'agora'; é, portanto, concreta e operativamente falando, sempre o mesmo instante abençoado em que somos livres para lembrar de Deus e encontrar nossa felicidade nessa Lembrança.

Nós não somos livres para escapar à morte, mas somos livres para escolher Deus, neste momento presente que resume todo momento possível. É verdade que só Deus é absolutamente livre; mas nossa liberdade é, não obstante, real em seu nível - sem o que a palavra não existiria -, dado que ela manifesta a de Deus e por consequência participa dela Em Deus, somos tão livres quanto podemos sê-lo, e na medida em que Deus nos reintegra em sua infinita Liberdade.

Frithjof Schuon, Transfiguração do homem.

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Dimensões da Oração

O homem deve encontrar Deus com tudo o que ele é, pois Deus é o Ser de tudo; é esse o sentido da injunção bíblica de amar a Deus 'com todas as nossas forças'.

Ora, uma das dimensões que caracterizam o homem de facto é que ele vive para o exterior e, mais ainda, tende aos prazeres; é o que chamamos de exterioridade e concupiscência. Ele deve renunciar a elas em face de Deus, pois, em primeiro lugar, Deus está presente em nós mesmos e, em segundo, o homem deve poder encontrar prazer em si mesmo e independentemente dos fenômenos sensoriais.

Mas tudo o que nos aproxima de Deus tem por isso mesmo sua beatitude; elevar-se, orando, acima das imagens e dos ruídos da alma é uma libertação pelo Vazio divino e pela Infinitude; é a estação da serenidade.

É verdade que os fenômenos exteriores, por sua nobreza e seu simbolismo - ou sua participação nos Arquétipos celestes - podem ter uma virtude interiorizante, e toda coisa pode ser boa a seu tempo; isso não impede que se deva realizar o desapego, sem o que o homem não tem direito à exterioridade legítima, e sem o que ele cairia numa exterioridade sedutora e numa concupiscência mortal para a alma. Assim como o Criador, por sua transcendência, é independente da criação, também o homem deve ser independente do mundo em vista de Deus. É esse apanágio do homem que é o livre-arbítrio; só o homem é capaz de resistir a seus instintos e desejos. Vacare Deo.

***

Outro apanágio do homem é o pensamento racional e a palavra; esta dimensão deve, por consequência, atualizar-se quando deste encontro com Deus que é a oração. O homem não se salva apenas pela abstenção do mal, ele se salva também, e a fortiori, pelo cumprimento do Bem; ora, a melhor das obras é aquela que tem Deus por objeto e o nosso coração por agente, ou seja, a "lembrança de Deus".

A essência da oração é a fé, portanto a certeza; o homem a manifesta precisamente pelo discurso, ou pelo apelo, dirigido ao Sumo Bem. A oração, ou a invocação, é igual à certeza de Deus e de nossa vocação espiritual.

A ação vale pela intenção; é evidente que não deve haver na oração nenhuma intenção tingida por qualquer ambição; ela deve ser pura de toda vaidade mundana, sob pena de provocar a Cólera do Céu.

A oração íntegra é proveitosa não só para aquele que a realiza, ela irradia-se também à sua volta, e sob este aspecto ela é um ato de caridade.

***

Todo homem está em busca da felicidade; eis outra dimensão da natureza humana. Ora, não há felicidade perfeita fora de Deus; toda felicidade terrestre tem necessidade da bênção do Céu. A oração nos coloca em presença de Deus, que é pura Beatitude; se temos consciência disso, encontraremos nela a Paz. Feliz o homem que tem o senso do Sagrado e que abre assim seu coração para este mistério.

***

Outra dimensão da oração resulta do fato de que, por um lado, o homem é mortal e, por outro lado, tem uma alma imortal; ele deve passar pela morte e, sobretudo, deve preocupar-se com a Eternidade, que está nas mãos de Deus.

Neste contexto, a oração será ao mesmo tempo um apelo à Misericórdia e um ato de fé e de confiança.

***

O apanágio fundamental do homem é uma inteligência capaz de conhecimento metafísico; por consequência, esta capacidade determina necessariamente uma dimensão da oração, que coincide então com a meditação; o tema desta é, em primeiro lugar, a realidade absoluta do Princípio Supremo e, depois, a não-realidade - ou a realidade relativa - do mundo, que o manifesta.

Contudo, o homem não deve utilizar intenções que superam sua natureza; se não é um metafísico, ele não deve sentir-se obrigado a sê-lo. Deus ama as crianças como Ele ama os sábios; e Ele ama a sinceridade da criança que sabe permanecer criança.

Em outras palavras, há, na oração, dimensões que se impõem a todo homem, e outras que ele pode, por assim dizer, saudar de longe; pois o que importa nesta confrontação não é que o homem seja grande ou pequeno, é que ele se coloque sinceramente em face de Deus. Por um lado, o homem é sempre pequeno em face de seu Criador; por outro lado, há sempre grandeza no homem quando ele se dirige a Deus; e, em última análise, toda qualidade e todo mérito pertencem ao Sumo Bem.

***

Há uma dimensão da oração meditativa, dissemos, cujo tema é a realidade absoluta do Princípio; e depois, correlativamente, a não realidade -ou a menor realidade - do mundo, que o manifesta.

Mas não basta saber que "Deus é a realidade, o mundo é a aparência"; é preciso saber também que "a alma não é senão Deus". Esta segunda verdade nos lembra que nós podemos, se nossa natureza o permite, tender para o Princípio Supremo não somente em modo intelectual, mas também em modo existencial; o que resulta do fato de que nós possuímos, não somente a inteligência capaz de conhecimento objetivo, mas também a consciência do eu, que é capaz, em princípio, de união subjetiva. Por um lado, o ego está separado da Divindade imanente pelo fato de que ele é manifestação, não Princípio; por outro lado, ele não é senão o Princípio enquanto este se manifesta; assim como o reflexo do Sol num espelho não é o Sol, mas não obstante "não é senão ele" enquanto ele - o reflexo - é a luz solar e nada mais.

Consciente disso, o homem não cessa de se postar diante de Deus, que é ao mesmo tempo transcendente e imanente; e é Ele, e não nós, que decide quanto à envergadura de nossa consciência contemplativa e ao mistério de nosso destino espiritual. Sabemos que conhecer Deus unitivamente significa que Deus mesmo se conhece em nós; mas não podemos saber em que medida Ele quer realizar em nós essa divina Consciência de Si; e não tem importância que o saibamos ou não. Nós somos o que somos, e tudo está nas mãos da Providência.

Frithjof Schuon, Transfiguração do Homem

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Virtude e Via

A primeira das virtudes é a veracidade, pois sem a verdade nós nada podemos fazer. A segunda virtude é a sinceridade, que consiste em tirar as consequências do que sabemos ser verdadeiro, e que implica todas as outras virtudes; pois não basta reconhecer a verdade objetivamente, no pensamento, é preciso também assumi-la subjetivamente, nos atos, quer sejam exteriores ou interiores. A verdade exclui tanto o erro e a mentira quanto a negligência e a hipocrisia.

A sinceridade implica de imediato duas atitudes concretas: a abstenção do que é contrário à verdade e a realização do que lhe é conforme; dito de outro modo, é preciso se abster do que nos afasta do Sumo Bem - o qual coincide com o Real - e realizar o que dele nos aproxima. É assim que às virtudes de veracidade e de sinceridade se acrescentam as de temperança e de fervor, ou de pureza e de vigilância, e também, e mesmo mais fundamentalmente, as de humildade e de caridade.

Sem virtude, não há via, seja qual for o valor de nossos meios espirituais; a virtude é diretamente a sinceridade e indiretamente a veracidade. A virtude não é um mérito em si, ela é uma dádiva; mas ela é, não obstante, um mérito na medida em que nos esforçamos em direção a ela.

Eu e os outros: as qualidades morais que correspondem respectivamente a essas duas dimensões de nossa existência são o autoapagamento e a generosidade; ou, dito de outro modo, a humildade e a caridade, não enquanto atitudes a priori sentimentais, mas enquanto adaptações morais e espirituais à natureza das coisas.

O fundamento quintessencial da virtude do autoapagamento ou da humildade é que o homem não é Deus, ou que o "eu" humano não é o "Si" divino; e o fundamento da virtude de generosidade, de compaixão ou de caridade é que nosso próximo também é "feito à imagem de Deus", ou que o Si divino é imanente a todo sujeito humano. É essa deiformidade que explica igualmente a qualidade de dignidade, que resulta, por acréscimo, de nossa capacidade - também ela deiforme - de participar da Majestade divina pela consciência que temos dela.

Autoapagamento e generosidade: por um lado, é preciso se apagar com dignidade; por outro lado, é preciso ser generoso com medida, pois os interesses do outro não abolem nossos próprios interesses, e aliás nem todos os homens têm direito sob os mesmos aspectos, a não ser quando se considera, de forma bem geral, sua condição humana. De resto, a caridade não oferece necessariamente o que é agradável de imediato, sem o que não haveria remédio amargo; punir justamente uma criança é mais caridoso que estragá-la. Pensar de outro modo equivaleria, aliás, a abolir toda justiça e toda saúde moral e social.

A questão do equilíbrio entre o apagamento e a dignidade pede o seguinte esclarecimento: ao reconhecer que a criatura é um nada diante de Deus, não devemos perder de vista que Deus quis a existência da criatura e que, sob este aspecto, ela pode ter certa grandeza no mundo que é o seu; esta grandeza, ela não a tem apenas em sua ambiência cósmica, ela também a tem, e a priori, no próprio Intelecto divino, pois ao criar determinado ser Deus queria criar determinada grandeza. O mesmo se aplica à liberdade, para só acrescentar este exemplo particularmente controvertido: ao argumento de que só Deus é livre e que todo o resto é predestinado, respondemos que, não obstante isso, ao criar seres livres, Deus queria manifestar a liberdade e não outra coisa, e que, por consequência, os seres são realmente livres sob o aspecto dessa intenção divina. O modo ou o grau de manifestação cósmica implica limitações - o próprio fato da manifestação já as implica -, mas o conteúdo dessa projeção não deixa de ser idêntico ao que constitui sua razão de ser.

Para a piedosa sentimentalidade, a humildade significa que o homem não deve estar consciente de seu valor, como se a inteligência não fosse capaz de objetividade em relação a esta ordem fenomenal que é a alma humana; é justamente esta objetividade que implica que o homem plenamente inteligente tenha consciência também da relatividade de seus dons, qualidades e méritos.

Evidentemente, a quintessência da humildade, insistimos, é a consciência de nosso nada diante do Absoluto; na mesma ordem de ideias, a quintessência da caridade é nosso amor ao Sumo Bem, que dá à nossa compaixão social seu sentido mais profundo. Com efeito, não amar Deus é negá-lo, e negá-lo é ipso facto negar a imortalidade da alma e por consequência o valor da vida, o que retira de nossa benevolência, se não todo o seu sentido, ao menos a maior parte do seu significado; pois a caridade para com o homem estritamente terrestre - o animal humano, se se quiser - deve-se acompanhar da caridade para com o homem virtualmente celeste, tanto mais que a caridade puramente "horizontal" pode se combinar com o assassínio de uma alma, enquanto que um sofrimento com o qual ninguém se compadece pode ser para a alma imortal um bem. Diga-se isto, não, por certo, para desencorajar intenções de caridade, mas a fim de lembrar que para o homem todo valor deve se referir ao Sumo Bem, sob pena de ser uma faca de dois gumes.

Toda virtude tem seu aspecto de beleza, que a torna imediatamente amável, independentemente do aspecto de utilidade ou de oportunidade. A combinação do autoapagamento e da generosidade, ou da humildade e da caridade, ou da modéstia e da compaixão - esta combinação, na verdade consubstancial, constitui a virtude em si e por isso mesmo a qualificação espiritual sine qua non. Talvez nos objetem que, se é assim, ninguém esetá plenamente qualificado para a espiritualidade; ora, faz parte da virtude a intenção de realizá-la, de modo que a virtude essencial é ao mesmo tempo uma condição e um resultado. Deus não nos pede de imediato a perfeição, mas ele nos pede a intenção da perfeição, ,a qual implica, se é sincera, a ausência de imperfeições graves; é por demais evidente que o orgulhos não pode aspirar sinceramente à humildade. Deus nos pede o que ele nos deu, a saber, as qualidades que trazemos no fundo de nós mesmos, em nossa substância deiforme; o homem deve 'tornar-se o que ele é'; todo ser é fundamentalmente o Ser em si.

Frithjof Schuon, Raízes da condição humana

sábado, 2 de janeiro de 2021

A virtude da interioridade

"O vício da exterioridade não é o fato natural de viver no exterior, é a falta de harmonia entre as duas dimensões: entre nossa tendência para as coisas que nos rodeiam e nossa tendência para o 'reino de Deus que está dentro de vós'. O que se impõe é realizar um enraizamento espiritual que tira da exterioridade sua tirania ao mesmo tempo dispersante e compressora e que, ao contrário, nos permite 'ver Deus em toda parte', ou seja, perceber nas coisas sensíveis símbolos, arquétipos e essências; pois as belezas percebidas por uma alma interiorizada tornam-se fatores de interiorização. O mesmo vale para a matéria: o que se impõe é, não negá-la - se isso fosse possível -, mas subtrair-se a seu império sedutor e escravizante; distinguir nela o que é arquetípico e quase celeste do que é acidental e por demais terrestre; portanto, tratá-la com nobreza e sobriedade.

Em outros termos, a exterioridade é um direito, e a interioridade, um dever: nós temos direito à exterioridade porque pertencemos a este mundo espacial, temporal e material, e devemos realizar a interioridade porque nossa natureza espiritual  não é deste mundo, nem nosso destino, por consequência. Deus é generoso: quando nós nos retiramos para o interior, Este, por compensação, se manifestará para nós no exterior; a nobreza de alma é ter o senso das intenções divinas, portanto dos arquétipos e das essências, os quais se revelam habitualmente à alma nobre e contemplativa. Inversamente, quando nos retiramos para o coração, descobrimos nele todas as belezas percebidas no exterior; não enquanto formas, mas em suas possibilidades quintessenciais. Voltando-se para Deus, o homem não pode nunca perder nada.

Portanto, quando o homem se interioriza, Deus se exterioriza, por assim dizer, ao mesmo tempo em que o enriquece no interior; é o mistério da transparência metafísica dos fenômenos e de sua imanência em nós. Em exoterismo, a beleza não é mais que uma 'consolação sensível', e ela chega mesmo a ser considerada como uma faca de dois gumes, um convite ao pecado e uma concessão não digna de um asceta perfeito; o que implica que o ascetismo - a renúncia ao que a Terra pode nos oferecer de agradável - seria a única via que leva a Deus. Na realidade, e pela força das coisas, nada do que a natureza nos oferece é em si mesmo um obstáculo espiritual: muito ao contrário, o fato de que a natureza nos outorgue tal ou qual 'consolação' - o próprio fato de que é a natureza que no-la outorga e que nós não inventamos nada - , esse fato prova que o dom 'consolador' possui uma virtualidade sacramental, quer sejamos capazes de apreendê-la, quer não. A primeira condição desta capacidade é a elevação do caráter, insistimos, portanto, também, o senso do sagrado; pois só a beleza da alma permite assimilar espiritualmente a beleza das coisas.

Resulta de tudo isto que a beleza percebida no exterior - a 'dama' do cavaleiro, por exemplo, ou a obra de arte sacra - deve ser descoberta ou realizada no interior, pois nós amamos o que somos e somos o que amamos. A beleza percebida é não somente a mensageira de um arquétipo celeste e divino, ela é também, e por isso mesmo, a projeção exterior de uma qualidade universal imanente em nós, e evidentemente mais real que nosso ego empírico e imperfeito, que, tateando, procura sua identidade".

Frithjof Schuon, Raízes da condição humana.