sábado, 2 de janeiro de 2021

A virtude da interioridade

"O vício da exterioridade não é o fato natural de viver no exterior, é a falta de harmonia entre as duas dimensões: entre nossa tendência para as coisas que nos rodeiam e nossa tendência para o 'reino de Deus que está dentro de vós'. O que se impõe é realizar um enraizamento espiritual que tira da exterioridade sua tirania ao mesmo tempo dispersante e compressora e que, ao contrário, nos permite 'ver Deus em toda parte', ou seja, perceber nas coisas sensíveis símbolos, arquétipos e essências; pois as belezas percebidas por uma alma interiorizada tornam-se fatores de interiorização. O mesmo vale para a matéria: o que se impõe é, não negá-la - se isso fosse possível -, mas subtrair-se a seu império sedutor e escravizante; distinguir nela o que é arquetípico e quase celeste do que é acidental e por demais terrestre; portanto, tratá-la com nobreza e sobriedade.

Em outros termos, a exterioridade é um direito, e a interioridade, um dever: nós temos direito à exterioridade porque pertencemos a este mundo espacial, temporal e material, e devemos realizar a interioridade porque nossa natureza espiritual  não é deste mundo, nem nosso destino, por consequência. Deus é generoso: quando nós nos retiramos para o interior, Este, por compensação, se manifestará para nós no exterior; a nobreza de alma é ter o senso das intenções divinas, portanto dos arquétipos e das essências, os quais se revelam habitualmente à alma nobre e contemplativa. Inversamente, quando nos retiramos para o coração, descobrimos nele todas as belezas percebidas no exterior; não enquanto formas, mas em suas possibilidades quintessenciais. Voltando-se para Deus, o homem não pode nunca perder nada.

Portanto, quando o homem se interioriza, Deus se exterioriza, por assim dizer, ao mesmo tempo em que o enriquece no interior; é o mistério da transparência metafísica dos fenômenos e de sua imanência em nós. Em exoterismo, a beleza não é mais que uma 'consolação sensível', e ela chega mesmo a ser considerada como uma faca de dois gumes, um convite ao pecado e uma concessão não digna de um asceta perfeito; o que implica que o ascetismo - a renúncia ao que a Terra pode nos oferecer de agradável - seria a única via que leva a Deus. Na realidade, e pela força das coisas, nada do que a natureza nos oferece é em si mesmo um obstáculo espiritual: muito ao contrário, o fato de que a natureza nos outorgue tal ou qual 'consolação' - o próprio fato de que é a natureza que no-la outorga e que nós não inventamos nada - , esse fato prova que o dom 'consolador' possui uma virtualidade sacramental, quer sejamos capazes de apreendê-la, quer não. A primeira condição desta capacidade é a elevação do caráter, insistimos, portanto, também, o senso do sagrado; pois só a beleza da alma permite assimilar espiritualmente a beleza das coisas.

Resulta de tudo isto que a beleza percebida no exterior - a 'dama' do cavaleiro, por exemplo, ou a obra de arte sacra - deve ser descoberta ou realizada no interior, pois nós amamos o que somos e somos o que amamos. A beleza percebida é não somente a mensageira de um arquétipo celeste e divino, ela é também, e por isso mesmo, a projeção exterior de uma qualidade universal imanente em nós, e evidentemente mais real que nosso ego empírico e imperfeito, que, tateando, procura sua identidade".

Frithjof Schuon, Raízes da condição humana.

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