terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

É preciso...


É preciso sutileza para perceber para onde a luz aponta.
É preciso coragem para dar os passos necessários.
É preciso desapego para deixar o tétrico conforto da sombra.
É preciso estar esvaziado para expôr-se à total novidade da bondade.
É preciso delicadeza e pureza para fazer jus à ternura somente vislumbrada.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Mika Nakashima - Sakurairo Maukoro

Essa é uma das minhas cantoras japonesas favoritas. ^^

Comece já o caminho da conversão


"Qualquer que seja o peso e o número de cadeias que te acorrentam à terra, nunca é tarde demais. Não é sem motivo que está escrito que Abraão tinha setenta e cinco anos quando partiu; e os operários da undécima hora receberam o mesmo salário que os que trabalharam desde a manhã. E também, nunca é excessivamente cedo. Nunca é cedo demais para apagar um incêndio na floresta. Gostarias de ver tua alma devastada e queimada? No batismo, recebeste a ordem de te lançares num combate invisível contra os inimigos da tua alma. Põe mãos à obra. Há bastante tempo, usas de subtefúrgios. Mergulhado na negligência e na preguiça, desperdiçastes um tempo precioso.

Só te resta recomeçar do princípio, porque lamentavelmente deixastes que se empanasse a pureza que recebestes no batismo. Começa, pois, a trabalhar desde já, sem demora. Não adies a tua decisão para hoje à noite, para amanhã, para mais tarde, "quando eu tiver terminado o que preciso fazer agora". Um atraso pode ser fatal. Não; é agora, no mesmo instante de tomar a decisão, que deves mostrar pelos teus atos, que te despedistes do teu velho "eu" e que acabas de começar uma vida nova, à procura de um novo objetivo, seguindo novos caminhos. Levanta-te, pois, corajosamente, e diz: "Senhor, concedei-me que comece agora. Ajudai-me!" Porque, acima de tudo, tens necessidade da ajuda de Deus. Persevera em tua decisão, e não olhes para trás. Que o exemplo da mulher de Ló te sirva de lição: ela se transformou em coluna de sal, por ter olhado para trás (cf Gn 19:26). Abandonaste o homem velho: não retomes o que é desprezível. Como Abraão ouviste a voz do Senhor que te disse: "Deixa teu país, tua parentela e a casa de teu pai, para o país que te mostrarei" (Gn 12:1). De agora em diante, é nesse país que se deve concentrar toda a tua atenção."

Tito Colliander, Caminho dos Ascetas.

Todos temos de sofrer


Estes dias, participei de um retiro e, nele, uma menina me perguntava: "por que a vida não é fácil?"

Imediatamente, eu pensei: "porque Deus nos ama".

Todos nós somos doentes. Um doente, se quiser ser curado, tem de ser incomodado.

Nesta vida, estamos para aprender a amar a Deus e, n'Ele, todas as coisas. Porém, há algo em nós que é profundamente aversivo ao amor: o amor de nós mesmos, também chamado egoísmo ou soberba.

Somente pela negação de nós mesmos conseguimos vencer o egoísmo. E é por isso que, nesta vida, o sofrimento é fundamental. Todos temos de fazer a experiência da dor. A partir dela, se a vivermos de modo correto, o amor poderá respirar. O sofrimento é uma experiência que nos força à transcendência e na transcendência está a nossa salvação.


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"Convém acostumar-vos a considerar o Evangelho sob o seu verdadeiro ponto de vista e saber que a nossa religião é toda de sofrimento, de mortificação, de sacrifício, de amor consumidor, de zelo que se esquece a si mesmo, e de união que se crucifica. Numa palavra, é a religião da Cruz e do Crucificado. Compenetrai-vos bem dessa verdade, que tanto repugna à natureza, de que a abnegação lhe constitui a essência, e que a abnegação deve ser diária, não somente para que possamos ser perfeitos, mas ainda para que possamos ser discípulos de nosso amado Senhor."

Pe. Faber

"O Mestre apresentara um caminho difícil e severo, escavado na rocha viva e que os pés descalços haveriam de purpurear de sangue e que todos os seus seguidores haveriam de umedecer com o suor e as lágrimas. Havia proclamado felizes os rostos banhados pelo pranto da purificação, felizes os pobres em espírito, felizes os que sofriam tribulações, os caluniados, os perseguidos, aqueles que respondiam com serenidade à provocação, aqueles que nunca se vingavam e perdoavam sempre, aqueles que, negando-se a si mesmos, abraçavam a cruz a cada dia e o seguiam, aqueles que, como o grão de trigo, desapareciam nas vísceras da abnegação, para reaparecer “diferentes”, isto é, ressuscitados.

Pedro Paulo di Berardino, OCD. Itinerário Espiritual de S. João da Cruz."



sábado, 25 de fevereiro de 2012

Sigo Jesus, odeio Religião


Hoje em dia tornou-se comum aquela atitude de admirar Jesus, dizer que o que Ele fala é verdadeiro, mas, ao mesmo tempo, estar desvinculado de toda religião. Essa é uma idéia bastante engraçada, porque é totalmente non sense. Aliás, o non sense é o meu tipo de comédia favorito. Essa conclusão é completamente quebrada, arbitrária e somente revela um subjetivismo estranho e irrefletido em quem lhe adere.

Vejamos...

Primeiramente, se Jesus é, como dizem, um cara inteligente, sábio, etc..., então, aquilo que Ele falou deve merecer crédito; se é assim, então também devemos acreditar no que Ele afirmou de Si mesmo. E isto é fácil de admitir. Qualquer um que afirme ser Deus ou é Deus de fato, ou é um mané. Se é um mané, não é sábio nem inteligente. C.S. Lewis afirma que ao escutarmos Jesus dizer ser a verdade, ou acreditamos que Ele é a verdade por trás de todo ser, desde os mais simples aos mais complexos, ou então teremos de supô-lo um lunático.

Alguns, porém, chegam à brilhante idéia de pôr em cheque aquilo que sobre Ele está escrito nos Evangelhos. Ora, mas que genial, não? Perguntemos, então, com que base esses seres excêntricos chegaram à conclusão de que Jesus é tão inteligente e sábio... Que espécie de contato tiveram com Ele?

Bem dizia o Chesterton que uma das estranhices do nosso tempo é que certas pessoas começam a pensar do terceiro ou quarto argumento, e não observam os pressupostos do que defendem. Gustavo Corção, por sua vez, admirava os dias idos afirmando que, nos tempos de então, os tolos se calavam e eram geniais por isso.

Pois bem. Se Jesus merece algum crédito, temos de aceitar que Ele é Deus, pois Ele o diz claramente. Se é Deus, nem mentiu nem se enganou. Acontece que este Deus humanado inventou de ser judeu, pelo que já vemos que religião é coisa séria. Depois, passou-lhe pela cabeça a idéia de fundar uma Igreja: "Pedro, tu és pedra e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja." Depois, achou por bem fazer uma baita de uma promessa: "As portas do inferno não prevalecerão contra a minha Igreja" e ainda disse: "Eu estarei convosco até o fim dos tempos". Retomemos: se Ele é Deus, nem mentiu nem se enganou.

Ninguém precisa ser um gênio do silogismo para chegar a uma dedução disto aí; e qual é? Que a Igreja fundada por Ele é perfeita, tem o auxílio d'Ele e se estenderá até o fim do mundo. É fácil ainda provar que essa Igreja, presente em todos os recantos do orbe terrestre, é a Igreja Católica Apostólica Romana.

Portanto, se Jesus merece algum crédito, Ele merece a nossa adoração, pois é Deus. 
Se Jesus merece ser crido, então a Igreja Católica é a Sua Igreja, o Seu Corpo Místico.

Se, porém, alguém adere à modinha de apreciar a pessoa de Jesus ao mesmo tempo em que condena e critica toda e qualquer religião, só nos parece poder admitir que faltou a esta pessoa pensar um pouco mais a respeito.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Saltar acima de nós mesmos


"De pé, portanto, alma nobre! Calça teus sapatos de saltar, que são o intelecto e o amor, e salta por cima do culto dos teus poderes mentais, salta por cima do teu entendimento e precipita-te no coração de Deus, no que ele tem de escondido, onde estarás escondida de todas as criaturas."

Eckhart

Quando o anjo vira demônio


Lúcifer, quando estava em sua nobreza natural, como Deus o havia criado, era uma criatura pura e nobre. Mas quando se consagrou a si mesmo, quando se apoderou de si mesmo e da sua nobreza natural como de uma propriedade sua, decaiu e passou a ser, em lugar de anjo, demônio. O mesmo acontece com o homem. Se permanece em si mesmo e apodera-se de sua nobreza natural como de uma propriedade, decai e passa a ser, em vez de anjo, demônio.

A Imitação da Vida Pobre do Cristo.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

A simplicidade e a consciência do eu


No mundo, quando as pessoas chamam alguém de simples, subentendem geralmente uma pessoa tola, ignorante e crédula. Mas a verdadeira simplicidade, longe de ser tola, é quase sublime. Todos os homens bons gostam dela e admiram-na, têm consciência de pecar contra ela, observam-na nos outros e conhecem o que ela supõe; e, no entanto, não saberiam defini-la com precisão. 

Eu diria que a simplicidade é uma retidão da alma que impede a consciência do eu. Não é o mesmo que a sinceridade, virtude muito mais humilde. Numerosas pessoas são sinceras, embora não sejam simples. Não dizem nada que não acreditem verdadeiro, e não visam a parecer diferentes do que são. Mas estão sempre pensando em si mesmas, pesando cada palavra e cada pensamento, e insistindo sobre si mesmas, na preocupação de haverem feito demais ou de menos. Essas pessoas são sinceras mas não são simples. Não se sentem à vontade com os outros, nem os outros se sentem à vontade com elas. Nelas não existe nada fácil, franco, desinibido ou natural. Sentimos que teríamos gostado mais de pessoas menos admiráveis, que não fossem tão rígidas.

Estar absorto no mundo que os rodeia e nunca desviar um pensamento para dentro, como é a condição cega de alguns arrebatados pelo agradável e tangível, eis aí um extremo oposto à simplicidade. E estar absorto pelo eu em todos os assuntos, quer se trate do dever para com Deus, quer se trate do dever para com o homem, eis aí o outro extremo, que torna a pessoa sábia no próprio orgulho - reservada, tímida, inquieta diante da menor coisa que lhe perturbe a tranquilidade interior. Essa falsa sabedoria, em que pese à sua solenidade, é pouco menos vã e tola do que a insensatez daquele que mergulha de ponta-cabeça nos prazeres mundanos. Um está embriagado pelo seu círculo exterior, o outro pelo que cuida estar fazendo interiormente; mas ambos estão num estado de embriaguez, e o último estado é pior do que o primeiro, porque nele a pessoa dá a impressão de ser sábia, embora, na verdade, não o seja, de sorte que não tenta curar-se.

A simplicidade verdadeira consiste num juste milieu igualmente livre da despreocupação e da afetação, em que a alma não esteja submersa debaixo das coisas exteriores de modo a tornar-se incapaz de refletir e abrir mão dos infindáveis requintes a que a consciência do eu conduz. A alma que olha para onde se dirige sem perder tempo em discutir cada passo ou em ficar o tempo todo olhando para trás possui a verdadeira simplicidade. Tal simplicidade, com efeito, é um grande tesouro. Como chegaremos a ela? Por ela, eu daria quanto possuo; ela é a pérola preciosa da Sagrada Escritura.

O primeiro passo da alma, portanto, consiste em lançar de si as coisas exteriores e olhar para dentro a fim de conhecer o seu verdadeiro interesse pessoal; até aí, tudo está certo e é natural; nesse sentido, não é mais que um sábio amor do eu, que procura evitar a embriaguez do mundo.

No passo seguinte, a alma precisa juntar a contemplação de Deus, que ela teme, à contemplação do eu. Trata-se de uma pífia aproximação da verdadeira sabedoria, mas a alma ainda está muto absorta em si mesma; não se contenta de temer a Deus; quer ter a certeza de temê-Lo e tem medo de não O temer, girando um círculo perpétuo de consciência do eu. Toda essa insistência inquieta sobre o eu está muito longe da paz e da liberdade do verdadeiro amor; este ainda está distante; a alma precisa passar por uma temporada de provas e, se fosse subitamente mergulhada num estado de repouso, não saberia servir-se dele.

No terceiro passo, deixando a contemplação tranquila do eu, a alma principia a insistir em Deus e, gradativamente, se esquece de si mesma n'Ele. Ela se repleta d'Ele e deixa de alimentar-se do eu. Nessas condições, a alma não está cega às próprias faltas, nem é indiferente aos próprios erros; tem mais consciência deles do que nunca, e a luz aumentada os mostra de forma mais nítida, mas esse conhecimento do eu provém de Deus e, por conseguinte, não é agitado nem inquieto."

Fénelon

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Aviso: Estarei em Retiro



Caríssimos,

A partir de hoje, estarei em um retiro, pelo que o blog ficará sem postagens pelo menos até eu voltar. Retomo, então, na quarta-feira, se Deus quiser. E como, neste dia, estaremos vivendo o início da Quaresma, gostaria de vos recomendar um livro - que já recomendei outros anos - e que, penso, poderá ser útil à vossa meditação.

Trata-se do Caminho dos Ascetas - Iniciação à Vida Espiritual, do escritor Tito Colliander. É um livro que traz a espiritualidade dos Padres do Deserto. E, embora seja uma obra relativamente curta, ela compensa na profundidade. E uma das suas grandes características é que ela oferece modos bem práticos de aplicação daquilo que o autor diz. Recomendo mesmo. Se se interessarem, façam somente o pequeno esforço de imprimir o livro. Para acessá-lo, cliquem na imagem abaixo.



Deixo-vos, enfim, com uma frase do livro e que deve ser aplicada já agora no Carnaval:

"Se confias em ti mesmo, serás derrubado de imediato, e perderás toda a vontade de continuar a luta."


Abraço. Que Deus nos abençoe e guarde. Que a Virgem Santíssima nos conduza.

Ad Iesum Per Mariam

Fábio

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

O demônio não suporta a obediência


"O demônio pode até usar a capa da humildade, 
mas jamais poderá vestir o manto da obediência". 

Santa Catarina de Sena

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Eficácia do desprendimento de si demonstrada no tiro com arco - uma experiência do zen


E assim, voltamos a começar desde o princípio, como se todo o aprendizado tivesse sido inútil. Continuava impossível para mim permanecer sem intenção dentro, como se fosse possível escapar de um caminho por demais viciado, até que um dia perguntei ao mestre:

"Como o disparo pode ocorrer, se não for eu que o fizer acontecer?"

"Algo dispara", respondeu-me.

"Já ouvi essa resposta outras vezes. Modifico, pois, a pergunta: como posso esperar pelo disparo, esquecido de mim mesmo, se eu não posso estar presente?

"Algo permanece na tensão máxima".

"E o que é esse algo?"

"Quando o senhor souber a resposta, não precisará mais de mim. E se eu lhe der alguma pista, poupando-o da experiência pessoal, serei o pior dos mestres, merecendo ser dispensado. Por isso, não falemos mais! Pratiquemos!"

Passaram-se muitas semanas sem que eu tivesse avançado um passo, mas isso em nada me afetava. O longo aprendizado tinha me tornado indiferente. Aprender a arte, descobrir o que o mestre quis dizer com o seu algo,  encontrar o acesso ao Zen, tudo isso me pareceu de repente tão longínquo, tão indiferente, que já não me preocupava. Em várias ocasiões, propus-me confessá-lo ao mestre, mas diante dele a coragem desaparecia. Estava convencido de que escutaria outra vez a sua resposta tranqüila: "Não me pergunte, pratique!" Então, deixei de fazer perguntas e por pouco, também de praticar, se o mestre não me tivesse mantido seguro nas suas mãos.

Indiferente, eu deixava os dias passarem, cumprindo da melhor maneira possível minhas obrigações profissionais, já não me afastando a constatação de indiferença que eu tinha diante daquilo a que, durante anos, eu dedicara meus mais persistentes esforços.

Certo dia, depois de um tiro executado por mim, o mestre fez uma profunda reverência e deu a aula por terminada. Diante do meu olhar perplexo, exclamou: "Algo acaba de atirar". E, ao compreender o que ele queria dizer, fui tomado por uma incontida explosão de alegria.

"Minhas palavras", advertiu-me o mestre, "não são de elogio, mas uma simples constatação que não deve alterá-lo. A minha reverência não foi dirigida ao senhor. O mérito desse tiro não lhe pertence, pois o senhor permanecia esquecido de si mesmo e de toda intenção, no estado de tensão máxima: o disparo caiu, tal qual uma fruta madura. Agora, continue praticando, como se nada tivesse acontecido.

Transcorreu muito tempo até que eu conseguisse alguns poucos tiros perfeitos, que o mestre saudava, sem dizer uma única palavra, com profunda reverência. Como era possível que se produzissem sem minha intervenção, por si mesmos? Como era possível que minha mão direita, firmemente fechada, se abrisse sem que eu soubesse e ainda não saiba explicar? A verdade é que era dessa forma que as coisas ocorriam, e isso é o que importa.

Com o passar do tempo, eu mesmo conseguia distinguir os tiros frustrados dos tiros bem-sucedidos. A diferença qualitativa era tão grande que, uma vez sentida, não mais passará despercebida.

Para o observador, o tiro bem-sucedido se dá quando o rebote da mão direita se amortece a tempo, sem sacudir o corpo. Por outro lado, depois dos tiros frustrados, a respiração até então retida sai de maneira explosiva, havendo necessidade de inspirar imediatamente. Ao contrário, quando o tiro é feito com êxito, a respiração, que estava presa, sai com suavidade, voltando-se a inspirar pausadamente. O coração continua a bater num ritmo uniforme e tranqüilo e a concentração, por não ter sido perturbada, permite iniciar de imediato o segundo disparo.

O resultado interior dos tiros executados com perfeição causam a sensação de que o dia acaba de nascer. Depois deles, o arqueiro se sente apto a praticar toda espécie de ação perfeita ou a mergulhar no mais puro ócio. É um estado extraordinariamente delicioso. "Mas", adverte o mestre, "quem o experimenta, melhor fará se ignorá-lo. Somente uma firme serenidade é capaz de fazer com que ele volte sempre."

Eugen Herrigel, A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen

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Ps.: Um bom cristão saberá tirar lições valiosíssimas do relato acima. Um mal cristão se fechará numa tola demonização da experiência referida.

Chesterton x Blachford

Chesterton X Um Agnóstico

sábado, 11 de fevereiro de 2012

A impressão que Aslam deixou em Emeth


- Depois ele soprou sobre mim e fez cessar todo o tremor do meu corpo, firmando-me outra vez sobre os meus pés. Após isso, não disse mais muita coisa, a não ser que voltaríamos a nos encontrar e que eu deveria seguir sempre para a frente e sempre para cima. Então voltou-se como uma tempestuosa rajada de ouro e subitamente desapareceu.

- E desde então, ó reis e damas, ando perambulando à procura dele, e minha felicidade é tão imensa que até me enfraquece como uma ferida. E a maravilha das maravilhas é ter ele me chamado de amado - a mim, que não passo de um cão...

Emeth depois do seu encontro com Aslam

As Crônicas de Nárnia, A Última Batalha, Cap. 15.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Umas coisitas sobre o tão alardeado "Não Julgue"



Esse negócio passou a ser tão falado, tão martelado, que quase se tornou uma nova verdade de fé. Quando alguém não quer ser incomodado nos seus erros, ele simplesmente solta um "não julgue". A expressão, tirada do Evangelho, é frequentemente jogada na cara dos cristãos como um modo de desmascarar-lhes a contradição e a hipocrisia: "como pode um seguidor de Jesus viver julgando outra pessoa?" A coisa fica ainda mais eficaz se, à referida apelação, o sujeito une aquela outra: "quem não tiver pecados, que atire a primeira pedra..." Se esta conexão de trechos é feita, consegue-se comumente gerar um efeito romântico e de afetação tal  que, em muitos casos, isto será suficiente para que as coisas voltem à mais pura paz - uma paz meio desajeitada -, sendo que a situação final se inverte: agora, o que pretendia ajudar é quem sai como criminoso.

Mas, meditemos um pouco sobre essa questão do julgamento.

Primeiramente, saibamos que julgar é fazer um juízo, e isto é próprio da inteligência humana. Se eu digo que ser religioso é bom, estou fazendo um julgamento. Se digo que ser ateísta é mau, estou fazendo outro julgamento. Se fôssemos seguir a lógica destes sofredores do "complexo de vitíma", também conhecida como "síndrome do não me toque", ninguém poderia afirmar mais nada. Não poderíamos dizer que nada é bom, nem ruim. Ora, é isto que eles querem fazer crer ser o ensinamento de Jesus?

É óbvio que não. Muito pelo contrário, é bem nosso dever fazer julgamentos sobre o que é certo e o que é errado. Se eu vir uma velhinha sendo espancada na rua, não terei dúvida alguma em julgar aquele ato como um ato ruim. E se o tal espancador me vier com conversinha de "não julgue" ou "quem não tiver pecado...", eu lhe deveria quebrar os dentes.

No mais, se fazer julgamentos fosse errado, coitados dos juízes! Estariam todos condenados!

Contudo, Jesus diz mesmo lá nos Evangelhos: "Não julgueis para não serdes julgados". E agora, José?...

É óbvio que Jesus, sendo Deus, não comete erros; muito menos, cometeria um erro tão primário.

Quando o Cristo proíbe o julgamento, ele está se referido ao julgamento de intenção. E o que é isso? É quando pretendemos dizer a intenção que um sujeito portava enquanto executava uma certa ação.

Se eu disser da ação que é certa ou errada, isto me é permitido e, a depender do caso, será mesmo um dever. Porém, com relação à intenção do sujeito da ação, isto naturalmente me escapa. Verdade que às vezes podem existir indícios mais ou menos fortes que nos fazem supor uma ou outra coisa. Mas convém saber que a certeza absoluta - a menos que a pessoa mesma diga - não é possível de ser constatada. Isto porque a intenção é algo da alma; está no íntimo. Logo, julgar a intenção de uma pessoa é precipitar-se em atribuir-lhe uma maldade intrínseca, quando não o podemos saber.

Um exemplo: um mendigo volta-se para um homem que passeia na rua e pede-lhe um trocado. Este não lho dá. Alguém observa de longe o ocorrido e, a partir do que viu, poderá dizer se a atitude de negar a ajuda foi boa ou má. Ou seja, lhe é permitido, como ser dotado de inteligência e de um senso moral, julgar a ação do outro. Porém, com que intenção aquela pessoa negou a esmola, isto ele não poderá fazer. A intenção nos escapa.

Porém, o mais engraçado está justamente aqui: quando eu digo que outra pessoa está me julgando desse modo, na verdade, eu é que a estou julgando, a menos que ela o revele expressamente. Pois afirmar que outro me julga, quando ele não o demonstrou inequivocamente, é precipitar-me a respeito do seu interior, da sua intenção mesma. Se assim é, os repentistas do "não me julgue" são, eles mesmos, sujeitos da ação que recriminam.

Os cristãos também estão proibidos, pelo próprio Jesus Cristo, de julgarem a intenção. Porém, uma vez que Jesus é a luz que ilumina todo homem e uma vez que nos revelou qual a vontade do Pai, nós podemos saber o que é certo e o que é errado, de modo que não fazer o julgamento objetivo da realidade implica em infidelidade ao dever assumido. Dito de outra forma: os cristãos devem fazer julgamentos sobre a realidade objetiva.

É por isto que um cristão pode ser tolerante com a pessoa que erra, mas absolutamente intolerante com o erro.

Só para terminar: sobre esse papo de "quem não tiver pecado..."

O discurso cristão não tira seu valor da vida dos indivíduos que o pregam - embora estes estejam obrigados sim a levar uma vida coerente -, mas tem seu fundamento no próprio Cristo. Não é porque somos imperfeitos que nos está vedada a defesa e a promoção do ideal da perfeição. E é justamente aí que está a grandeza do cristianismo: ele não se fundamenta em nós. É algo pelo que nós mesmos devemos mudar para alcançar e que não se identifica necessariamente com as nossas inclinações ordinárias.

Enfim... Reflitamos sobre essas coisas e não julguemos os cristãos quando estes dizem, referindo-se a certas situações, que são erros e merecem censura. Se os acusamos logo de hipocrisia, estamos nos precipitando sobre as suas intenções e demonstrando que hipócritas, na verdade, somos nós.

Que Jesus Cristo, o Logos divino, nos conceda compreender.

Ad Iesum Per Mariam

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

A senha do Rei Tirian de Nárnia


Nenhuma das lanças agora erguia-se em saudação; ambas estavam abaixadas e prontas para a ação.

- Qual é a senha? - disse o soldado-chefe.

- Esta é a minha senha - exclamou o rei, sacando a espada. - Dissipem-se as trevas da mentira e brilhe a luz da verdade! Agora, canalha, em guarda, pois sou Tirian de Nárnia.

C.S. Lewis, As Crônicas de Nárnia, A Última Batalha, Cap. 7.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

A Montanha de Aslam


- Aqui estou - disse uma voz profunda atrás deles.

Era o próprio Leão, tão luminoso, real e forte, que tudo o mais começou a parecer pálido, embaçado. Antes que pudesse respirar fundo, Jill se esqueceu do rei morto de Nárnia e se lembrou apenas de como causara a queda de Eustáquio no penhasco, dos sinais esquecidos, das brigas e impertinências acontecidas. Queria dizer "sinto muito" mas não conseguia falar. O Leão, com os olhos, puxou as crianças para perto dele  e tocou-lhes os rostos pálidos com a língua. E falou:

- Não pensem mais nisso. Não me zango o tempo todo. Vocês cumpriram a missão que lhes foi confiada.

- Por favor, Aslam - disse Jill -, podemos ir para casa agora?

- Podem. Vim para levá-los.

Aslam abriu a boca e soprou. Dessa vez não tiveram a impressão de voar: em vez disso, era como se estivessem firmes no chão, e o hálito de Aslam soprasse para longe o navio, o rei morto, o castelo, a neve, o céu de inverno. Todas essas coisas flutuavam no ar como anéis de fumaça. Viram, de súbito, que estavam envolvidos por uma brilhante luminosidade de verão, em cima de um gramado, entre árvores grossas, à margem de um riacho límpido. Perceberam que se encontravam de novo na Montanha de Aslam, muito acima e muito além da terra de Nárnia. Estranho é que a marcha fúnebre do rei Caspian prosseguia, sem que se pudesse dizer de onde vinha. Caminhavam à beira do riacho com o Leão à frente: ele estava tão belo e a música era tão angustiante, que Jill não sabia de onde onde subiam as lágrimas.

Aslam parou e as crianças olharam para o riacho. Lá dentro, nos seixos dourados do leito do rio, estava o rei Caspian, morto, com a água deslizando por ele como se fosse um cristal líquido. As longas barbas brancas balouçavam como plantas aquáticas. Todos os três choraram. Até o Leão chorou: enormes lágrimas de leão, e cada lágrima era mais preciosa do que toda a Terra, ainda que esta fosse um imenso diamante. E Jill observou que Eustáquio não parecia um menino chorão, mas um homem ferido de dor adulta. Ali, naquela montanha, as pessoas não pareciam ter uma idade determinada.

- Filho de Adão - disse Aslam -, vá até aquele matagal e traga para mim o espinho que por lá encontrar.

- Eustáqui obedeceu. O espinho tinha três palmos de comprimento e espetava como um punhal.

- Enfie este espinho em minha pata, Filho de Adao - disse Aslam, estendendo uma pata dianteira para Eustáquio.

- Devo mesmo fazer isso? - perguntou o menino.

- Sim - respondeu Aslam.

Eustáquio apertou os dentes e enfiou o espinho na pata do Leão, de onde correu uma grande gota de sangue, mais vermelha do que se possa imaginar. E a gota correu e espalhou-se no riacho sobre o corpo do rei. E este começou a transformar-se: a barba branca ficou cinzenta, depois amarela, depois mais curta e desapareceu; as faces encovadas tomaram cores e formas; as rugas alisaram-se; os olhos abriram-se; olhos e lábios sorriram; de repente, o rei ergueu-se, ficando em pé perto deles. Era um homem muito jovem, talvez um rapaz. (Não se podia dizer com certeza, pois as pessoas não têm uma idade precisa no país de Aslam.) O rei passou os braços em torno do pescoço de Aslam, dando-lhe beijos viris de rei, respondidos com beijos agrestes de leão.

Por fim Caspian voltou-se para os outros, rindo-se com espantada alegria:

- Eustáquio! Eustáquio! Quer dizer que você conseguiu alcançar o fim do mundo! Que aconteceu com a minha espada que você quebrou na Serpente do Mar?

Eustáquio deu uns passos na direção dele, as duas mãos estendidas, recuando logo com uma expressão perturbada.

- Olhe aqui - gaguejou o menino. - Está tudo muito bem, mas... é você mesmo? Quero dizer...

- Não seja tolo - falou Caspian.

- Mas - prosseguiu Eustáquio, olhando para Aslam - ele afinal não... morreu?

- Morreu - respondeu o Leão tranquilamente, quase como se estivesse satisfeito (foi o que Jill achou). - Ele morreu. Isso acontece muito, como você deve saber. Até eu morri. Há muitos poucos que não morreram.

- Ah - disse Caspian -, estou entendendo: você está pensando que eu sou um fantasma ou outro absurdo qualquer. Mas pense melhor: eu seria um fantasma em Nárnia, pois de Nárnia não sou mais. Mas ninguém é fantasma em sua própria terra. No eu mundo eu seria um fantasma. Será? Já que estão aqui, talvez aquele mundo também não seja mais o de vocês.

Uma grande esperança alvoroçou o coração das crianças. Mas Aslam balançou a cabeça felpuda.

- Não, meus queridos. Quando me encontrarem aqui outra vez, então ficarão. Agora, não. Precisam voltar ao mundo de vocês por algum tempo.

C.S. Lewis, As Crônicas de Nárnia, A Cadeira de Prata, Cap. 16.