domingo, 11 de agosto de 2013

Mistérios Gozosos - Um tratado sobre a Pobreza Interior - 3º Mistério


3º Mistério - O Nascimento de Jesus na gruta de Belém.

Iam Maria e José para o recenseamento em Belém. Já ali por perto, completaram-se os dias da gravidez de Maria e José tentou conseguir-lhe um lugar nas hospedarias. Não havia vaga. Era uma época de grande circulação. José não sabia o que fazer. Sentiu o peso da responsabilidade sobre os seus ombros, pois a essa altura já tinha total consciência da missão que lhe fora confiada. E agora, porém, sequer podia garantir um nascimento digno ao Filho de Deus.

É óbvio que tudo isto ocorria segundo os planos divinos. Mas ninguém podia prever que Jesus tivesse esses gostos excêntricos pelo último lugar. Esperavam que Ele se portasse como o Rei que era, que ostentasse seu poder. Não espantaria tanto se Ele saísse do ventre de Maria por entre rodopios, jatos de luz e trovões. Isto de algum modo se adequaria à grandeza da Sua identidade. Porém, que nascesse assim, sem lugar, sendo rejeitado, filho de nazarenos e numa noite em que ninguém podia lhe prover as mínimas dignidades, isto era um escândalo. E foi assim que Ele quis. Enquanto Maria esperava pacientemente - não sentia dores -, José soube de uma estrebaria por ali. Era a única possibilidade. Foram para lá e procuraram um lugar por entre os animais cuja "casa" eles agora tomavam de empréstimo. "O boi e o burro conhecem o presépio do seu Senhor", escrevia Isaías setecentos anos atrás. Foram os animais que cederam o mínimo aconchego a Jesus, já que os homens o tinham rejeitado. Isto é um símbolo do que será a Sua vida: Ele mesmo dirá que não terá onde reclinar a cabeça e sobre Ele se escreverá que os seus, para os quais havia vindo,  não o tinham recebido.

Maria deu à luz Jesus que nasceu como uma criança qualquer: pobre, frágil, indefesa e inofensiva. Seu grito infante soou no silêncio da noite e juntou-se ao som dos grilos. Era Deus que nascia. S. João da Cruz, numa de suas poesias, relata este evento de um modo extremamente belo: "

E a Mãe se assombrava
da troca que ali se via:
o pranto do homem em Deus,
e no homem a alegria."

Era Deus que chorava para que o homem pudesse sorrir. A pobreza de Deus era completa; plena a Sua doação. Nascera sem lugar, sem festa, depois das primeiras rejeições. Desde agora, anunciava que o Seu caminho era a santa cruz. Escrevia Sto Afonso que por sobre a gruta de Belém já era possível divisar a sombra da cruz. Ei-lo exposto ao frio da noite e, sendo Deus, necessitado dos consolos de Sua Mãe. Sendo Deus, necessitado.. Que escândalo!

Os reis magos vinham do oriente à Sua procura. Depois de logicamente passar pelos palácios, encontraram aquele pobre recinto em que Ele havia nascido. A sabedoria dos reis era verdadeira: reconheceram a Jesus tão logo O viram. Este tipo de saber não se aprende nos livros. De algum modo, a pobreza do Cristo lhes tocou a alma e eles, profundamente comovidos com aquilo tudo - algo absolutamente sem precedentes - curvaram o joelho na terra e prostraram ainda mais profundamente a alma. Ofertaram-No, depois de adorá-Lo, aquilo que traziam: o ouro, que reconhecia a Sua realeza; o incenso, que reconhecia a Sua divindade e encerrava definitivamente os cultos aos outros deuses; e a mirra, erva amarga que lhe prenunciava o tipo de vida que teria e que era expressão da Sua doação. Jesus, portanto, é o Rei-Deus que se esvazia e sofre. Seus seguidores deverão fazer o mesmo e compreender que a disposição à doação e ao sofrimento, isto é, o abraço à Cruz, símbolo do mais total esvaziamento, será o distintivo dos Seus verdadeiros amigos.



Também os pastores, gente de vida humilde, foram pessoalmente saudados pelos anjos. Era o modo que Jesus encontrara para convidá-los. Importante notar: os anjos não apenas falaram; eles cantaram. Já dizia Sto Agostinho: "cantar é próprio de quem ama". E neste episódio, notamos muito facilmente que a canção é extremamente jubilosa. Aqui juntam-se amor e alegria, justamente porque Ele nasceu. Este amor e alegria são precedidos pela Sua pobreza. Eis aí uma santa tríade: Pobreza, Amor e Alegria, sendo a pobreza a garantia e a condição de possibilidade do amor e da alegria. Isto lembra São Francisco de Assis que dizia: "Quando à pobreza se une a alegria, não há cobiça nem avareza." Cobiça e avareza são paixões que fecham o sujeito que as sente; constituem, portanto, o oposto do amor que abre a alma e gera o êxtase, isto é, o sair de si. Seria bom meditar um tanto nesta relação.

Naquela noite de Belém, desconhecida pelos que se ocupavam de suas próprias coisas - com exceção de Herodes, que já perdia o sono -, escondia-se uma alegria profunda, descomunal e de uma pureza absolutamente única, pois a Pobreza do Cristo e o Amor que O tinha motivado a este ato inaudito a tornavam de fato transcendente, isto é, era uma alegria que trazia um sabor da eternidade. Porém, silente e discreta, do jeito d'Ele.

Que por este mistério, Nosso Senhor, pelas mãos da Virgem Maria, nos dê o amor da Pobreza interior, e nos liberte a alma para que possamos fruir da verdadeira alegria e do verdadeiro amor.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Mistérios Gozosos - Um tratado sobre a Pobreza Interior - 2º Mistério


2º Mistério - A Visita de Maria a sua prima Sta Isabel

Maria estava grávida de Deus. Poderia ter ficado absorta na contemplação deste mistério e esquecer-se do mundo. Porém, ao saber que sua prima Isabel, de idade avançada, estava já no sexto mês de gestação, decide viajar até lá e se submete a uma caminhada cansativa de vários dias. Maria não pensa em si mesma. Nela se realiza aquilo que Sta Teresa D'Avila dizia sobre a alma enamorada: "E vive até de si tão descuidada." Ela tinha clara consciência de que a gravidez de Isabel era de origem divina, pois, além de a idade de Isabel não permitir mais que ela gestasse um filho de modo natural, o fato lhe fora comunicado pelo próprio Gabriel. A gravidez de sua prima, portanto, estava relacionada com a sua. Era igualmente manifestação da vontade divina, vontade que Maria amava e a que estava sempre atenta.

E Maria se dispõe e vai. Ela nos dá nisso uma lição. Todos conhecemos casos nos quais, mesmo sabendo da vontade divina, nós nos negamos a fazê-la por exigir de nós um mínimo de esforço. Isto só demonstra o quão poucos estamos esvaziados e o quanto ainda defendemos as nossas bagatelas - nosso bem estar, nossa imagem pessoal, nossa opinião - mesmo quando é Deus Quem nos pede abrir as mãos e soltá-las. 

Maria foi e aqui, pela primeira vez, há um indício sensível do que tinha acontecido no seu íntimo. O seu esvaziamento foi tão santo que o Verbo divino, no seu seio, pôde, a partir da sua voz, comunicar-Se. Maria apenas saudou Isabel. Isto foi suficiente para que esta última ficasse cheia do Espírito Santo. Certa vez, escutei uma palestra em que se falava do significado de ser pessoa. A palavra "pessoa" vem de "persona" que significa originalmente "aquele pelo qual - através do qual - o som soa". Na ocasião, o palestrante tomou um sino e demonstrou que ele só soa devidamente quando vazio. Maria é um sino vazio através do qual soa a voz silenciosa do Verbo divino. Ela é, neste sentido, plenamente pessoa. A tradição também atribuirá o qualificativo de pessoa a sujeitos que possuam a faculdade de autodeterminação, isto é, que sejam senhores de si e responsáveis por seus atos. Pessoa é, portanto, aquele cujo comportamento não se explica de modo puramente causal. Ser pessoa, então, é ser livre, isto é, dispor de sua inteligência e de sua vontade. Maria era pessoa porque através dela soava a voz divina e também porque ela era plenamente livre, sendo o seu Sim a Deus expressão mesma desta sua perfeita liberdade. Podemos então dizer: é livre aquele que é vazio. Logo, é a soberba que nos enche, isto é, são os apegos e os caprichos que nos fazem decair da nossa condição de pessoas, que reduzem a nossa liberdade e que impedem a voz de Deus de soar através de nós.

Isabel ficou cheia do Espírito Santo porque Este encontrou alguém vazio por quem pudesse soar. E foi enquanto cheia do Espírito Santo que Isabel exclamou: "de onde me vem a honra de que a Mãe do meu Senhor me venha visitar?". Os primeiros efeitos do Espírito Santo são, pois, uma nova clareza a respeito da natureza íntima das coisas - ela intui quem é Maria e a Quem ela traz no seu ventre, pelo que a chama de "Mãe do meu Senhor" - e uma atitude de esvaziamento de si mesmo - "De onde me vem esta honra?", isto é, "não vem de mim mesma". 



E aqui acontece algo que considero tão bonito: João Batista, ainda no ventre de Isabel, percebendo a voz de Maria e, nela, a presença de Jesus, estremece. Quando medito nisto, sempre o relaciono a duas coisas. Primeiramente, a um trecho do livro dos Cânticos: "Meu bem-amado passou a mão pela abertura da porta e o meu coração estremeceu." (Ct 5,4). João sentiu a presença do seu bem amado pela porta - isto é, pela via aberta - chamada Maria. Em seguida, comove-me o fato de que o próprio João Batista, quando crescido, dirá de si mesmo: "o amigo do Esposo alegra-se sobremodo com a voz do Esposo" (Jo 3,29). Parece-me que esta afirmação possui os ecos daquela visita.

Maria fica com Isabel ainda por seis meses, ajudando-lhe nos seus serviços domésticos. Nos trabalhos mais ordinários, ela encontra ocasião de servir a Deus e à sua prima. A partir de suas disposições interiores e da presença do Verbo no seu corpo e na sua alma, ela transfigura o comum em divino. Viver com ela é viver o céu na terra, pois Maria, como morada de Deus, é um tipo de Céu. S. Luís Maria Grignion de Montfort chega a dizer que ela é o paraíso particular de Deus. 

A pobreza interior torna a alma humana em terreno fecundo de Deus. Peçamos à Virgem Maria que faça a nossa alma semelhante à sua, que nos dê o seu desprendimento e que nos converta em veículos puros de Deus.

Mistérios Gozosos - Um tratado sobre a Pobreza Interior - 1º Mistério


Para ajudar na meditação dos mistérios gozosos.

A qualidade dos mistérios não é a sua incognoscibilidade, mas a sua inesgotabilidade. Isto quer dizer que os mistérios são oceanos: nós os conhecemos somente em parte e, por mais que neles aprofundemos, nunca chegamos ao seu fim.

Os mistérios gozosos sempre me pareceram expressar de modo muito profundo o mistério da pobreza interior. Porei-os abaixo um por um e em seguida tecerei algumas reflexões a respeito.

1º Mistério - A visita do Arcanjo Gabriel à Virgem Maria e a encarnação do Verbo.

A Virgem Maria era uma jovenzinha da pobre cidade de Nazaré e estava prometida em casamento a José. Seguia a religião judaica e esperava, como todos os demais judeus, pelo cumprimento da promessa: a vinda do Redentor. A sua vida estava como que prevista: casaria, seria mãe, educaria os filhos na Lei de Deus. Maria tinha as suas seguranças, as suas garantias, as suas expectativas humanas; seria confortável manter-se circunscrita num tipo de vida que já conhecia de antemão. Contudo, a ela seria pedido, como a Abraão, sair de suas coisas, da sua terra, das situações que já lhe eram familiares e dar o passo no escuro. Maria pôde consentir porque, acima de todo o complexo de contingências naturais, estava acordada no Único Necessário, Aquele que dava unidade a toda a sua vida, e Maria sabia que Deus, por ser infinito, não pode ser enquadrado em previsões ou em categorias; é, por definição, imprevisível e, por isso, santamente perigoso. Quando tratava com as coisas humanas, ela não se perdia no fluxo contínuo de eventos sensíveis que lhe solicitavam. Mesmo quando se dava a seus compromissos, seu coração se mantinha desperto. "Eu dormia, mas meu coração velava". (Ct 5,2)

Quando o Arcanjo Gabriel lhe foi visitar, embora fosse um anjo de alta hierarquia e, portanto, possuísse as virtudes em grau eminentíssimo, encontrou aí uma humana que estranhamente lhe superava nas duas principais: a humildade e o amor a Deus. O amor a Deus em Maria era tão intenso, diz um escritor devoto, que os próprios anjos poderiam ter descido à casinha de Nazaré para aprender com ela a amar a Deus. Este era o motivo pelo qual Maria era tão acordada.  Não há buda que se lhe equipare. Conhecia bem a efemeridade e vaidade do mundo, descrita em Eclesiastes, e mantinha o seu coração ancorado em Deus pelo que sua alma voava acima de toda preocupação meramente humana.

Gabriel lhe anuncia que, se ela consentir, será a mãe de Deus. Maria era consciente de sua pequenez, e continuamente se define como escrava. Se esta consideração de si mesma fosse meramente natural, Maria teria rejeitado a sua missão justamente por humildade. Mas a sua virtude ultrapassava infinitamente a de qualquer código moral natural. Justamente pela sua humildade abismal, Maria aceita a missão, pois sabia que tudo aquilo se fundamentaria não nela, mas no próprio Deus. Cabia-lhe servir e obedecer. E, no entanto, via que Deus estava se submetendo à sua vontade de criatura.

A pobreza de Maria está justamente aqui. É pobre aquele que se dá e não se busca a si mesmo. Maria, ao intuir a vontade divina, a amou e a quis. "Sim!". Não lhe importava o que seus parentes iriam pensar; não lhe impedia a surpresa que José teria. Não lhe travava o passo sequer o saber que ela poderia vir a morrer apedrejada se acaso José lhe denunciasse ou se o povo judeu ficasse sabendo, de algum modo, que ela havia engravidado antes do casamento. Deus queria. Maria esvaziou-se de si mesma e seu esvaziamento foi total. "Fiat!" "Faça-se". 

No seu esvaziamento, Maria foi tão perfeita que o próprio Deus, também esvaziando-Se de Si mesmo, veio habitar nela. O esvaziado habitou na esvaziada e isto revelou, pela comunhão de atitudes, o grau de intimidade que Maria tinha com Deus desde antes. Em se tratando de Cristo, é São Paulo quem escreve: "Jesus não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a Si mesmo, assumindo a condição de escravo" (Fil 2, 6-7). O ato de aniquilamento de Jesus - chamado de kenose - foi infinito. Com efeito, ninguém é capaz de sondar a distância entre a divindade e a humanidade. Jesus, porém, assume a partir do sim de Sua Mãe uma condição inefavelmente inferior à sua divindade. Jesus não se contentou em enviar-nos graças ou posses Suas; Ele mesmo veio. Assumiu visceralmente a Sua missão, saiu de Si mesmo e deu-Se a Si mesmo. O Senhor do Céu ocupou lugar tão estreito: o seio de uma mulher. O que governa todas as coisas desceu à total submissão à sua criatura. Ser pobre é dar-se.

Foi por ser tão pobre e despojar-se tão inteiramente de si mesma, que Maria pôde receber o Verbo divino, o Pobre, em seu ventre. Maria grávida era um mistério: a humilde por excelência carregava em si mesma a própria Humildade. Note-se, então, que o ato da pobreza sempre ocupa, na história da salvação, lugar central. É ela que abre espaço para Deus. Portanto, podemos inequivocamente concluir: Maria era a plena abertura e docilidade à divindade. Ela era porta aberta à transcendência. Não à toa foi escolhida como caminho de Deus para os homens e dos homens para Deus. A amizade com Deus pressupõe a pobreza. Sejamos pobres. Que a Virgem Maria nos ensine.