sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Qualidades para a gravidade do pecado


As condições para que um pecado possa ser qualificado como mortal ou venial são três: Matéria, Consciência e Liberdade. Explico:

A Matéria é a situação específica, se foi grave ou não, se se roubou ou se se mentiu, se houve ou não agravantes, etc. Assim, uma mentira pode ser venial ou mortal a depender das circunstâncias ou das consequências. Tais circunstâncias ou consequências são agravantes. Uma coisa é mentir a idade apenas por vaidade; outra é menti-la para que se obtenha um benefício, como um emprego; outra, ainda, é dissimulá-la a fim de isentar-se de um serviço obrigatório.

A consciência é naturalmente a auto-percepção de estar a fazer algo errado. Um ato errado sem consciência obviamente não pode ser culpabilizado. Se eu aperto um botão crendo que ele irá libertar animais presos, e, no entanto, o que ele faz é detonar uma bomba numa escola infantil, eu não posso ser culpado pelas consequências uma vez que não tinha consciência delas. Óbvio que se pode aqui questionar se tal ignorância é ou não culpável. Isto envolve um outro exame. Mas, a rigor, se faltou consciência, a culpa não pode ser aplicada. É o caso de pessoas que se casam e, depois de muitos anos, percebem que são parentes de primeiro grau. Neste caso, a culpa não lhes é imputada.

Por fim, a liberdade é a livre decisão de fazer ou não o ato referido. Roubar é errado. Porém, a gravidade da fome ou da pobreza dos parentes pode minorar - sem tornar lícito, frise-se - este ato. Do mesmo modo, certas compulsões mentais tiram ao sujeito a liberdade de agir de um modo diferente. A necessidade do ato torna-o, novamente, isento de culpa, ainda que a pessoa tivesse consciência da imoralidade do feito. Suponhamos ainda que alguém tem fobia por aranhas e está num hospital de idosos em que o silêncio é necessário. Ao ver o objeto temido, a descarga de ansiedade lhe faz gritar, e isto causa um incômodo considerável nos velhinhos, fazendo inclusive com que alguns precisem ser atendidos. Se estava em posse da pessoa não gritar, o fato de ter gritado torna-se culpável. Mas se não lhe era possível não fazê-lo, então ela não pode ser responsabilizada. Deve ser, obviamente, retirada do ambiente, mas não tem culpa. Algo similar ocorre com a blasfêmia: se feita livremente, é pecado gravíssimo. Se feita num momento de crise, a culpa pode ser minorada. Se feita porque alguém nos pôs uma arma na cabeça e ameaçou disparar se não blasfemássemos, a culpa poderá ser até nula.

Há, porém, um outro componente que julgo importante constar para que se avalie a moralidade de uma ação: é a intenção. Uma pessoa pode ter consciência de que um ato é mau, pode estar livre para fazê-lo, pode querer fazê-lo, mas ainda assim pode ter uma intenção que não é má. É o caso, por exemplo, de quem, conhecendo as regras da Igreja sobre o estado de graça necessário à comunhão, decide, num momento de inspiração, arriscar, fazer um ato de confiança cega na misericórdia divina, e tomar a santíssima espécie. Esta situação parece mais frequente do que se imagina. É claro que isto não a isenta da gravidade do ato, mas consideremos que uma coisa é que ela vá a comungar com a intenção de cometer um sacrilégio, e outra, muito diferente, é a de que esteja a fazer um ato extremado de Fé. Vê-se como a intenção é importante para uma justa avaliação dos atos. E os santos insistem particularmente nisto: a pureza de intenção. Pode-se, porém, esclarecer que, no exemplo citado, a consciência da pessoa está reduzida, uma vez que, embora conheça os ditames da Igreja, parece neles não confiar de todo, o que implica uma falta de consciência. Assim, nos casos em que a intenção é boa mas a ação não o é, tem-se um caso de ignorância, e, como dissemos, há que se investigar as causas desse defeito para se descubra se há culpa pessoal nisso ou não. Assim, embora a intenção só não seja suficiente para a moralidade de um ato, ela tampouco é dispensável.

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

O ateísmo é uma solução simplista.


Meu argumento contra Deus era o de que o universo parecia injusto e cruel. No entanto, de onde eu tirara essa idéia de justo e injusto? Um homem não diz que uma linha é torta se não souber o que é uma linha reta. Com o que eu comparava o universo quando o chamava de injusto? Se o espetáculo inteiro era ruim do começo ao fim, como é que eu, fazendo parte dele, podia ter uma reação assim tão violenta? Um homem sente o corpo molhado quando entra na água porque não é um animal aquático; um peixe não se sente assim. É claro que eu poderia ter desistido da minha idéia de justiça dizendo que ela não passava de uma idéia particular minha. Se procedesse assim, porém, meu argumento contra Deus também desmoronaria - pois depende da premissa de que o mundo é realmente injusto, e não de que simplesmente não agrada aos meus caprichos pessoais. Assim, no próprio ato de tentar provar que Deus não existe - ou, por outra, que a realidade como um todo não tem sentido -, vi-me forçado a admitir que uma parte da realidade - a saber, minha idéia de justiça - tem sentido, sim. Ou seja, o ateísmo é uma solução simplista. Se o universo inteiro não tivesse sentido, nunca perceberíamos que ele não tem sentido - do mesmo modo que, se não existisse luz no universo e as criaturas não tivessem olhos, nunca nos saberíamos imersos na escuridão. A própria palavra escuridão não teria significado.

C. S. Lewis. Cristianismo puro e simples. São Paulo: Martins Fontes, 2013. p.53-54.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

As preocupações do homem fútil são como teias de aranha


"Apesar de sua aparente consistência, a teia de aranha desfaz-se e desaparece ao mais leve toque da mão. Assim, a vida do homem implicado nas preocupações fúteis - como se se tratasse de fios suspensos no ar - tece inutilmente sua teia inconsistente; basta submetê-la a um questionamento mais sistemático, e a frívola preocupação escapa à prisão e desaparece.

Tudo o que se persegue nesta vida só existe na opinião e não na realidade: a honra, a dignidade, a glória, a fortuna e tudo aquilo a que se dedicam as aranhas da vida...

Aqueles que sobem em direção aos cimos escapam com a leveza de seu vôo às tramas das aranhas do mundo; pelo contrário, aqueles que, à semelhança das moscas, são pesados e desprovidos de energia, permanecem grudados aos viscos da vida, estão presos e acorrentados como que por redes às honras, prazeres, elogios e múltiplos desejos, tornando-se assim a presa da Besta que procura capturá-los."

São Gregório de Nissa

terça-feira, 14 de julho de 2015

O desejo do céu é subjacente a todas as experiências da vida


O que vou dizer agora é apenas uma opinião pessoal, sem o menor resquício de autoridade, e submeto-a ao juízo de cristãos e de estudiosos melhores que eu. Momentos houve em que achei que não queríamos o céu, porém, com mais frequência pego-me pensando se, bem lá no fundo do coração, alguma vez desejamos algo mais. Você pode ter notado que os livros que realmente ama estão ligados por um fio secreto. Você sabe muito bem qual a qualidade comum que o faz amá-los, embora não possa traduzi-la em palavras, mas a maioria de seus amigos não a percebe absolutamente e por vezes indagam por que, gostando disso, você deveria também gostar daquilo. Você com certeza já esteve diante de uma paisagem que parecia incorporar algo que você procurou por toda a vida e então voltou-se para o amigo ao seu lado, que parecia estar vendo o mesmo que você via, mas, às primeiras palavras, um abismo se abriu entre os dois, e você percebe que aquela paisagem significava algo totalmente diferente para ele, que estava em busca apenas de uma vista exótica, pouco lhe importando a sugestão inefável pela qual você foi arrebatado. Até mesmo em seus passatempos, será que não houve sempre alguma atração secreta - que outros curiosamente ignoram e com que não se identificam -, porém sempre prestes a se insinuar: o cheiro de madeira cortada na oficina ou o som da água batendo contra o casco do barco? 

Será que as amizades que duram a vida toda não nascem no momento em que você finalmente encontra outro ser humano que tenha alguma noção (embora tênue e incerta, mesmo no melhor dos casos) daquilo que você nasceu desejando e que, sob o fluxo de outros desejos e em todos os silêncios momentâneos entre as paixões mais estrondosas, noite e dia, ano após ano, da infância até a velhice, você procura, espera e ouve? Você nunca teve isso. Todas as coisas que sempre lhe dominaram profundamente a alma não foram senão indícios disso - vislumbres sedutores, promessas nunca de todo cumpridas, ecos que morreram tão logo lhe alcançaram os ouvidos. Se isso, contudo, realmente se tornasse manifesto; se alguma vez viesse um eco que não morresse, mas tomasse corpo no próprio som, você o saberia. Além de toda possibilidade de dúvida, você diria: "Eis enfim aquilo para o que fui feito". Não podemos falar sobre isso aos outros. É a assinatura secreta de cada alma, o anseio incomunicável e insaciável, a coisa que almejamos antes de encontrar nossa mulher, de conhecer nossos amigos ou de escolher nosso trabalho, que iremos ainda desejar em nosso leito de morte, quando a mente não reconhecer mais nem esposa, nem amigo, nem trabalho. Enquanto existirmos, estará lá. Se perdemos isso, perdemos tudo.

(...) Em toda a sua vida, um êxtase inatingível tem pairado um pouco além do alcance de sua consciência. Perto está o dia em que você despertará para descobrir, além de toda a esperança, que você havia atingido o céu ou então que ele estava ao seu alcance, e você o perdeu para sempre.

C. S. Lewis, O problema do sofrimento. Cap. 10: O céu.

terça-feira, 16 de junho de 2015

Mil graças, Senhor, por me teres criado - O paradoxo da vida

Eu aos 30.

Há 8 séculos, Sta Clara dizia a frase que encima este texto ao sentir ser chegado o momento de morrer. Na verdade, aquele vértice da vida era apenas uma aparência, como o seria um parto sob a perspectiva de um nascituro. Mas, na realidade, era apenas o verdadeiro nascimento para a vida "de uma sorte mais subida", que é a vida dos santos. Sta Clara o sabia, e a sua morte tinha o sabor do início de uma festa de aniversário que as anteriores apenas preludiavam. Saber e sabor, a propósito, têm o mesmo étimo.

Fazer aniversário é algo paradoxal. Comemoramos o tempo decorrido desde o nascimento, que se vai alongando, e, ao mesmo tempo, sabemos que o tempo daquele outro nascimento, no fim da vida, vai-se encurtando. Para que a vida continue depois da morte, e o segundo parto não seja frustrado, ainda que sejamos velhos, devemos ser crianças. As duas considerações - nascimento e morte - não deveriam provocar reações opostas, mas, antes, nos alegrar ambas. A primeira, pelo dom da vida. A segunda, pela esperança da eternidade. Esta segunda é a razão de ser da primeira, sem a qual a vida no tempo perde o sentido, virando evento casual, instante nauseante e desesperado "entre duas eternidades" negativas. É surpreendente que alguém o creia. Nós, cristãos, pelo contrário, sabemos que a vida "não será tirada, mas transformada". Como diz São Paulo, seremos "sobrevestidos". A vida, ao invés de ser perdida, será adensada, se tornará mais real que agora, e haverá cessado a inquietude, e veremos a Deus. "Cessai e vede que eu sou Deus.", diz o Salmo.

O aniversário, por isso, deveria nos produzir uma dupla nostalgia, pelo recordo dos anos decorridos e pela "lembrança" do fim, pois, de fato, viemos de Deus e para Ele retornaremos, de modo que o fim identifica-se com o começo; o alpha e o ômega são a mesma Pessoa. 

Assim como o bebê, antes de nascer, vive dentro da mãe, num tipo de vida que é quase isenção de liberdade e consciência, e, depois que nasce, ele vê pela primeira vez a face da sua mãe, e um mundo infinitamente maior se descortina diante dele, assim também, por ora, é em Deus que "vivemos, nos movemos e somos". Estamos sendo como que gerados. Na morte, ao nascermos, se tudo estiver correto, poderemos enfim ver Deus face a face, saboreando da verdadeira liberdade. É claro que a comparação não é perfeita. No Céu, não estaremos "fora" de Deus como o bebê que nasce está fora da mãe. Mas as realidades temporais, ainda que de modo limitado, simbolizam as superiores.

Neste dia em que completo meus 30 anos, noto novamente que esta é uma idade paradoxal: ela é o último ano da minha terceira década, embora pareça, aos desatentos, ser o primeiro. De novo, primeiro e último parecem se identificar. Ainda que isto se dê por um equívoco, não deixa de impressionar. Neste dia, depois de tanta coisa já passada, e ao mesmo tempo com uma impressão de que me trouxeram aqui às pressas, eu só posso ser grato a Deus. Nada disso seria possível se Deus não tivesse pensado em mim e, pelo seu Lógos, não me tivesse criado. É comovente saber que o Cristo, Ele mesmo, me olhou antes de eu existir, e, sabendo de todas as minhas misérias, ainda assim me quis, Ele que só pode querer o bem. Estou vivo por pura gratuidade de Deus. E, na minha ingratidão, Ele revela Sua misericórdia. E, em me permitir mais um ano de vida, Ele revela Sua insistência, pois o estar vivo somente tem sentido enquanto tensão para a santidade. Deixar-me vivo é insistir.

Ainda ontem eu lia esta frase do Léon Bloy: "Uma alma que Deus sitia com todo o seu poder! Imaginai alguma coisa de mais belo!" De fato, não imagino, e apenas desejo que esta beleza me salve, como naquele trecho bem conhecido de Dostoievski. E não é preciso pedi-lo, sequer, pois o belo, nos ensina a boa metafísica, irradia pela sua própria natureza, assim como o bem por si mesmo se propaga. O único impedimento à irradiação de Deus, o único empecilho à propagação do Onipotente - vejam mais um paradoxo - é a rebeldia de um vermezinho, é a minha vontade pessoal, que Deus respeita. Espero, contudo, que Ele, o onisciente, saiba distinguir a minha vontade dos meus desejos, pois sob a agitação destas águas impulsivas, há algo que, quieto e constante, aponta para Ele como uma seta. Não se detenha, pois, o Onipresente, e, cessando o Seu recuo, desague-Se violentamente e sitie-me com toda a Sua majestade. Se vivo, é para Ele. Sempre o será. E, ainda que eu não alcance a glória dos céus, e no inferno seja projetado, continuarei o paradoxo: cantarei, do meio das chamas inferiores, com todos os meus pulmões danados, a beleza e a bondade de Quem um dia me quis.

Mil graças, Senhor, por me teres criado.

Fábio.

domingo, 31 de maio de 2015

Gregório Taumaturgo acerca do ensino de Orígenes


"A fim de evitar que nos viesse acontecer o que ocorre com a multidão das pessoas inexperientes, ele não nos introduzia em um único sistema filosófico, nem nos deixava deter-nos nele, mas nos guiava através de todos, não permitindo que ignorássemos qualquer doutrina dos gregos. Ele próprio nos orientava nesta busca, à semelhança de um hábil artista que, por um experiente uso da filosofia, conhecesse tudo, discernindo o que era bom e útil em cada sistema para chamar nossa atenção precisamente para esse aspecto, não deixando de afastar os erros. E nos aconselhava a evitarmos o apego a qualquer filósofo, mesmo que tivesse sido declarado por todos os homens como perfeitamente sábio, para aderirmos somente a Deus e a seus profetas.

Assim, nós também, se nos ocorrer, às vezes, de encontrar algo de verdadeiro entre os pagãos, evitemos de menosprezar, imediatamente, o autor e seu pensamento. Além disso, o fato de termos uma lei que nos foi dada por Deus, não nos dá o direito de sermos orgulhosos e menosprezarmos as palavras dos sábios; pelo contrário, como afirma o apóstolo, devemos experimentar e reter o que é bom.

Ele explicava e iluminava o que era obscuro na Escritura, como um ouvinte de Deus hábil e muito perspicaz, ou então expunha o que, em si, era claro, ou que o era, pelo menos, para ele; aliás, neta época, foi o único homem que conheci ou de quem ouvi falar que, pela meditação das puras e luminosas palavras, fosse capaz de penetrá-las e ensiná-las. De fato, o Espírito que inspira os profetas e todo discurso místico e divino, ao honrá-lo como um amigo, o havia estabelecido como seu intérprete [...]. Com efeito, é necessária a mesma graça, tanto para compreender a profecia, quanto para enunciá-la.

(...)
Nada era proibido, nem ocultado, nem inacessível. Podíamos aprender qualquer doutrina, bárbara ou grega, mística ou moral, examinar em profusão todas as idéias, empanturrar-nos com todos os bens da alma. Qualquer pensamento antigo que fosse verdadeiro, acabava por nos pertencer, por nossa própria vontade, com a possibilidade maravilhosa das mais belas contemplações; para nós, era verdadeiramente uma imagem do paraíso.

Jean-Yves Leloup, Introdução aos verdadeiros filósofos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2004. p.43-45.

domingo, 17 de maio de 2015

Só quem ama compreende


Os seres humanos se sentem sós, abandonados em sua auto-afirmação, enquanto não encontrarem um eco, aceitação e confirmação de fora. A tendência de união encontrada em todo o universo, na vida humana apresenta-se em escala e graduação ascendentes, conforme os níveis de vida. No nível biológico, no "sexo", há apenas abraços, contato epidérmico, tentativa de penetração que, de maneira nenhuma, por mais repetidos que sejam, podem saciar o desejo de plena união. No nível emocional, na "paixão", no "Eros" atinge-se certo paralelismo, sintonização de vibrações psíquicas, projeção recíproca de emoções pessoais no parceiro. Um jogo a dois, mas que não é nem de longe verdadeira união. É no nível da vida consciente e livre, no nível pessoal, que se realiza verdadeira união.

O verdadeiro amor é amor-amizade. É união entre duas personalidades. É conhecimento, reconhecimento de um Eu para com outro Eu diferente, que se deve aceitar na realidade própria e inconfundível; mas não como lâmpada excitadora de sonhos e excitações; nem como manequim a vestir a esplêndida roupagem de nossa imaginação.

E significativo como a Escritura designa a união amorosa conjugal: "Adão conheceu sua mulher e ela o concebeu" (Gen 4,1). Não podemos conhecer uma pessoa como os demais objetos que nos rodeiam. A nossa inteligência é um receptáculo de capacidade elástica quase ilimitada: nele podemos receber o mundo todo, dando-lhe assim nova existência. Conhecer alguma coisa é dar-lhe existência reflexa dentro de nós. É uma espécie de nova criação. Quanto mais coisas conhecemos, mais se alargam os nossos horizontes, nosso mundo interior. A todos objetos podemos dar assim nova existência "subjetiva" dentro de nós. Menos a outras pessoas. Nenhuma pessoa é simples"objeto"; é sempre "sujeito", indivíduo: um mundo inteiro, fechado e inacessível a estudo "objetivo". Por mais que observemos e analisemos uma pessoa, não a "compreendemos", não a apreendemos completamente, transferindo-a para nosso mundo interior. A chave única que dá acesso ao "jardim fechado" do Eu diferente é o amor. Só quem ama, compreende.

Mas amar significa antes de tudo: sair do "jardim fechado" do próprio Eu. É abrir-se para encontrar porta aberta. Aí está a razão porque se ama tão pouco nesse mundo. Há uma dolorosa dissonância no homem. De um lado, aspira ardentemente à união que rompa o isolamento. Do outro, receia essa mesma união como ameaça à sua personalidade. Efeito ainda do pecado original. Tendo rompido o homem a união e harmonia com Deus, perdeu também a capacidade de estabelecer, com naturalidade e espontaneidade, relações mútuas, união harmoniosa. Sente-se por demais exposto, vulnerável, inseguro, ameaçado no seu valor pessoal. Mas amar é sempre abrir-se. E abrir-se é arriscar-se. O medo inibe. O egoísmo procura antes de tudo segurança. Mas, quando prevalece o instinto de segurança, nunca se chegará a amar. E sem amor não se encontra a plenitude da vida. A eterna desconfiança, o eterno medo tranca o homem dentro de si mesmo e fá-lo murchar, estiolar, atrofiar-se. Querendo salvar-se, tudo perde. Quem amar a sua vida (a sua segurança pessoal) acima de tudo, perdê-la-á; mas quem a perder (quem se ariscar, se abrir para o Tu), ganhá-la-á. Isso vale tanto para o amor humano, como para o divino. É preciso abrir a porta, senão a vida estancará no isolamento. A união é transfusão de novo sangue. Só nela se encontra sentido e felicidade. Nisso há evidentemente risco. Quem se abre, expõe-se ao perigo de ser invadido e explorado. Mas, antes a possibilidade de uma exploração, que a certeza de estiolamento.

Frei Valfredo Tepe OFM. O sentido da vida. Ascese cristã e psicologia dinâmica. 3ª ed. Bahia: Mensageiro da Fé, 1960. p. 230-231.

domingo, 5 de abril de 2015

Larry...


"Não tem ambição, nem desejo de se tornar célebre; distinguir-se aos olhos do público lhe seria sumamente desagradável; e, portanto, admissível que se contente em levar a vida que escolheu e ser apenas ele mesmo. É excessivamente modesto para se patentear como exemplo aos olhos dos outros; mas é possível que julgue que algumas almas indecisas - para ele atraídas como mariposas para a chama - chegarão, com o tempo, a compartilhar de sua maravilhosa crença de que a verdadeira felicidade só pode ser encontrada nas coisas do espírito, e que esteja convencido de que, trilhando com abnegação e renúncia o caminho da perfeição, está praticando o bem tão positivamente como se estivesse escrevendo livros ou discursando a multidões."

Somerset Maugham a respeito do Larry, O fio na navalha

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Procurar-se é limitar-se e limitar o ilimitado




"O homem que só se procura a si na arte, na ciência, na caridade, na piedade, que pensa em si, que se admira e busca as sensações ou as impressões, ou a satisfação de ser sábio ou artista, ou de estar unido a Deus, ou que procura a glória que estas coisas proporcionam, não encontra nelas o desenvolvimento que tudo isso lhe deve trazer. Não é verdadeiramente acrescentado com elas; o cuidado de si próprio impede-o de se perder, de perder a estreiteza do seu ser nos valores que o ultrapassam. Não vê estes valores senão através de si mesmo e ele é um ser 'limitado'. Limita-se, portanto, o ilimitado, e então o ilimitado deixa de ser o ilimitado. A preocupação por si próprio faz de anteparo entre estas realidades espirituais e ele, e nunca chega ao verdadeiro sentido da beleza, da verdade, do bem - de Deus."

Jacques Laclerco

terça-feira, 17 de março de 2015

Rikyù varre o jardim


Jòò, professor de Rikyù, encarregou-o, certa vez, de varrer o jardim. Mas, na realidade, o jardim já havia sido tão bem varrido, que não se via sequer uma única folha caída no chão. Quando lhe foi confiada a tarefa de varrer um jardim já tão perfeitamente limpo, Rikyù saiu imediatamente e, dirigindo-se a uma árvore, tomou-a com ambas as mãos e a sacudiu levemente. Observou como quatro ou cinco folhas, ondulando devagar e suavemente, caíram no chão, e, asim, ele voltou a entrar na casa. Mestre Jòò contemplou o jardim e elogiou Rikyù com as seguintes palavras: "Isso é o que se chama varrer bem!"

Horst Hammitzsch, O zen na arte da cerimônia do chá. São Paulo: Pensamento, 1997. p.76-77.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Cristianismo e Zen - Alguns paralelos


Thomas Merton

A iluminação budista ou Nirvana, o mais alto objetivo do homem, tem sido completamente incompreendido no Ocidente. A razão disso é, talvez, que o conceito de Nirvana primeiro chegou ao Ocidente através das traduções de textos ascéticos do Pequeno Veículo. Estes enfatizavam a extinção do desejo e o aspecto negativo da iluminação budista. Ora, isso foi desenvolvido por pessimistas românticos, como Schopenhauer, e o resultado é que o budismo estereotipado do Ocidente aparece como a religião por excelência da negação do mundo. Para essa religião, o ideal é passar a existência terrestre num transe, de maneira a que, depois da morte, desapareça o homem, reduzido a puro nada. De acordo com essa ótica, todo valor positivo na existência humana é simplesmente negado. Difícil é conceber como um tal e suposto culto da inércia e da morte pôde inspirar manifestações tão evidentes de vitalidade e alegria, como se encontram na arte, na literatura e cultura budistas, de modo geral, por toda parte no Oriente.

Em realidade, a distorção é um tanto semelhante à que sofreu a espiritualidade de místicos cristãos, como São João da Cruz considerado asceta negador da vida e odiando o mundo. Ora, na verdade, no misticismo de São João da Cruz há superabundância de amor, vitalidade e alegria. A realidade é que existe certa espécie de mentalidade que não suporta ver questionado o mundano e temporal, sob qualquer forma, seja qual for. Toda tentativa de dizer que esses valores permanecem relativos e contingentes é rejeitada como maniqueísmo e como denegrir a terra encantada.

Mas se os valores terrenos e temporais são tratados, de fato, como absolutos, quem poderá gozá-los? Tornam-se irreais, sofrem distorção e a pessoa que os vê através dessa ilusão é incapaz de apreender o verdadeiro valor que contêm. A tragédia de uma vida centrada em "coisas", em agarrar e manipular objetos, está no fato de que esse tipo de vida fecha o ego sobre si próprio, lançando-o na luta sem esperança com outros egos, também perversos e hostis, competindo juntos pela posse de coisas que lhes darão poder e satisfação. Em vez de serem "abertas ao mundo", tais mentalidades estão, em realidade, fechadas ao mundo. Seus esforços tirânicos para construir um mundo de acordo com seus próprios desejos estão condenados ao fracasso, no fim, pela ambiguidade e pelos elementos destrutivos que contêm. Parecem ser luz, mas combatem juntos numa impenetrável treva moral.

O budismo e o cristianismo bíblico concordam em sua visão da condição presente do homem. Ambos estão conscientes de que o homem, de algum modo, não se acha em sua verdadeira relação com o mundo; ou, para ser mais exato: vêem que o homem traz em si uma misteriosa tendência para falsificar essa relação e para empregar grande dose de energia em justificar sua falsa visão do mundo e do seu lugar nele. Essa falsificação é o que Buda denomina Avidya. A avidya, geralmente traduzida pela palavra "ignorância", é a raiz de todo mal e de todo sofrimento, porque coloca o homem numa posição equívoca e, de fato, impossível. É um erro invencível concernente à própria natureza da realidade e do homem. É uma disposição para tratar o ego como realidade absoluta e central e a tudo referir a ele como objeto de desejo ou de repulsa.

O cristianismo atribui essa visão do homem e da realidade ao "pecado original". Gabriel Marcel expressa o verdadeiro sentido dessa cegueira quando diz que o ego cria sua própria obscuridade ao colocar-se entre o Eu e o outro (que são, em realidade, uma unidade inter-subjetiva). A narração da queda do homem nos conta, em linguagem mística, que o "pecado original" não é apenas um estigma que faz os prazeres bons parecem culpáveis, mas é inautenticidade básica, uma espécie de predisposição à má fé em nossa compreensão de nós mesmos e do mundo. Representa uma determinação voluntária de tentar fazer que as coisas sejam diferentes do que são para podemos, então, torná-las, em qualquer momento, subservientes para com nosso desejo individual em relação ao prazer e ao poder. Entretanto, uma vez que as coisas não obedecem aos nossos impulsos arbitrários e não podendo fazer com que o mundo corresponda à imagem que dele fabricamos, de acordo com nossas necessidades e ilusões, nem confirmá-la, nossa voluntariedade é inseparável do erro e do sofrimento. Daí, declara o budismo, sendo a vida assim uma ilusão, está em estado de Dukka, e todo movimento de desejo tende a produzir, afinal, frutos na dor, em lugar de alegria duradoura, no ódio e não no amor, na destruição e não na criação. (Notemos de passagem, quando as habilidades tecnológicas parecerem, com efeito, dar ao homem poder absoluto na manipulação do mundo, que esse fato de modo algum modifica sua condição original de "fratura" e erro. Pelo contrário, isso a torna ainda mais evidente. Nós, que vivemos na era da bomba H e dos campos de extermínio, temos motivos para refletir sobre isso, embora tal tipo de reflexão goze de certa impopularidade).

Enquanto continua essa "fratura" da existência, não há saída em relação às contradições internas que ela nos impõe. Se um homem tem uma perna quebrada e continua a tentar andar, todo movimento de desejo de andar é um movimento de dor, inevitavelmente... Mas até o desejo de acabar com a dor do desejo é um movimento e, portanto, causa dor. O desejo de permanecer imóvel é um movimento.

O desejo de fuga é um movimento. O desejo de Nirvana é um movimento. O desejo de extinção é um movimento. Entretanto, não há meio, para nós, de ficarmos imóveis "impondo imobilidade" a nossas desejos. Em uma palavra, o desejo não pode impedir-se de desejar; tem de continuar a mover-se e, consequentemente, a causar dor quando procura a libertação de si e deseja sua própria extinção.

A suprema resposta cristã encontra-se tipicamente descrita por São Paulo: "Desejando fazer o bem, constato esta lei: é o mal que faço. Concordo de coração com a lei de Deus no meu ser íntimo; encontro, porém, outra lie em meus membros que contradiz a lei da minha razão e me faz prisioneiro do pecado (Falta de verdade, "fratura", ilusão voluntária, distorção culpável de valores)... Infeliz que sou! Quem me libertará dessa morte viva? Deus, pela sua graça em Cristo Jesus Nosso Senhor." (Rm 7,21-25)

Isso significa, é claro, a Cruz - morte e ressurreição em Cristo  uma vida de amor "no espírito".

Thomas Merton, Zen e as aves de rapina. 

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

O cristianismo é mais que filosofia religiosa

Thomas Merton e Dr. Suzuki

... Se a revelação é considerada simplesmente como um sistema de verdade sobre Deus; uma explicação para o começo do universo e sobre o que eventualmente lhe sucederá; sobre qual o escopo da vida cristã, quais as suas normas morais; as recompensas das pessoas virtuosas; e assim por diante, - o cristianismo é, de fato reduzido a simples ótica "mundana". Por vezes, isso pode ser apenas filosofia religiosa ou pouco mais, impondo uma Lei, sustentada num culto mais ou menos vistoso, numa disciplina moral e num código rígido. Num tal quadro teológico, a "experiência" do sentido interior da revelação cristã sofrerá forçosamente distorção e será diminuída. Qual será essa experiência? Não tanto uma experiência teologal vivenciada na presença de Deus, no mundo e na humanidade, através do mistério cristão, mas antes uma sensação de segurança em relação à nossa própria atitude "correta". A pessoa experimentará sentimento de confiança de estar salva, confiança baseada na "consciência reflexa" que a pessoa tem de que sua ótica está correta em relação à criação e à finalidade do mundo e ao próprio comportamento como capaz de receber a recompensa na outra vida.

Thomas Merton, Zen e as aves de rapina.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Prova da Imortalidade da alma em Sócrates


FÉDON – Se não me engano, depois que concordamos com ele e que todos se manifestaram de acordo com a existência real de uma idéia a que corresponde cada coisa, sobre a participação no que se refere a estas idéias de tudo o que, não sendo elas mesmas, delas recebe a denominação, depois disso, ele perguntou:

- Se tal é, pois, a tua doutrina, será que, afirmando que Símias é maior do que Sócrates e menor do que Fédon, não afirmarás que há em Símias as duas qualidades, a grandeza e a pequenez?

- Sim.

- Mas, na realidade, acrescentou, quando dizes que Símias é maior do que Sócrates, concordas em que a verdade verdadeira não é precisamente a que decorre da expressão verbal, não é? E que, de fato, Símias é maior, não por sua própria natureza, isto é, como Símias, mas sim por motivo da grandeza que possui, não é assim? E, de outro lado, que ele é maior do que Sócrates não porque Sócrates seja Sócrates, mas somente porque Sócrates tem a pequenez relativamente à grandeza de Símias?

- É verdade.

- E também porque, se Símias é menor que Fédon, isso se verifica não porque Fédon seja Fédon, mas porque Fédon tem a grandeza em relação à pequenez de Símias?

- É isso mesmo.

- Desse modo, por conseguinte, a denominação que pertence a Símias é tanto “ser grande” como “ser pequeno”, pois ele está entre os dois e à grandeza de um, para que esta o supere, ele submete sua pequenez, enquanto ao outro o que ele apresenta é a sua grandeza, que ultrapassa a pequenez deste...

E, com um sorriso, acrescentou:

- Tenho o ar de falar como um redator de contratos. Mas, em todo o caso, as coisas são aproximadamente assim.

Cebes assentiu.

- E falo deste modo, continuou, porque desejo que partilhes da minha própria opinião. Ora, parece-me que não somente a grandeza por si mesma não deseja jamais ser grande e pequena ao mesmo tempo como, também, a grandeza que está em nós não quer jamais acolher a pequenez e muito menos ser superada, e, então, das duas uma: ou foge e cede o lugar quando o seu contrário, a pequenez, se aproxima dela, ou então, pelo próprio fato desta aproximação, ela cessa de existir. Quanto a permanecer firme no seu lugar e receber em si a pequenez, isso ela não quer absolutamente. Uma comparação: eu, uma vez que recebi a pequenez, continuando a ser aquele que precisamente sou, eu, este mesmo Sócrates, sou pequeno; ela, ao contrário, a grandeza, sendo grande, não pode tolerar ser pequena. E do mesmo modo também a pequenez que está em nós recusa-se sempre tornar-se grande ou ser grande; e assim também qualquer outro contrário, enquanto for o que precisamente é, recusa-se tornar-se ou ser ao mesmo tempo o seu próprio contrário. Mas, se lhe acontece o que acabo de dizer, ou ele se afasta, ou cessa de existir.

- Isso me parece de uma absoluta evidência, disse Cebes.

Um dos presentes (não me recordo quem) tomou então a palavra:

- Pelos deuses! Mas, de acordo com o que dizíeis antes, não se tinha chegado a um entendimento sobre o inverso precisamente do que se assevera agora? Não se afirmou que é do menor que nasce o maior, e do maior o menor? Que aquilo que realmente constitui a geração para os contrários é provir dos contrários? Ora, presentemente, o que se diz, parece-me, é que isso jamais se pode produzir!

Sócrates voltou a cabeça para o lado de onde vinha a voz.

- És um bravo, disse ele, pois nos lembraste isso! Não refletes, todavia, sobre a diferença existente entre o que se diz presentemente e o que se dizia antes. Efetivamente, o que se dizia é que da coisa contrária nasce coisa que lhe é contrária; mas agora se diz que é o contrário em si que não poderia tornar-se o seu próprio contrário, nem o que está em nós, nem o que está na natureza. Sim, meu caro, naquele momento tratava-se das coisas que têm em si os contrários e às quais damos o nome destes; mas agora se trata dos próprios contrários, cuja denominação, com a sua presença nas coisas qualificadas, passa a estas; e os contrários em questão, jamais, diremos, consentiriam em receber um dos outros a geração.

E, ao mesmo tempo, olhando Cebes, disse:

- Será que, por acaso, tu também, Cebes, te deixaste perturbar pela dúvida acerca daquilo de que falou aquele homem?

- Não, disse Cebes, de nenhum modo. Não é esse o meu caso. Isso, entretanto, não significa que não haja certas pequenas coisas que me perturbam.

- Estaremos de acordo, prosseguiu Sócrates, sem restrições, em que jamais o contrário será o seu próprio contrário?

- Perfeitamente, disse Cebes.

- Prossigamos então, disse ele. Faze-me o favor de examinar se, sobre isto, estamos de acordo. Há uma coisa que chamas quente e outra frio, não é?

- Sem dúvida.

- É isso, precisamente, a que chamas neve e fogo?

- Oh! Certamente que não, por Zeus!

- Então, o calor é coisa diferente do fogo, e o frio diferente da neve?

- Sim.

- Mas, então, suponho, segundo a tua opinião, jamais uma neve autêntica, que tiver, da maneira que antes dizíamos, recebido em si o calor, continuará a ser o que precisamente ela é, sendo neve com calor; pelo contrário, à medida que o calor aumenta, ela ou lhe cederá o lugar ou deixará de existir.

- Certamente.

- E o fogo, por sua vez, quando o gelo se aproxima dele, ou se afasta ou é destruído, sem resolver jamais, depois de haver recebido em si a frialdade, ser ainda aquilo que precisamente é, sendo fogo com frio.

- É exato, disse ele.

Pode acontecer, pois, continuou Sócrates, que em certos exemplos análogos tudo se passe de tal modo que não somente a idéia em si mesma tenha direito a seu próprio nome por uma duração eterna, mas que haja ainda outra coisa que, ainda que não sendo a idéia de que se trata, possua contudo o caráter desta, e isso pela inteira duração de sua própria existência. Mas eis ainda aqui casos que esclarecem o que digo. O ímpar tem sempre direito a não se separar deste nome de ímpar que lhe damos presentemente, não é assim?

- Sem nenhuma dúvida.

- E isto se passa com esta realidade somente (pois este é o problema que eu proponho) ou também com outra que, sem ser o próprio ímpar, todavia, usa de direito sempre o seu nome, junto ao próprio nome, pois sua natureza é tal que o ímpar jamais a desacompanha? Ora, digo eu, é o caso que se passa com o três, e com outras coisas. Considera o caso do três: não és de opinião que tanto o seu próprio nome deve sempre servir para designá-lo como o do ímpar, ainda que o ímpar não seja a mesma coisa que o três? Pois bem. Entretanto, se essa é a natureza do três, ela é também a do cinco e da metade inteira da série dos números, e, ainda que não sendo a mesma coisa que o ímpar, cada um deles é sempre ímpar. O dois, de outro lado, e o quatro e a totalidade ainda da outra fileira da numeração não são a mesma coisa que é o par, e contudo cada um destes números é sempre par. Concordas com isso, ou não?

- Como não concordar? respondeu ele.

- Pois bem, continuou Sócrates, presta atenção agora no que pretendo demonstrar. Eis aqui: evidentemente, não são somente estes primeiros contrários que não se recebem uns aos outros; há também todas as coisas que, sem serem mutuamente contrárias, possuem sempre estes contrários e que, verossimilmente, não receberiam também tal qualidade, que seria o contrário da que existe neles; mas, à aproximação desta qualidade, deixam de existir ou cedem o lugar. Não diremos, em relação ao três, que ele cessará de existir, que sofrerá qualquer vicissitude, mas que não suportará, continuando a ser três, tornar-se par?

- É absolutamente certo, disse Cebes.

- É certo também, disse Sócrates, que o dois não é o contrário do três?

- Certamente que não.

- Não são, pois, somente as idéias contrárias que não suportam a aproximação uma da outra; mas há também outras coisas que não suportam a aproximação dos contrários.

- É a própria verdade, disse Cebes.

- Queres, então – continuou Sócrates – que determinemos, se formos capazes, de que espécie são estas últimas coisas?

- Oh! Certamente.

- Não seriam aquelas, Cebes, que, se qualquer outra coisa conseguem dominar, constrangem essa coisa não somente a possuir a sua própria natureza, mas também a de um contrário que tem sempre um contrário?

- Que dizes?

- O que dizíamos há apenas um instante. Vejamos: sabes bem que tudo aquilo que sofre o domínio da natureza do três não é necessariamente apenas três, mas também ímpar.

- É exato.

- Por conseguinte, dizemos nós, a uma coisa da mesma espécie do três não poderá jamais sobrevir uma natureza tal que se opusesse como contrário ao caráter daquela que produz o três.

- Não, certamente.

- Ora, a idéia que, como se sabe, o produz é sem dúvida a do ímpar?

- Sim.

- E não é contrária a esta a idéia do par?

- Sim.

- Ao três, por conseguinte, jamais sobrevirá a natureza do par?

- Não, certamente!

- Em conseqüência, o par não é o atributo do três.

- Não é o seu atributo.

- Ímpar é, pois, a idéia do três.

- Sim.

- Eis aí, em suma, o que eu chamava determinar de que espécie são as formas que, sem serem o contrário de tal outra, não recebem todavia esse contrário. Como se vê, no exemplo citado, o três, não sendo o contrário do par, não o recebe por isso, porque traz sempre consigo o contrário do par; como o dois, o contrário do ímpar; o fogo, o contrário do frio; e outras numerosas formas. Pois bem! Vejamos agora, se aceitas esta definição: não é somente o contrário que não recebe em si o contrário, mas também esta forma que leva consigo, vá para onde for, um contrário; essa forma, digo, que leva consigo um seu contrário não poderá jamais acolher em si o contrário do contrário que por ela é levado. Procura lembrar-te: não é um mal ouvir repetir a mesma coisa. O cinco não receberá nele a natureza do par; nem o dez, que é o duplo, a do ímpar. O duplo, também por si mesmo, é contrário de outra coisa; entretanto, ele jamais receberá em si a natureza do ímpar. E, assim, uma fração como o 3/2 e todas as outras deste gênero, como 1/2, que têm por denominador o 2, não recebem a idéia do inteiro; e também não recebem frações como 1/3 e todas as outras do mesmo gênero que têm por denominador o 3. Suponho que hajas acompanhado o meu raciocínio e partilhes da minha opinião.

- Acompanhei o teu raciocínio e sou inteiramente da tua opinião, disse Cebes.

- Agora, disse Sócrates, voltemos ao ponto de partida e fala-me sem empregar para responder as mesmas palavras da minha pergunta, mas tomando-me como exemplo. Eu me explico: ao lado da resposta de que eu falava, da segura resposta a que aludi primeiramente, eu percebo, à luz das nossas últimas palavras, uma outra certeza. Se me perguntasses: “Que é que, apresentando-se no corpo, fará com que ele fique quente?”, eu não te daria a segura resposta em questão, segura, mas não sábia: “É o calor que o fará”, mas sim outra mais hábil, tirada daquilo que acabamos de dizer: “É o fogo que o fará”. E, ainda, se perguntares o que é que, apresentando-se num corpo, fará com que ele fique doente, eu não direi também que é a doença, mas que será a febre. Assim também: “Quem é que apresentando-se em um número par fará com que ele fique ímpar?”; eu não responderei que é a imparidade, mas que será a unidade. E assim por diante. Vê, agora, se compreendes o que quero dizer:

- Sim, compreendo-o bem, disse Cebes.

- Então, responde: o que é que, apresentando-se em um corpo faz com que ele seja vivo?

- É a alma, disse ele.

- E será sempre assim?

- Como negá-lo?

- Assim, a qualquer objeto de que se apodere, a alma traz consigo a vida?

- É o que acontece sempre, respondeu ele.

- Ora, há um contrário da vida ou não?

- Há, respondeu ele.

- Qual?

- A morte.

- Não é verdade que a alma jamais deverá receber nela o contrário, o contrário daquilo que, por si, ela traz sempre consigo, e que a este respeito o acordo deve resultar do que se disse precedentemente?

- Perfeitamente, respondeu Cebes.

- E que se segue? Que nome dávamos há pouco àquilo que não recebe em si a natureza do par?

- Ímpar, disse ele.

- E o que não recebe em si o justo? E o que não é capaz de receber em si o culto?

- Inculto, disse; e o primeiro: injusto.

- Pois bem; e aquilo que não pode receber em si a morte, como o chamamos?

- Imortal, disse.

- A alma não recebe em si a morte, não é?

- Não.

- A alma é, então, uma coisa imortal?

- É uma coisa imortal.

(Nota: Primeira conclusão – a alma não recebe em si a morte. Alma não-viva é coisa tão contraditória como febricitante não-quente. Ela é, pois, não-mortal.)

- Prossigamos. Até aqui, tudo ficou bem provado; ou não te parece que assim seja?

- Tudo foi muito bem exposto, Sócrates.

- E que se segue, Cebes? continuou ele. Se para o ímpar era uma necessidade ser indestrutível, seria possível que o três não fosse indestrutível?

- Como não o haveria de ser?

- E, se também para o não-quente fosse uma necessidade ser indestrutível, seria que, todas as vezes que sobre a neve se aplicasse o quente, a neve não se afastaria intata, sem liquefazer-se? Pois, com certeza, a neve não poderia deixar de existir, e, de outro lado, ela não poderia suportar, ficando firme em seu lugar para receber o calor.

- É a verdade, disse Cebes.

- Do mesmo modo, penso, se fosse para o não-frio uma necessidade ser indestrutível, jamais o fogo, no caso de ser atacado por algo frio, extinguir-se-ia; ele também não o cessaria de existir, mas escapar-se-ia, pondo-se a salvo pelo afastamento.

- Isso era necessário, disse ele.

- Não é também uma necessidade, continuou Sócrates, exprimir-se deste modo a respeito do imortal? O imortal é também indestrutível? Neste caso, não será possível à alma, quando lhe sobrevenha a morte, cessar de existir. Pois a alma – é uma conseqüência certa do que foi dito antes – não receberá a morte, e não será alma morta; do mesmo modo como o três, nós o dissemos, não será par e muito menos o ímpar; e o fogo também não será frio, e muito menos o calor que está no fogo. “Mas que impede”, poderá alguém perguntar, “não que o ímpar se torne par com a aproximação deste, sobre o que há se chegou a acordo, mas que, morrendo este ímpar, em seu lugar se gere o par?” Em resposta a tais palavras, nós não deveríamos dizer que o ímpar não cessa de existir: eis que o não-par não é indestrutível; pois, se chegássemos a acordo, ser-nos-ia fácil responder que, ante a aproximação do par, o ímpar e o três vão-se embora e se distanciam. Para o caso do fogo e do quente, como para todos os outros casos, tal teria sido a nossa resposta, não é?

- Certamente.

- Por conseguinte, também agora, se, no que se refere ao imortal, estamos de acordo com que ele também seja indestrutível, a alma, além da não-mortalidade, teria também a indestrutibilidade. Se não estivermos de acordo, teremos que recomeçar.

- Recomeçar? De nenhum modo, pelo menos em relação a este ponto! Portanto, dificilmente se poderia admitir a existência de algo que fosse refratário à destruição, se fosse preciso admitir a destruição para o imortal, ao qual pertence a eternidade!

(Nota: ora, não-sadio e não-frio podem ser destruídos pelos seus contrários, de modo que a febre ceda e o fogo se extinga. Mas não-mortal é por definição indestrutível. A alma é assim (segunda conclusão) indestrutível.)

- Todavia, disse Sócrates, acerca da Divindade, assim como da própria idéia da vida, e de tudo o mais que possa existir de imortal, suponho que ninguém deixará de admitir que isso jamais será destruído.

- Ninguém, certamente, por Zeus! disse Cebes. Nem homens, nem, por mais fortes razões, deuses!

- E se também o imortal não pode ser destruído, a alma, que é imortal, não será também indestrutível?

- Necessariamente.

- Quando, em conseqüência, a morte chega ao homem, é, como parece, o que há de mortal nele que morre enquanto o que ele possui de imortal vai, salvo da destruição, cedendo o lugar à morte.

- É evidente.

- Por conseguinte, Cebes, mais do que qualquer outra coisa, a alma é não-mortal e não pode ser destruída, disse Sócrates. É pois certo que as nossas almas habitarão o Hades.

- Sem nenhuma dúvida, disse Cebes. Quanto a mim, Sócrates, nada tenho a acrescentar depois do que disseste, nem nenhum motivo de incerteza em relação a esses raciocínios. Se houver, entretanto, alguma coisa que Símias, aqui presente (ou qualquer outro), tenha a dizer, ele não deverá permanecer silencioso. Eu me pergunto, então, se haverá outra ocasião, a não ser a que agora se oferece, em que se poderá falar ou ouvir falar de questões semelhantes!

- Pois bem, respondeu Símias. Eu também não tenho mais motivo para duvidar, pelo menos em relação ao que foi alegado. Todavia, a magnitude do problema de que tratamos e a desconfiança em que tenho esta nossa fraqueza humana obrigam-me a guardar em meu foro íntimo alguma incerteza a respeito destas teses.

- E não é isso somente, Símias, disse Sócrates. Mas a justeza de tuas palavras aplica-se também às nossas premissas: seja qual for o crédito que elas mereçam de tua parte, elas não merecem menos, por isso, um exame mais detido. Se vós todos conseguirdes apreendê-las o bastante para vossa persuasão, acreditarei, então, que passei a seguir o raciocínio, pelo menos da melhor forma possível aos homens. E, quando estiverdes sinceramente convencidos, não tereis então de levar mais adiante as vossas indagações.

- É a própria verdade, disse ele.


Há, entretanto, continuou Sócrates, pelo menos uma coisa sobre a qual vós todos deveis refletir: se a alma é verdadeiramente imortal, ela precisa do nosso cuidado, não somente durante o tempo que dura o que chamamos vida, mas durante a totalidade do tempo. E, depois do que se disse, não cuidar dela, segundo parece, seria um grave perigo. Certamente, se a morte fosse uma libertação de todas as coisas, que fortuna não seria para os maus, os quais, morrendo, ao mesmo tempo em que se sentiriam livres do corpo, sê-lo-iam também, com a alma, da sua própria maldade! Mas, na realidade, agora que a alma se revelou imortal, não há nenhuma saída para seus males, nenhuma outra salvação, senão a de se tornar a melhor possível e a mais sábia. Portanto, a alma nada mais leva consigo, ao chegar ao Hades, do que a sua formação moral e seu modo de vida, que é justamente, segundo a tradição, o que mais beneficia ou prejudica a quem morre, desde o começo de sua viagem para o além.

PLATÃO. Fédon. Trad. Miguel Ruas. São Paulo: Martins Claret, 2002. p.84-93.