Thomas Merton
A iluminação budista ou Nirvana, o mais alto objetivo do homem, tem sido completamente incompreendido no Ocidente. A razão disso é, talvez, que o conceito de Nirvana primeiro chegou ao Ocidente através das traduções de textos ascéticos do Pequeno Veículo. Estes enfatizavam a extinção do desejo e o aspecto negativo da iluminação budista. Ora, isso foi desenvolvido por pessimistas românticos, como Schopenhauer, e o resultado é que o budismo estereotipado do Ocidente aparece como a religião por excelência da negação do mundo. Para essa religião, o ideal é passar a existência terrestre num transe, de maneira a que, depois da morte, desapareça o homem, reduzido a puro nada. De acordo com essa ótica, todo valor positivo na existência humana é simplesmente negado. Difícil é conceber como um tal e suposto culto da inércia e da morte pôde inspirar manifestações tão evidentes de vitalidade e alegria, como se encontram na arte, na literatura e cultura budistas, de modo geral, por toda parte no Oriente.
Em realidade, a distorção é um tanto semelhante à que sofreu a espiritualidade de místicos cristãos, como São João da Cruz considerado asceta negador da vida e odiando o mundo. Ora, na verdade, no misticismo de São João da Cruz há superabundância de amor, vitalidade e alegria. A realidade é que existe certa espécie de mentalidade que não suporta ver questionado o mundano e temporal, sob qualquer forma, seja qual for. Toda tentativa de dizer que esses valores permanecem relativos e contingentes é rejeitada como maniqueísmo e como denegrir a terra encantada.
Mas se os valores terrenos e temporais são tratados, de fato, como absolutos, quem poderá gozá-los? Tornam-se irreais, sofrem distorção e a pessoa que os vê através dessa ilusão é incapaz de apreender o verdadeiro valor que contêm. A tragédia de uma vida centrada em "coisas", em agarrar e manipular objetos, está no fato de que esse tipo de vida fecha o ego sobre si próprio, lançando-o na luta sem esperança com outros egos, também perversos e hostis, competindo juntos pela posse de coisas que lhes darão poder e satisfação. Em vez de serem "abertas ao mundo", tais mentalidades estão, em realidade, fechadas ao mundo. Seus esforços tirânicos para construir um mundo de acordo com seus próprios desejos estão condenados ao fracasso, no fim, pela ambiguidade e pelos elementos destrutivos que contêm. Parecem ser luz, mas combatem juntos numa impenetrável treva moral.
O budismo e o cristianismo bíblico concordam em sua visão da condição presente do homem. Ambos estão conscientes de que o homem, de algum modo, não se acha em sua verdadeira relação com o mundo; ou, para ser mais exato: vêem que o homem traz em si uma misteriosa tendência para falsificar essa relação e para empregar grande dose de energia em justificar sua falsa visão do mundo e do seu lugar nele. Essa falsificação é o que Buda denomina Avidya. A avidya, geralmente traduzida pela palavra "ignorância", é a raiz de todo mal e de todo sofrimento, porque coloca o homem numa posição equívoca e, de fato, impossível. É um erro invencível concernente à própria natureza da realidade e do homem. É uma disposição para tratar o ego como realidade absoluta e central e a tudo referir a ele como objeto de desejo ou de repulsa.
O cristianismo atribui essa visão do homem e da realidade ao "pecado original". Gabriel Marcel expressa o verdadeiro sentido dessa cegueira quando diz que o ego cria sua própria obscuridade ao colocar-se entre o Eu e o outro (que são, em realidade, uma unidade inter-subjetiva). A narração da queda do homem nos conta, em linguagem mística, que o "pecado original" não é apenas um estigma que faz os prazeres bons parecem culpáveis, mas é inautenticidade básica, uma espécie de predisposição à má fé em nossa compreensão de nós mesmos e do mundo. Representa uma determinação voluntária de tentar fazer que as coisas sejam diferentes do que são para podemos, então, torná-las, em qualquer momento, subservientes para com nosso desejo individual em relação ao prazer e ao poder. Entretanto, uma vez que as coisas não obedecem aos nossos impulsos arbitrários e não podendo fazer com que o mundo corresponda à imagem que dele fabricamos, de acordo com nossas necessidades e ilusões, nem confirmá-la, nossa voluntariedade é inseparável do erro e do sofrimento. Daí, declara o budismo, sendo a vida assim uma ilusão, está em estado de Dukka, e todo movimento de desejo tende a produzir, afinal, frutos na dor, em lugar de alegria duradoura, no ódio e não no amor, na destruição e não na criação. (Notemos de passagem, quando as habilidades tecnológicas parecerem, com efeito, dar ao homem poder absoluto na manipulação do mundo, que esse fato de modo algum modifica sua condição original de "fratura" e erro. Pelo contrário, isso a torna ainda mais evidente. Nós, que vivemos na era da bomba H e dos campos de extermínio, temos motivos para refletir sobre isso, embora tal tipo de reflexão goze de certa impopularidade).
Enquanto continua essa "fratura" da existência, não há saída em relação às contradições internas que ela nos impõe. Se um homem tem uma perna quebrada e continua a tentar andar, todo movimento de desejo de andar é um movimento de dor, inevitavelmente... Mas até o desejo de acabar com a dor do desejo é um movimento e, portanto, causa dor. O desejo de permanecer imóvel é um movimento.
O desejo de fuga é um movimento. O desejo de Nirvana é um movimento. O desejo de extinção é um movimento. Entretanto, não há meio, para nós, de ficarmos imóveis "impondo imobilidade" a nossas desejos. Em uma palavra, o desejo não pode impedir-se de desejar; tem de continuar a mover-se e, consequentemente, a causar dor quando procura a libertação de si e deseja sua própria extinção.
A suprema resposta cristã encontra-se tipicamente descrita por São Paulo: "Desejando fazer o bem, constato esta lei: é o mal que faço. Concordo de coração com a lei de Deus no meu ser íntimo; encontro, porém, outra lie em meus membros que contradiz a lei da minha razão e me faz prisioneiro do pecado (Falta de verdade, "fratura", ilusão voluntária, distorção culpável de valores)... Infeliz que sou! Quem me libertará dessa morte viva? Deus, pela sua graça em Cristo Jesus Nosso Senhor." (Rm 7,21-25)
Isso significa, é claro, a Cruz - morte e ressurreição em Cristo uma vida de amor "no espírito".
Thomas Merton, Zen e as aves de rapina.
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