quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

A simplicidade e a consciência do eu


No mundo, quando as pessoas chamam alguém de simples, subentendem geralmente uma pessoa tola, ignorante e crédula. Mas a verdadeira simplicidade, longe de ser tola, é quase sublime. Todos os homens bons gostam dela e admiram-na, têm consciência de pecar contra ela, observam-na nos outros e conhecem o que ela supõe; e, no entanto, não saberiam defini-la com precisão. 

Eu diria que a simplicidade é uma retidão da alma que impede a consciência do eu. Não é o mesmo que a sinceridade, virtude muito mais humilde. Numerosas pessoas são sinceras, embora não sejam simples. Não dizem nada que não acreditem verdadeiro, e não visam a parecer diferentes do que são. Mas estão sempre pensando em si mesmas, pesando cada palavra e cada pensamento, e insistindo sobre si mesmas, na preocupação de haverem feito demais ou de menos. Essas pessoas são sinceras mas não são simples. Não se sentem à vontade com os outros, nem os outros se sentem à vontade com elas. Nelas não existe nada fácil, franco, desinibido ou natural. Sentimos que teríamos gostado mais de pessoas menos admiráveis, que não fossem tão rígidas.

Estar absorto no mundo que os rodeia e nunca desviar um pensamento para dentro, como é a condição cega de alguns arrebatados pelo agradável e tangível, eis aí um extremo oposto à simplicidade. E estar absorto pelo eu em todos os assuntos, quer se trate do dever para com Deus, quer se trate do dever para com o homem, eis aí o outro extremo, que torna a pessoa sábia no próprio orgulho - reservada, tímida, inquieta diante da menor coisa que lhe perturbe a tranquilidade interior. Essa falsa sabedoria, em que pese à sua solenidade, é pouco menos vã e tola do que a insensatez daquele que mergulha de ponta-cabeça nos prazeres mundanos. Um está embriagado pelo seu círculo exterior, o outro pelo que cuida estar fazendo interiormente; mas ambos estão num estado de embriaguez, e o último estado é pior do que o primeiro, porque nele a pessoa dá a impressão de ser sábia, embora, na verdade, não o seja, de sorte que não tenta curar-se.

A simplicidade verdadeira consiste num juste milieu igualmente livre da despreocupação e da afetação, em que a alma não esteja submersa debaixo das coisas exteriores de modo a tornar-se incapaz de refletir e abrir mão dos infindáveis requintes a que a consciência do eu conduz. A alma que olha para onde se dirige sem perder tempo em discutir cada passo ou em ficar o tempo todo olhando para trás possui a verdadeira simplicidade. Tal simplicidade, com efeito, é um grande tesouro. Como chegaremos a ela? Por ela, eu daria quanto possuo; ela é a pérola preciosa da Sagrada Escritura.

O primeiro passo da alma, portanto, consiste em lançar de si as coisas exteriores e olhar para dentro a fim de conhecer o seu verdadeiro interesse pessoal; até aí, tudo está certo e é natural; nesse sentido, não é mais que um sábio amor do eu, que procura evitar a embriaguez do mundo.

No passo seguinte, a alma precisa juntar a contemplação de Deus, que ela teme, à contemplação do eu. Trata-se de uma pífia aproximação da verdadeira sabedoria, mas a alma ainda está muto absorta em si mesma; não se contenta de temer a Deus; quer ter a certeza de temê-Lo e tem medo de não O temer, girando um círculo perpétuo de consciência do eu. Toda essa insistência inquieta sobre o eu está muito longe da paz e da liberdade do verdadeiro amor; este ainda está distante; a alma precisa passar por uma temporada de provas e, se fosse subitamente mergulhada num estado de repouso, não saberia servir-se dele.

No terceiro passo, deixando a contemplação tranquila do eu, a alma principia a insistir em Deus e, gradativamente, se esquece de si mesma n'Ele. Ela se repleta d'Ele e deixa de alimentar-se do eu. Nessas condições, a alma não está cega às próprias faltas, nem é indiferente aos próprios erros; tem mais consciência deles do que nunca, e a luz aumentada os mostra de forma mais nítida, mas esse conhecimento do eu provém de Deus e, por conseguinte, não é agitado nem inquieto."

Fénelon

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