Continuemos, então, a nossa exposição sobre a natureza das neuroses. Dizíamos, no último artigo a respeito, que ela se configura como um medo exagerado de que algo nos cause desprazer. Ela surge por vezes quando, intentando alcançar um certo ideal, nos tornamos, a partir daí, excessivamente temerosos com o que pode dar errado, compondo, para tal, inúmeros fantasmas e nos assustando com eles. Notem que o fato de criar estes fantasmas se deve, não a um prazer de se passar a perna em si mesmo, senão ao contrário, a uma busca exagerada e frenética de isentar-se de toda e qualquer ameaça. A pessoa age como se estivesse num ninho, onde respira com dificuldades, e a todo momento fica checando se algum inimigo conseguiu se infiltrar na sua fortaleza. Essa questão da verificação é bastante característica e é o que origina certos hábitos repetitivos, certos rituais obsessivos.
Esse indivíduo, enquanto estiver sendo uma marionete de seus desejos e medos, se verá coibido e privado de exercer seu potencial. É irônico isso: seus medos se levantam numa tentativa de garantir a realização do desejo da pessoa e, no entanto, são eles que sacaneiam tudo. Ela se coloca sob uma redoma que, ao mesmo tempo que tenta cumprir o objetivo de lhe proteger, limita também o seu passo e, obviamente, a sua visão. Enquanto não anda, a sua perspectiva tende a ser sempre a mesma. Assim, parado, a única coisa boa que pode se motivar a fazer é reunir coragem para sair de sua pequena prisão. Agora, notem essa relação: a redoma existe para ele como garantia de segurança e de vida. Sair dela é como expor-se, como desproteger-se; não poderia fazê-lo sem auto-violência. Quando, porém, se decide a arriscar-se, é como se uma luz incidisse sobre este sujeito e o seu coração retomasse um pouco de vida. No ato de abandonar sua casca, ele passa a praticar o preceito evangélico: "quem perder a sua vida, vai ganhá-la" e ainda "o prêmio é dado aos violentos". Eis, portanto, o caminho por onde o sujeito deve trilhar. Essa retomada da vida é um negócio por demais claro. Não é preciso fazer nenhum esforço para, se alcançar este estágio, a pessoa sentir a alegria de uma criança diante de um presente de aniversário. No entanto, a sua soberba é que é lasca: mal sinta a alegria, lá está a pessoa fazendo todo tipo de estratégia para se apossar daquilo, rsrs.. Nós somos uma porcaria mesmo. kkk Continuemos.
Dissemos que estas atitudes covardes se tornam um hábito. O neurótico deverá, portanto, habituar-se a fazer disso - o abandono de si - o seu agir natural, o que não quer dizer que deva ser precipitado. De início, isto pode acontecer, pela falta de tato. Mas é possível perceber, uma vez livre da prisão, a diferença entre as situações que trazem um padrão potencialmente neurótico das outras com as quais o sujeito pode lidar com neutralidade. O objetivo é fazer com que todas as situações sejam tratadas dessa segunda forma.
Porém, retomemos esta questão. O sujeito que renuncia o passo, temeroso de se machucar com qualquer coisa, terá obviamente a sua interpretação das coisas muito limitada. Como tende a descontextualizar o objeto supostamente ameaçador e a considerá-lo com lente de aumento, é óbvio que não estará em condições de, permanecendo do mesmo jeito, elaborar uma estratégia objetiva. Na verdade, o que poderá e deverá fazer é perceber que a sua neurose sempre se dá por meio de suposição, verificação e previsão. Se tal é o caso, o sujeito deve se convencer a, uma vez reconhecido o caráter padrão de seus medos, assumir um absoluto ceticismo quanto a eles. Se toda vez que a pessoa supõe, essa suposição é viciada, então duvide desse negócio, oras. Ainda que seus fantasmas lhe pareçam evidentes, deverá aprender, não sem boas doses de angústias no início, a ficar indiferente e duvidar sempre de si mesmo.
E aqui convém entender o seguinte: como o neurótico está acostumado a fazer todo tipo de previsão com base no que sente no momento atual, supondo que aquela disposição neurótica tende a permanecer, ele não está muito habituado a dar passos sucessivos se não vê, logo nos primeiros, algum resultado. Portanto, se o sujeito por acaso resolve-se a dar uma saída da sua redoma e, ao fazê-lo, não nota de imediato que a sua angústia se foi, tenderá a voltar. Só que as coisas não funcionam assim. Como a neurose causa angústia e cansaço, estes tendem a permanecer durante um tempo, mesmo depois que a pessoa cessou de alimentá-los. É como um rapaz que nunca tenha saído na rua, com medo do barulho dos carros. Na primeira vez que se aventurar, isto não significa que desde o seu primeiro contato com os automóveis ele estará totalmente tranquilo. Este estado de calma só virá com um certo tempo, seja pela constatação de que, na verdade, não há perigo algum, seja porque o sujeito deixou de imaginar situações assustadoras infundadas.
A neurose, portanto, tem essa "inércia", isto é, tende a manter a angústia durante um certo tempo, mesmo quando se optou por não mais ceder às suas ludibriações. No entanto, se o sujeito persevera, antes expondo-se do que escondendo-se, não tardará por sentir uma estranha espécie de paz interior - aqui é que tá a festa do negócio - e o seu ambiente exterior parecerá, de repente, tomado de uma luz mais viva. De repente, o mundo parece um pouco mais amplo e mais belo e se insinua, no fundo da sua alma, um tipo de despreocupação que já era esquecida e que, se perseverar - e há uma certa esperança - será suficiente para que este sujeito, depois de ter sofrido tanto, possa viver com tranquilidade e felicidade. Mal sabe o sujeito que isto é só o início de uma liberdade muito maior. No entanto, é também só o início dos seus combates; atá agora não tinha lutado, mas tão somente dançado a música da própria soberba. Como já o dissemos, é preciso adquirir esse hábito. E muitas vezes a pessoa tenderá a cair, de novo, na própria armadilha.
Porém, se alcançar este primeiro estado de liberdade, este encontro com um raiozinho de sol, a primeira coisa que o neurótico fará é garantir-se desesperadamente de não esquecer o método. E aí, ele fica obcecado pelo caminho que o levou até lá, e, de novo, cai na própria armadilha, porque se fecha, novamente, em si mesmo. O método se torna outra redoma e pode se insinuar na sua alma, posteriormente, o medo de que não seja possível, em algum momento, praticar o que aprendeu. A atitude dele se torna muito semelhante ao que era antes de arriscar-se. Está, de novo, fazendo planos para se defender, e enquanto estiver obcecado pelo método terá, também, os olhos constantemente voltado para os seus medos.
A este respeito, há um preceito muito interessante no zen que diz: "aprenda o método; esqueça o método". É que o neurótico encontrou uma outra segurança e se aferrou como um náufrago que descobriu qualquer suporte que o impedisse de afundar. Porém, daí a voltar à atitude fundamental de soberba é um passo. Terá de aprender, de novo, a abandonar-se. Por isto que é importante, uma vez aprendido e assimilado o método, esquecê-lo, pois a sua constante lembrança implica, também, em manter distintas as ameaças que o próprio indivíduo criara. Não é por aí.
Outra coisa: dissemos que a neurose geralmente se fixa em situações particulares. No entanto, se o indivíduo arma-se de coragem e a enfrenta - ainda não dissemos claramente o modo de enfrentá-la - e resiste também ao "tempo de inércia", a defesa exagerada se desvincula daquela situação que, de repente, já não parece tão ameaçadora e o sujeito se surpreende em ver que está a meio que banalizar os seus antigos medos. Talvez lhe apareça, lá no fundo da alma, um certo medo de voltar a ter medo, e isto o leva a afastar-se daqueles assuntos mesmo assim e, em geral, ele não está ainda pronto para troçar disso tudo. Ele respeita seus medos, quase como se eles fossem conscientes e pudessem se vingar de qualquer atrevimento. Então, lhe é suficiente deixá-los quietos. Não é bom, a seu ver, desafiá-los nem tratar com eles. No fundo de tudo isto, ainda há a estrutura fundamental de garantir-se proteção e isentar-se de qualquer perigo. Ou seja, o sujeito ainda é neurótico; ele apenas começou o processo de libertar-se desses laços. Melhor seria se os partisse todos de uma vez, mas não está ainda capacitado para tal. Todavia, chegar aqui é, já, ver distintamente uma luz clara no fim do túnel. Agora, é só continuar e fazer-se violência de, como diz a Escritura, não desviar-se para a esquerda ou para a direita. Não há que ficar, porém, obcecado com o método, como dissemos. Pode alegrar-se, naturalmente. Deve até fazer isso; na verdade, ele não está ainda para desforrar, mas já pode divertir-se porque, abandonando a lavagem dos seus medos, embora ainda traga sujeira na boca e nas mãos, esse pobrezinho como que tornou a viver.
Uma vez que a neurose se desvincula de uma situação particular, ela não some simplesmente. Fica meio que em suspensão e tenderá a vincular-se a outra situação - podendo ocorrer de voltar à mesma de antes, se o sujeito se emaranha de novo. Aqui há que se lutar utilizando duas coisas: a inteligência e a coragem. Aprenda a se conhecer e, quando perceber que está a descer a ladeira dos seus medos, trave o passo e se esforce para voltar à indiferença com relação àquilo. Lembre-se que todo o processo neurótico inicia-se com suposições. Não desaprenda a duvidar de si mesmo. Nós somos muito bobinhos e basta um lampejo de luz para nos deixar desarmados. A atitude fundamental que o neurótico deve assumir é o oposto de sua soberba, ou seja, uma radical pobreza espiritual. Lembrem-se de Adão que, enquanto era pobre e aceitava que o Paraíso lhe fosse dado por Outro, podia nele permanecer. Porém, a partir do momento que ele quis, por si mesmo, ser a garantia de seus bens, foi expulso, porque se ensoberbeceu. É a mesmíssima coisa aqui.
Se a neurose assume outra situação, embora haja uma distinção natural por ter mudado de "hospedeiro", o padrão de fundo é o mesmo. Se ela foi vencida no seu último disfarce, tenderá a aparecer agora com um pouco menos de força. E, se vencida de novo, tenderá a assumir outras formas, cada vez mais fracas. Isto é um negócio que só dá pra ter a noção exata quando se faz a experiência. Parece-me, porém, que há muitas pessoas que sequer chegam a essa vitória sobre um só de seus medos.
No próximo artigo sobre o tema, tratarei destes medos comparando-os a crianças mimadas, descreverei o modo prático de contrariar esses chatos e abordarei um negócio chamado "teoria da vinculação" que, ao menos para mim, é fundamental para saber passar a perna nesses danados, rsrs..
Pax
Fábio.
2 comentários:
lido.. =)
Muito interessante. Aliás, seu blog é incrível! Me descobri muito lendo suas reflexões. Obrigada!!
Postar um comentário