segunda-feira, 26 de março de 2012

O Zen aplicado à arte da Espada


Eugen Herrigel

Ordenando e resumindo o conteúdo desse tratado, tentarei destacar, com minhas próprias palavras e da maneira mais clara e concisa possível, aquilo que há séculos se entende por arte da espada e o que, segundo a opinião unânime dos grandes mestres, se deve entender ainda hoje.

Em virtude de experiências instrutivas, experimentadas tanto por eles como pelos seus discípulos, os mestres da espada observam que sejam quais forem sua força, sua constituição e espírito combativo, sua coragem e intrepidez, o principiante perde, logo no início do aprendizado, toda a confiança em si mesmo e a sua despreocupada naturalidade. Porém, tão logo toma consciência do perigo que sua vida corre durante os combates, mostra-se capaz de concentrar sua atenção ao máximo, de vigiar o adversário atentamente, de aparar suas estocadas de acordo com as regras, de efetuar assaltos corretos. E no entanto encontra-se numa situação pior do que a anterior, quando golpeava à direita e à esquerda, sem nenhum método, ora a sério, ora brincando, segundo a inspiração do momento e o ardor bélico durante os exercícios.

O espadachim é obrigado, então, a admitir e a se resignar com o fato de que se encontra em condições de inferioridade diante de qualquer outro que seja mais forte, ágil e experimentado, e que estará impiedosamente exposto aos seus golpes certeiros. Para ele, não existe outro caminho que não seja o do exercício incansável, e mesmo o seu mestre não pode lhe aconselhar outra coisa. Assim, o aprendiz se esforça ao máximo para superar seus companheiros e até a si mesmo. Adquire uma fascinante técnica que lhe devolve parte da segurança perdida, e sente-se cada vez mais próximo da tão sonhada meta. O mestre, porém, não pensa o mesmo, e com toda razão Takuan nos adverte que a destreza do aprendiz pode apenas levar a que "seu coração seja arrebatado pela espada".

Por serem as mais apropriadas para o principiante, as primeiras lições não podem ser ministradas de outra maneira, embora o mestre saiba muito bem que elas não conduzem à meta final. É inevitável que o aprendiz, desde que se dedique com afinco e possua uma habilidade inata, se transforme em mestre. Mas por que razão aquele que há muito tempo aprendeu a não se arrebatar durante o ardor da luta, mantendo o sangue-frio e conservando suas forças, preparado que está para um combate de longa duração - e que por isso encontra poucos adversários à altura - pode, durante uma luta, se distrair e ficar paralisado?

Segundo Takuan, isso se deve ao fato de que ele observou o adversário com inquietação, permanecendo atento à sua maneira de manejar a espada, enquanto reflete sobre qual será o melhor modo e o momento mais indicado de atacá-lo. Durante a luta, recorre, enfim, a toda a sua arte e ciência. Assim procedendo, diz Takuan, perde a "presença do coração", e o habitual e decisivo golpe chega tarde, impedindo-o de fazer com que a espada do adversário "volte-se contra quem a empunha". Quanto mais ele fizer para que a superioridade da sua luta dependa da reflexão, da sua experiência e da tática, mais obstáculos ele criará para a livre mobilidade do "agir do coração".

Como é possível corrigir isso? Como se pode espiritualizar a habilidade? Como se converter o domínio soberano da técnica na arte magistral da espada? A resposta é: o discípulo só progredirá se se desprender de toda intenção e do seu próprio eu. Ele tem que atingir um estágio no qual se desprenda não só do adversário, mas de si mesmo. E tem que superar a etapa em que se encontra, deixando-a para trás, sob o risco de fracassar irreversivelmente. Isso não parece tão absurdo como a exigência, no tiro com arco, de se esquecer completamente da meta e da intenção de atingi-la?

Não nos esqueçamos de que a arte do espadachim, cuja essência é descrita por Takuan, provou sua eficácia na realidade de incontáveis combates. O mestre tem a responsabilidade de fazer com que o aluno descubra, não o caminho propriamente dito, mas as vias de acesso a esse caminho, que devem conduzir à meta última. Sua primeira providência será ensinar o discípulo a receber os golpes inesperados, despertando, para isso, os seus reflexos. Numa história deliciosa, D. T. Suzuki descreve o método extremamente original adotado por um mestre para cumprir uma tarefa tão difícil. O aprendiz tem que adquirir um novo sentido, ou melhor, uma nova presença de todos os seus sentidos que lhe permita se esquivar dos golpes do adversário, como se os pressentisse. Uma vez dominada essa arte de se esquivar, não mais terá necessidade de acompanhar atentamente os movimentos de um ou de vários inimigos em conjunto. No momento exato em que vê e pressente o que está por acontecer, já se esquivou dos seus efeitos, sem que haja a "espessura de um cabelo" entre a percepção do perigo e o ato de evitá-lo. É possível que a reação fulminante e imediata possa prescindir de toda observação consciente. Assim, nada impede que o discípulo consiga manter-se independente da intenção consciente, o que lhe será de grande valia.

Muito mais difícil - e realmente decisiva quanto ao resultado - é a etapa seguinte, que consiste em impedir que o aprendiz "reflita" sobre a melhor maneira de atacar o adversário, pois ele não deve nem pensar que o adversário existe e que se trata de uma questão de vida e morte. Não é difícil que o discípulo siga essas instruções, convencido de que para ter sucesso lhe bastará privar-se de observar o adversário e de refletir sobre tudo o que se relacionar com o seu comportamento. Propõe-se seriamente a se controlar, mas, assim fazendo, escapa-lhe o fato de que, concentrando-se em si mesmo, não pode ver-se senão como o lutador que deve abster-se de observar o adversário. Na realidade, ele continua a observá-lo secretamente, pois dele só se desprendeu na aparência.

O mestre deve recorrer aos mais sutis argumentos para convencer o discípulo de que ele nada ganha com essa transferência da atenção, devendo aprender a desprender-se de si mesmo tão decisivamente como de seu adversário e mergulhando na "não-intenção" de maneira radical. Exatamente como ocorre no tiro com arco, esses exercícios exigem uma grande dose de paciência e resignação diante de frequentes resultados infrutíferos, mas uma vez que sejam bem-sucedidos, desaparecerá o último vestígio da intenção e do empenho.

Nesse estado de desprendimento e de não-intencionalidade, surge espontaneamente uma atitude que oferece grande afinidade com a capacidade instintiva de se esquivar, alcançada na etapa anterior. Tal como nela existe uma distância imperceptível entre perceber o perigo e evitá-lo, não existe agora qualquer distância entre o gesto de se esquivar e o de atacar. No momento de evitar o golpe, o combatente já prepara o seu, e antes que o inimigo se dê conta, é atingido por uma estocada certeira e mortífera. Dir-se-á que a espada se maneja a si mesma, e da mesma maneira como se diz no tiro com arco que algo faz pontaria e acerta, também nesse caso o algo substitui o eu, valendo-se da aptidão e habilidade que o espadachim adquiriu como seu esforço consciente. E, também aqui, esse algo designa um poder que não se pode compreender e nem se impor à razão, pois só se revela a quem o haja experimentado.

De acordo com Takuan, a perfeição da arte da espada só é alcançada quando o coração do espadachim não for mais afetado por nenhum pensativo a respeito do "eu" e do "outro", do adversário e da sua espada, da sua própria espada e da sua maneira de usá-la e nem sequer sobre a vida e a morte. Diz Takuan: "Assim, tudo é um vazio: você mesmo, a espada que é brandida e os braços que a manejam. Até a idéia de vazio desaparece. Desse vazio absoluto desabrocha, maravilhosamente, o ato puro."

HERRIGEL, Eugen. A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen. São Paulo: Editora Pensamento, 1997. pp. 81-86.

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