quarta-feira, 24 de dezembro de 2014
terça-feira, 23 de dezembro de 2014
Presente de Natal - Prof. Olavo de Carvalho
Prof. Olavo de Carvalho
Que poderia ser o melhor Natal da sua vida? Aquele em que você percebesse claramente a Presença de Deus. Que é a Presença de Deus? Ela é tantas coisas que todos os livros do mundo não bastariam para descrevê-la. De todas essas coisas, sei somente uma, uminha. Ela pode ser muito modesta no conjunto, mas para mim é a mais importante, justamente porque é a única que conheço com a certeza absoluta de quem viveu a experiência e sabe do que está falando.
Vou tentar resumi-la. Espero que você goste deste presente de Natal.
É o seguinte. Quando você fala com alguém, não joga simplesmente palavras para todo lado, mas as dirige a uma pessoa determinada, da qual você sabe alguma coisa. Falar com Deus não é diferente disso. Você tem de se dirigir a Ele como a uma pessoa determinada, não um anônimo desconhecido que não está em parte alguma.
Você tem de se apegar a algo que você sabe de Deus com certeza, e falar a esse algo como se fosse Deus inteiro. É claro que não é, mas Deus não liga para isso. Quando falamos com seres humanos, é a mesma coisa. Você fala com esta pessoa, neste lugar, num momento determinado do tempo, como se o que estivesse diante de você fosse a pessoa inteira, do nascimento à morte, sabendo que não é, mas que de algum modo o que você diz a esse recorte de pessoa chega à pessoa inteira.
Pois bem, de Deus há uma coisa que sei com certeza, e é por esse canal que falo com Ele.
Na verdade são duas coisas.
A primeira é que Ele me conhece mais do que eu mesmo, e que nada que eu diga de mim para Ele será novidade. Ao contrário: conto um pedacinho da história e Ele me mostra o resto.
Só há um problema: Você quer mesmo saber tanta coisa a seu respeito? Se você não tem a firme disposição de aceitar o seu retrato tal como Deus o mostra, com todas as surpresas agradáveis e desagradáveis que Ele tem para lhe mostrar, Ele não lhe mostrará nada.
Às vezes queremos contar a Deus os nossos pecados, mas como podemos fazê-lo, se é o próprio Espírito Santo quem nos ensina quais são esses pecados? Às vezes pensamos que é um, e na verdade é outro. Uma boa coisa é pedir a Deus que lhe revele seus verdadeiros pecados, para que você os confesse. Nos dias seguintes você vai se lembrar de vários deles, que já tinham se perdido na memória ou que nunca estiveram lá.
Mas é claro que o que estou dizendo não se refere só a pecados. Você pode pedir que Deus lhe mostre quem você é. Só que, se Ele mostrar tudo de uma vez, não caberá no seu círculo de atenção. Portanto, peça que Ele lhe revele, de tudo quanto você é, só aquilo que Ele acha verdadeiramente importante que você saiba na presente etapa da sua vida.
A segunda coisa é essencial para que isso funcione.
Todos nós falamos de nós mesmos usando a palavra “eu”. O eu é o centro agente e consciente que tenta dirigir os nossos atos e pensamentos no meio de uma gigantesca confusão que vem do nosso inconsciente, do meio social, de fragmentos de conversas entreouvidas, da TV, do diabo. Ora, toda essa confusão está em nós, ela é nós de algum modo, mas não é o nosso “eu”. Isso quer dizer que cada um de nós só é um “eu” de maneira parcial e imperfeita. Somos muito imperfeitamente personalizados. Há muitos pedaços em nós que nos são estranhos, que são anônimos. Pedaços de nós que são coisa, e não pessoa.
Os bichos e coisas ao nosso redor não têm um eu. Não podem falar consigo mesmos, viver a vida interior de alguém que se conhece como centro agente, responsável, consciente, ao menos em parte, da sua história e co-autor consciente, espera-se, dos capítulos restantes.
De todos os seres e coisas, só o ser humano tem um “eu”, ainda que incompleto e imperfeito.
Deus, no entanto, tem um Eu completo e perfeito. Ele mesmo, por meio de Moisés, nos ensinou o Seu Nome, e esse nome é “Eu Sou”. Nele não há elementos estranhos, que Ele próprio desconheça. Em Deus não existe alteridade.
Mas se o Eu de Deus é completo e perfeito, e o nosso é parcial, fragmentário e imperfeito, isso quer dizer que só temos um eu por Graça de Deus, porque Ele nos conferiu, na medida das nossas possibilidades, uma capacidade que, a rigor, só Ele possui.
Foi nesse sentido que Paul Claudel, o poeta, disse: “Deus é Aquele que, em mim, é mais eu do que eu mesmo.”
Deus, portanto, não só sabe tudo a seu respeito, mas é d’Ele que vem a capacidade que você tem de falar consigo mesmo (e com Ele), a capacidade de possuir uma “intimidade” que nenhuma coisa ou bicho jamais terá.
Foi por isso que outro poeta, Antonio Machado, disse: “Quem fala consigo espera falar a Deus um dia.”
Um dia? Quando? Você salta da conversa solitária para a conversa com Deus no instante em que toma consciência de que: (a) está falando com Alguém que conhece você melhor que você mesmo; (b) está falando com Alguém que é a própria raiz, a fonte mais íntima da sua capacidade de conhecer-se e de falar consigo mesmo. Alguém que é mais você do que você mesmo. Então você descobre que Ele sempre esteve aí e que a única coisa que separava você d’Ele era o que o separava de você mesmo.
A partir desse instante, o falar consigo mesmo, na oração, é uma abertura para descobertas sem fim e para uma intensificação do seu eu, da sua consciência de si, da sua presença diante de si mesmo, dos outros eus, do mundo e do próprio Deus.
Descubra isto neste Natal e seja feliz.
Fonte: Diário do Comércio
sábado, 15 de novembro de 2014
sábado, 8 de novembro de 2014
quinta-feira, 2 de outubro de 2014
O princípio do prazer e o pensamento
Quando pensamos, porque pensamos o que pensamos? A Psicanálise freudiana trabalha com a idéia de determinismo psíquico, que equivale a dizer que todos os nossos pensamentos são causados por relações que ocorrem numa esfera inconsciente. Isso se daria em conjunção com os eventos externos. Esta combinação geraria o pensamento, ao mesmo tempo que negaria qualquer tipo de liberdade. Será isto verdade? Estaria eu escrevendo estas linhas porque estou obrigado a isso por quaisquer interesses inconscientes que eu tenha e dos quais não me dou conta? Ora, é muito fácil sustentar como prova disso o próprio fato de que eu não o percebo. Seria possível provar qualquer coisa. Por exemplo, eu posso dizer ao leitor que ele tem uma profunda vontade inconsciente de levar uma injeção. E por que ele não percebe? Justamente porque é inconsciente, oras. É um conceito falho e que nega aquilo que sabemos por uma intenção direta: somos livres e podemos decidir o que fazemos, e, também, o que pensamos.
Aqui há um problema. Alguém poderia redarguir e dizer que, embora quisesse, não consegue ficar sem se distrair. Logo, não é verdade que há total liberdade psicológica à moda cartesiana. Antes de entrar neste problema, notemos o seguinte. A consciência tem uma natureza intencional, o que significa dizer que ela sempre se dirige a um objeto, é sempre "consciência de". Antes, porém, de ela se dirigir a uma realidade em particular, é preciso um ato de volição. Por isso, embora seja verdade que a vontade segue a inteligência, também é verdade que a inteligência, no seu caráter intencional, é precedida por um ato de deliberação.
Aristóteles diz, na sua Ética, que todo ato humano, sem exceção, busca a eudaimonia ou felicidade. A felicidade deve ser entendida como a realização de si mesmo. Jesus diz algo parecido: "onde está o teu tesouro, aí estará o teu coração." Coração aqui pode ser entendido como vontade, pensamento, atenção, etc. Se todos os nossos atos visam, então, essa realização do eu, e sendo o pensamento um ato, logo podemos dizer que os nossos pensamentos gravitam em torno dos nossos interesses. Se na própria matriz das nossas ações há essa seleção epicurista feita pelo nosso eu, é óbvio, então, que as nossas distrações seguirão a mesma lógica.
O que é uma distração? É como um pensamento que se insinua por baixo de um outro no qual está atualmente a nossa atenção. O que, contudo, caracteriza a distração não é exatamente o pensamento, mas a atenção que então abandona o seu atual objeto de foco e como que dá uma olhadela no outro. A distração, assim, seria um tipo de salto entre idéias; se este salto é dado numa direção de fuga do assunto atual, dizemos que, então, houve uma desatenção, ou falta de atenção no objeto devido.
Por que, no entanto, há esse movimento centrífugo? Dizíamos que a consciência é intencional, e, portanto, há, antes da atenção, a deliberação sobre a direção da atenção, o que configura um ato. Todo ato visa a felicidade. Logo, as nossas distrações se dão em função de objetos do nosso interesse. Pensemos: para onde vai a nossa mente quando, numa aula, nos distraímos? E por que nos distraímos?
É fácil nos distrairmos quando o objeto visado atualmente não nos causa interesse particular. Outras vezes, ele até nos interessa, mas somente em função do seu fim; o processo pelo qual atingimos aquele fim, ao contrário, nos parece enfadonho, e daí temos o sono ou as distrações. Isso ocorre muito quando estudamos. Ninguém leria uma declaração de amor de forma distraída. Já uma bula de remédio pegada a esmo quase não consegue "cativar" a atenção. Uma dos fatores distrativos é a monotonia. Sabemos que rezar é algo excelente. No entanto, orações como o terço, etc., tendem a nos dar sono tão logo as consideremos como possibilidade.
Quando nos distraímos, a nossa mente vaga por objetos de nosso interesse, através de situações que podemos chamar positivas e negativas. As positivas são quando consideramos diretamente realidades que desejamos: uma namorada, um amigo, uma comida, um divertimento, um passeio, uma viagem, etc. As negativas são quando temos medo de perder alguma coisa: uma doença, uma briga, uma demissão, etc.
Dito isto, devemos considerar de que modo podemos adquirir uma liberdade maior com relação a esse magnetismo imanente à consciência. São João da Cruz condensa seu método na seguinte recomendação: "não queira ter gosto em coisa alguma." Isto é: não considerar mais o atrativo das coisas para fazê-las, nem o desconforto que elas causam para deixar de realizá-las. O nosso intuito deve se concentrar, antes, no dever de fazê-las ou não. Isso, no entanto, se nos revela um tanto difícil, pois nossas considerações se dão já depois da seleção natural operada pela nossa consciência. Além disso, uma vez que é traço inerente de todo ato humano o buscar a felicidade, de que modo podemos ter uma ação que não siga essa lógica?
A orientação para a felicidade, inclinação humana visceral e imparável, é a própria raiz do condicionamento dos nossos atos aos nossos interesses. Onde estiver o nosso tesouro, lá estará o nosso coração, a nossa atenção. No entanto, como sabemos, os nossos atos, embora orientados para a felicidade, podem manifestar-se no sentido oposto. Na perspectiva cristã, os desejos satisfeitos de modo equivocado antes afastam o sujeito da felicidade do que o aproximam, isto é, contrariam, na sua própria efetivação, a sua razão de ser. Isso instaura uma divisão no homem: ele segue tendendo para a felicidade, mas age no sentido oposto, ainda que esta ação nasça daquela disposição. É fácil concluir que em continuar satisfazendo-se, ocorrerá o progressivo distanciamento do fim visado e, como este fim é a causa dos desejos, estes desejos são frustrados no ato mesmo em que são satisfeitos. O único modo de corrigir os atos a fim de que se harmonizem com o princípio é regrando-os através da auto-imposição em direção a um dever, sem levar em consideração o apelo ou a aversão que tal dever exerce sobre a vontade. Esta prática é o que os cristãos chamam de mortificação e que tem como efeito a libertação da vontade das suas inclinações tanáticas ou patológicas. A vontade, livre das suas dependências de estímulos imediatos, recupera-se de sua miopia e cessa de constranger a inteligência que, então, abre-se novamente a dimensões superiores, redimensionando todo o organismo espiritual da pessoa.
É preciso, portanto, vencer o princípio de prazer, que tira a sua razão de ser da orientação transcendente do homem à felicidade ao mesmo tempo em que o afasta desta vocação. Isto significa necessariamente que alguém que vença essas inclinações será uma pessoa menos distraída e com maior capacidade de foco. Ainda que não sejam consideradas as vantagens espirituais em senso estrito, a vitória sobre esta escravidão fundamental de todos nós que é o de buscar somente o que nos agrada favorecerá o próprio indivíduo na sua vida comum.
É preciso, portanto, vencer o princípio de prazer, que tira a sua razão de ser da orientação transcendente do homem à felicidade ao mesmo tempo em que o afasta desta vocação. Isto significa necessariamente que alguém que vença essas inclinações será uma pessoa menos distraída e com maior capacidade de foco. Ainda que não sejam consideradas as vantagens espirituais em senso estrito, a vitória sobre esta escravidão fundamental de todos nós que é o de buscar somente o que nos agrada favorecerá o próprio indivíduo na sua vida comum.
quinta-feira, 25 de setembro de 2014
Educação Moral - Jacques Maritain
O que tem grande importância para a virtude é o amor: porque o obstáculo fundamental à vida moral é o egoísmo e porque a mais profunda aspiração da vida moral é ser libertado de si mesmo, só o amor, porque é dom de si, é capaz de remover esse obstáculo e levar essa aspiração a sua realização. Mas o próprio amor está cercado por nosso central egoísmo e perpetuamente em perigo de se emaranhar nele ou de ser por ele capturado, ou porque esse egoísmo faz daqueles que amamos uma preso de nosso devorador amor próprio, ou porque os engloba no implacável amor próprio do grupo, de maneira a excluir de nosso amor os outros homens. O amor não se dirige a idéias, a abstrações, a possibilidades, mas sim a pessoas vivas. Deus é a única pessoa na qual o amor humano pode se atirar e se estabelecer de modo a abranger também todos os outros seres e libertar-se plenamente do amor egoísta de si mesmo.
O amor tanto o humano como o divino não são matérias de estudo ou ensinamento, pois ele é um dom. O amor de Deus é um dom da natureza e da graça, eis porque é objeto do primeiro mandamento. Como nos poderia ter sido ordenada a prática de um poder que não tivéssemos recebido ou que não podemos antes receber? Não há métodos nem técnicas humanas para se adquirir ou desenvolver a caridade, nem qualquer outra espécie de amor. Há, contudo, uma educação da caridade: educação que é obtida tanto pela provação e sofrimento como pelo auxílio e instrução humanos, daqueles cuja autoridade moral é reconhecida por nossa consciência.
A primeira esfera educacional a ser considerada aqui é a da família. Acaso não é o amor familiar o protótipo de todo amor unindo uma comunidade humana? E o amor fraternal, não é o nome mesmo desse amor do próximo que faz um só com o de Deus? Por mais sérias que sejam as deficiências apresentadas pelo grupo familiar em alguns casos, por graves que sejam as perturbações e desintegração impostas à vida de família pelas condições econômicas e sociais de nossa época, a natureza das coisas não pode ser mudada. E é da natureza das coisas, que a vitalidade e as virtudes do amor se desenvolvam na família, em primeiro lugar. Não só os exemplos dos pais e as regras de conduta que eles inculcam, e a inspiração, como os hábitos religiosos que eles conservam e as lembranças de seus antepassados que transmitem, numa palavra, a obra educativa que realizam diretamente, mas também de maneira mais geral, as experiências e as provações suportadas em comum, os esforços, os sofrimentos, as esperanças, a luta diária da vida familiar, e o amor cotidiano que cresce no meio de palmadas e beijos, tudo isso constitui os instrumentos normais que colaboram na formação da vontade e dos sentimentos da criança.
A sociedade composta dos pais, irmãos e irmãs é a primeira sociedade humana, e o primeiro meio humano, onde consciente ou inconscientemente, ela conhece o amor e no qual recebe seu alimento moral. Aí, os conflitos e as harmonias têm ao mesmo tempo valor educativo. O menino que teve experiência da vida comum com suas irmãs, a menina que viveu com seus irmãos, adquiriram, sem que suspeitem, um avanço moral inestimável e insubstituível no que concerne às relações entre os sexos. E o que mais importa, o amor filial e o fraternal criam no coração da criança esse recanto de ternura e repouso, de cuja lembrança o homem tem tamanha necessidade e para o qual talvez depois de anos de amargura se voltará sempre que despertar nele um desejo natural de bondade e paz.
MARITAIN, Jacques. Rumos da educação. Rio de Janeiro: Agir, 1968. pp.152-154.
quinta-feira, 4 de setembro de 2014
Defesa de Sócrates
"Se me oferecêsseis o perdão nestes termos, minha resposta seria:
"Atenienses, tenho-vos em alta afeição e estima, mas prefiro obedecer aos céus e não a vós; portanto, enquanto eu tiver ânimo e força em mim, não deixarei de buscar a sabedoria ou de exortar-vos a buscar a verdade, apontando-a a qualquer de vós que eu casualmente encontre, com minhas costumeiras palavras: Meu bom amigo, tu és cidadão de Atenas, uma grande cidade, famosa por sua sabedoria e poderio; não te envergonhas de te ocupares tão arduamente da acumulação de riquezas, honrarias e reputação, sem nada dedicares à sabedoria, à verdade e à perfeição de tua alma?
E se ele protestar que não se importa com essas coisas, não o liberarei de imediato, seguindo o meu caminho; vou questioná-lo, examiná-lo e testá-lo, e se me parecer que ele não possui a virtude que pretende ter, vou censurá-lo por ver como inúteis as coisas mais preciosas, e como valiosas as mais indignas. isso farei a qualquer um que encontre, jovem ou velho, cidadão ou estrangeiro, mas especialmente a vós, meus concidadãos, já que sois meu próprio povo. Pois tende a certeza de que tal é o desígnio dos céus; e acredito que a maior dádiva com que a fortuna já contemplou Atenas foi meu engajamento ao serviço dos céus. Pois minha única tarefa é persuadir todos vós, jovens ou velhos, a vos dedicar menos aos vossos corpos e à vossa riqueza, e mais à perfeição de vossas almas, fazendo disto vossa primeira preocupação e vos dizendo que a bondade não provém da riqueza, mas é a bondade que transforma a riqueza ou qualquer outra coisa, em público ou na vida privada, em algo valioso para o homem.
Se, ao afirmar isto, estou corrompendo a juventude, tanto pior; mas, se afirmardes que eu nada mais tenho a dizer, estareis faltando com a verdade. Portanto, atenienses, digo eu concluindo, 'podeis ou não dar ouvidos a Anito; podeis ou não condenar-me; mas não mudarei meu comportamento, mesmo que eu tenha que morrer mil vezes."
Apologia de Sócrates, Platão.
terça-feira, 2 de setembro de 2014
segunda-feira, 1 de setembro de 2014
quinta-feira, 28 de agosto de 2014
segunda-feira, 25 de agosto de 2014
quinta-feira, 21 de agosto de 2014
Reclamações de Sta Teresa D'Avila a Jesus
Certo é que me regalei hoje com o Senhor, e ousei queixar-me de Sua Majestade, dizendo-lhe: "Deus meu! Não basta que me conserveis presa nesta vida miserável, e que por vosso amor eu a aceite submetendo-me a viver onde sou forçada a comer, dormir, ocupar-me de negócios e tratar com todos? Bem sabeis, Senhor meu, que tudo isso é grandíssimo tormento para mim, que, entretanto, suporto-o por amor de vós. São embaraços que me impedem de me regozijar convosco. E será possível que nos poucos momentos que me restam para estar convosco, ainda vos escondais de mim? Como conciliar isto com a vossa misericórdia? Como o pode sofrer o amor que me tendes? Creio, Senhor, que se fora possível esconder-me de vós como vos escondeis de mim, jamais o consentiríeis, pelo amor que me tendes. Mas vós estais comigo e sempre me vedes... Não pode ser assim, Senhor meu, Reconhecei, suplico-vos, que isto é injuriar aquela que tanto vos ama."
Estas e outras coisas aconteceu-me dizer (...) Algumas vezes o amor tanto me desatina, que não sei mais de mim, e é com muita convicção que prorrompo nestas queixas, e o Senhor tudo me permite. Louvado seja tão bom Rei!
Sta Teresa D'Avila, Livro da vida, Cap.37, n.8-9.
sábado, 16 de agosto de 2014
O pecado original foi real - algumas consequências
O pecado original foi real, e, como tal, teve consequências graves e reais, tanto no âmbito espiritual quanto no psicológico e no físico. Ao invés de uma fantasia supersticiosa, o pecado original é condição indispensável para a compreensão do mundo e de nós mesmos.
Vamos olhar quais foram essas consequências.
No nível espiritual, o pecado rompeu a ligação vital entre a alma e Deus, gerando a morte naquela. Era dessa morte que Deus falava quando advertiu Adão para que não comesse da árvore no centro do Éden. No catolicismo, isso é referido como a perda da Graça santificante. A amizade entre Deus e o homem, que era simbolizada pelos passeios à tarde de Deus no jardim, rompeu-se. O homem não pode mais gozar da companhia divina. Frustrou o grande fim da sua existência. De agora em diante, seria uma espécie de morto-vivo, cambaleando no mundo enquanto a morte não o consome de vez.
Na dimensão imanente da alma, as faculdades também sofreram o efeito da rebelião do homem com Deus. Elas desentenderam-se entre si. Com efeito, há três faculdades da alma: inteligência, vontade e sensibilidade. Estas três faculdades, no homem perfeito, obedecem uma hierarquia em que a sensibilidade se submete à vontade e sobre estas reina a inteligência. Com o pecado - que também foi um pecado de Gula, pois Eva viu que a fruta tinha aspecto agradável e a tomou por sua própria vontade, o que caracteriza a violência da Superbia - a sensibilidade, então obedecida como falsa mãe das potências internas, passou a requerer este cargo, e, desde então, os homens vivem sob o jugo dessa rebelde. A inteligência, não tendo exercido o seu papel de confiar em Deus, a suma Verdade, mas deixando-se enganar, perdeu seu brilho e alcance originais, ficou rasteira, compreendendo com dificuldade. A vontade, que sempre a segue e que manteve seu papel, ficou, no entanto, além de conduzida erroneamente pela inteligência míope, enfraquecida nas suas determinações, pois também sofre sob as ordens da sensibilidade, podendo somente com dificuldade vencê-la. Assim, a vontade passou a amar, com pouca força, os objetos rasteiros que a inteligência decaída lhe mostrava, e o homem começou a se apegar às pequenezes materiais ao seu redor, uma vez que todo um universo espiritual lhe foi vedado, e que, mesmo aquilo que estaria ao seu alcance natural, agora lhe parecia oculto devido ao obscurecimento da inteligência. Sob o falso império da sensibilidade, as demais potências só decaíram ainda mais, pois então operam contra a sua verdadeira natureza, obedecendo a uma falsa rainha. Seria preciso muito esforço para que a inteligência e a vontade recuperassem algo de sua vitalidade, o que era possível fazer, mas não totalmente.
Entre corpo e alma, o vínculo enfraqueceu-se, o que ocasionou que esta última deixasse de comunicar ao físico algumas de suas propriedades, quais sejam, a imortalidade, a impassividade, etc. Isto, obviamente, preparou as condições para a morte corporal, quando o organismo físico, sujeito agora à lei da entropia, já não fosse capaz de conter em si a substância espiritual, resultando disso a separação entre corpo e alma.
No campo físico, a passibilidade iniciada permitia ao corpo machucar-se, cansar-se e estar susceptível a mil acidentes. Pelo pecado, entrou a morte no mundo, dirá Paulo.
Queria, ainda, chamar a atenção para uma disposição psicológica que se inaugura no pecado. Na verdade, o pecado não se realiza somente com o ato, mas, antes, com o consentimento e a decisão de fazê-lo. A morte não é efeito do fruto, mas da desobediência. O primeiro efeito, então, é rebelar o sujeito contra a realidade, contra a verdade. Nessa rebeldia, ele ostentará uma falsa autonomia que se reafirma na medida em que enfrenta a Deus. Essa imposição, sendo identificada como um ato de liberdade e, portanto, de auto-completude, faz a auto-estima humana depender daquilo que na verdade a degrada.
Logo após tomarem do fruto e o comerem, notando agora a sua nudez, uma vez que haviam perdido a Graça, e percebendo a proximidade do Senhor, o segundo efeito do pecado é o esconder-se de Deus. Este esquivar-se da presença do Senhor implica um amor desordenado a si, fonte de todas as fugas diante do contínuo chamado divino; Adão queria estar seguro e, para isso, concentrava-se em suas próprias forças e no próprio engenho, que julgava suficientes de escondê-lo da divina presença; ou melhor, sabia que isso não adiantaria, mas, mesmo assim, irracionalmente, levava a tento a intenção, o que indica, de novo, uma rebeldia contra a realidade, contra a verdade. Aqui não somente a ignorância, mas também a mentira se instala no homem.
Flagrado na sua covardia, Adão se isenta da culpa e acusa a mulher que Deus lhe havia dado. Esta, por sua vez, acusa a serpente. Dir-se-ia que os seres humanos, com o pecado, ficam escorregadios. Não se reconhecem culpados, e passam a bola para os outros. Essa renúncia em expôr-se, uma espécie de covardia do enfrentamento e de assumir as responsabilidades dos próprios atos, é o que caracteriza, pelo pecado, a perda do amor, que, por sua vez, implicava em contato.
O que se observa, hoje, é a tendência que as pessoas têm de enfrentarem as outras pelas costas, mas, quando se encontram em suas presenças, minoram as críticas ou até nem as fazem. Respeito humano e falsidade são filhas da covardia. O ser humano, assim, fica tendente à ausência, quando o amor é presença. Esconder-se e culpar os outros, ou seja, uma fundamental falta de sinceridade e honestidade, de verdade consigo mesmo, são as consequências psicológicas do pecado original. Ora, uma pessoa que não é verdadeira está impedida de atos verdadeiros. A dissimulação anula a reconciliação, pois o eu não se coloca, de verdade, em contato com o outro. O pecado fez o homem vestir-se de uma armadura ilusória.
O amor, para existir, necessita ser readquirido a partir de uma disposição corajosa de enfrentamento. Cessar as distâncias e assumir responsavelmente as acusações, sem esquivar-se, sem afastar o rosto, é típico do homem saudável, que não mais se esconde. A covardia é uma doença da alma. O amor é a sua cura. O amor é a condição da reconciliação e perdão. A reconciliação com o outro é precedida pela reconciliação com a realidade, com a verdade. A verdade, sendo anterior ao amor, é precedida, por sua vez, por uma consideração correta de si mesmo. A intenção de ser deus sem Deus deve ser flagrada crua e corajosamente, e, então, deve ser extirpada. É o início da saúde. A graça divina, no entanto, aceita habitar o homem ainda antes de ter-se limpado de sua desonestidade visceral. É a graça quem o auxiliará a limpar as profundezas do seu ser. A graça foi conquistada pela morte, o enfrentamento por excelência, d'Aquele que, diante das ofensas, não afastou o rosto e não tentou se justificar. Jesus é a antítese de Adão decaído. Enquanto este, sendo mero humano, quis ser Deus, Aquele, sendo Deus, fez-se vero homem.
Flagrado na sua covardia, Adão se isenta da culpa e acusa a mulher que Deus lhe havia dado. Esta, por sua vez, acusa a serpente. Dir-se-ia que os seres humanos, com o pecado, ficam escorregadios. Não se reconhecem culpados, e passam a bola para os outros. Essa renúncia em expôr-se, uma espécie de covardia do enfrentamento e de assumir as responsabilidades dos próprios atos, é o que caracteriza, pelo pecado, a perda do amor, que, por sua vez, implicava em contato.
O que se observa, hoje, é a tendência que as pessoas têm de enfrentarem as outras pelas costas, mas, quando se encontram em suas presenças, minoram as críticas ou até nem as fazem. Respeito humano e falsidade são filhas da covardia. O ser humano, assim, fica tendente à ausência, quando o amor é presença. Esconder-se e culpar os outros, ou seja, uma fundamental falta de sinceridade e honestidade, de verdade consigo mesmo, são as consequências psicológicas do pecado original. Ora, uma pessoa que não é verdadeira está impedida de atos verdadeiros. A dissimulação anula a reconciliação, pois o eu não se coloca, de verdade, em contato com o outro. O pecado fez o homem vestir-se de uma armadura ilusória.
O amor, para existir, necessita ser readquirido a partir de uma disposição corajosa de enfrentamento. Cessar as distâncias e assumir responsavelmente as acusações, sem esquivar-se, sem afastar o rosto, é típico do homem saudável, que não mais se esconde. A covardia é uma doença da alma. O amor é a sua cura. O amor é a condição da reconciliação e perdão. A reconciliação com o outro é precedida pela reconciliação com a realidade, com a verdade. A verdade, sendo anterior ao amor, é precedida, por sua vez, por uma consideração correta de si mesmo. A intenção de ser deus sem Deus deve ser flagrada crua e corajosamente, e, então, deve ser extirpada. É o início da saúde. A graça divina, no entanto, aceita habitar o homem ainda antes de ter-se limpado de sua desonestidade visceral. É a graça quem o auxiliará a limpar as profundezas do seu ser. A graça foi conquistada pela morte, o enfrentamento por excelência, d'Aquele que, diante das ofensas, não afastou o rosto e não tentou se justificar. Jesus é a antítese de Adão decaído. Enquanto este, sendo mero humano, quis ser Deus, Aquele, sendo Deus, fez-se vero homem.
sexta-feira, 15 de agosto de 2014
Trecho tirado de "A Cabana" - Expectativa e Responsabilidade
O trecho que vai abaixo é retirado do livro "A Cabana", de William P. Young, que, na mesma medida em que é famoso, é repudiado por católicos. De fato, a sua leitura deve ser feita com bastante atenção, pois há dissonâncias, mesmo, com a doutrina católica. No entanto, muitas das críticas que se divulgam por aí são meras afetações de gente que provavelmente nem leu, ou, se o fez, vestiu-se de pré-conceitos, isto é, já tinha uma idéia pré-concebida da obra bem antes de percorrer-lhe as páginas. Eu li esse livro há pelo menos uns quatro anos, e, na época, causou-me viva impressão. Em todo esse tempo, sempre me lembrava particularmente do trecho que ponho logo abaixo. Peço ao leitor, católico ou não, que se dispa de suas idéias prévias sobre a obra. Estranhe-a no sentido de permitir que ela se mostre. Isso é, antes de tudo, uma atitude de respeito, e é este respeito a pré-condição para qualquer compreensão genuína. "Sei que eu não sei", era a atitude que Sócrates gostava de desenvolver nos seus interlocutores, pois é só aí que o conhecimento torna-se possível. No excerto abaixo, comento vez ou outra naquilo que se distanciar claramente da doutrina católica ou que eu achar conveniente, e o farei entre parênteses e em vermelho. No entanto, não permita que essas desarmonias com a verdade vos impeçam de notar as excelentes intuições que o autor do texto pôs no que segue.
Situando vocês: o protagonista, Mack ou Mackenzie, está numa mesa, junto com as três pessoas da Trindade Santíssima, e as interroga. o Espírito Santo é referido pelo nome de Sarayu. Boa leitura.
***
- Por que vocês nos amam, os humanos? Eu acho... - Percebeu que não havia formulado bem a pergunta. - Acho que o que eu quero perguntar é: por que vocês me amam, quando não tenho nada a oferecer?
- Pense um pouco nisso, Mack - respondeu Jesus. - Você não experimenta uma forte sensação de liberdade ao saber que não pode nos oferecer nada, pelo menos nada capaz de acrescentar ou diminuir o que somos? Isso deve trazer um grande alívio, porque elimina qualquer exigência de comportamento.
- E você ama mais os seus filhos quando eles se comportam bem? - Acrescentou Papai.
- Não. Estou entendendo. - Mack fez uma pausa. - Mas eu me sinto mais realizado porque eles estão na minha vida. E vocês?
- Não - respondeu Papai. - Já somos totalmente realizados em nós mesmos. Vocês estão destinados a viver em comunhão também, já que são feitos à nossa imagem. Assim, sentir isso por seus filhos ou por qualquer coisa que "acrescente" é perfeitamente natural e certo. Lembre-se, Mackenzie, que por natureza eu não sou um ser humano, apesar de termos escolhido estar com você neste fim de semana. Sou verdadeiramente humano em Jesus, mas sou algo totalmente separado em minha natureza. (Aqui o modo de expressão não foi muito feliz. Alguns afirmam que o autor da obra tem uma perspectiva unitarista de Deus, como se as três pessoas fossem, na verdade, uma só. Isso parece ser indicado quando Deus Pai diz que é humano em Jesus. Na verdade, eles são pessoas distintas, ainda que tenham a mesma natureza.)
(...)
- Vocês sabem como me sinto grato por tudo, mas jogaram coisas demais no meu colo neste fim de semana. O que faço quando voltar? Qual é sua expectativa com relação a mim, agora?
Jesus e Papai se viraram para Sarayu, que estava com o garfo cheio de alguma coisa a caminho da boca. Ela pousou-o lentamente de volta no prato e depois respondeu à expressão confusa de Mack.
- Mack - começou ela -, você deve perdoar esses dois. Os humanos têm uma tendência a estruturar a linguagem de acordo com sua independência e com sua necessidade de comportamento. Assim, quando ouço a linguagem sofrer abusos em favor das regras e não ser usada para compartilhar a vida conosco, é difícil permanecer em silêncio.
- Como deve ser - acrescentou Papai.
- Então o que foi exatamente que eu disse? - Perguntou Mack, agora bastante curioso.
- Mack, vá em frente e termine de mastigar. Nós podemos conversar enquanto você come.
Mack percebeu que também estava com o garfo a caminho da boca. Mastigou agradecido o bocado enquanto Sarayu começava a falar. À medida que fazia isso, ela pareceu se alçar da cadeira e tremeluzir com uma dança de tons e cores sutis, enchendo suavemente a sala com uma variedade de aromas.
- Deixe-me responder com uma pergunta. Por que você acha que nós criamos os Dez Mandamentos?
De novo Mack estava com o garfo a meio caminho da boca, mas mesmo assim mastigou o bocado enquanto pensava na resposta.
- Acho, pelo menos foi o que me ensinaram, que é um conjunto de regras que vocês esperavam que os humanos obedecessem para viver com retidão e em estado de graça perante vocês.
- Se isso fosse verdade, e não é - respondeu Sarayu -, quantos você acha que viveram com retidão suficiente para entrar em nossas boas graças? (Dizer que não é verdade é excessivo, pois sabe-se que a graça de Deus está numa pessoa que não cometeu pecado mortal, isto é, que não transgrediu um dos 10 mandamentos. No entanto, isto não significa que cumprir a Lei está ao nosso alcance, e que, portanto, isso reforçaria a auto-suficiência, pois a Graça é a ajuda divina em nós. O autor não é católico, portanto não tem muito saber sobre esse ponto. Mas a sua argumentação seguinte segue válida nas suas intuições. Para esclarecer as relações entre pecado, Lei e graça, leia-se o livro de Romanos, capítulos 7 e 8.)
- Não muitos, se as pessoas são como eu.
- Na verdade, só um conseguiu: Jesus. Ele obedeceu à letra da Lei e realizou completamente o espírito dela. Mas entenda, Mackenzie: para fazer isso, ele teve de confiar totalmente em mim e depender totalmente de mim.
- Então por que vocês nos deram esses mandamentos?
- Na verdade, queríamos que vocês desistissem de tentar ser justos sozinhos. Era um espelho para revelar como o rosto fica imundo quando se vive com independência.
- Mas tenho certeza de que vocês sabem que há muitos que acham que se tornam justos seguindo as regras.
- Mas é possível limpar o rosto com o mesmo espelho que mostra como você está sujo? Não há misericórdia nem graça nas regras, nem mesmo para um erro. Por isso Jesus realizou todas elas por vocês, para que não tivessem mais poder sobre vocês.
Agora ela estava com força total, as feições crescendo e movendo-se.
- Mas tenha em mente que, se você viver sua vida sozinho e de forma independente, a promessa é vazia. Jesus afastou a exigência da lei. Ela não tem mais poder de acusar ou comandar. Jesus é a promessa e o cumprimento.
- Está dizendo que não preciso seguir as regras? - Agora Mack havia parado completamente de comer e estava concentrado na conversa.
- Sim. Em Jesus você não está sob nenhuma lei. Todas as coisas são legítimas. (Por mais que isso possa fazer franzir a testa do leitor, lembremos do que diz Sto Agostinho: "Ama e faze tudo o que queres". Obviamente, isto não significa dizer que todos os crimes e pecados estão, a partir de então, permitidos e liberados. Quer apenas dizer que uma pessoa que ama, ou, segundo o texto, que está em Jesus, agirá de modo correcto naturalmente, sem precisar regrar obsessivamente o seu comportamento.)
- Não pode estar falando sério! - gemeu Mack.
- Criança - interrompeu Papai -, você ainda não ouviu nada.
- Mackenzie - continuou Sarayu - só têm medo da liberdade os que não podem confiar que nós vivemos neles. Tentar manter a lei é na verdade uma declaração de independência, um modo de manter o controle.
- É por isso que gostamos tanto da lei? Para nos dar controle? - perguntou Mack.
- É muito pior do que isso - retomou Sarayu. - Ela dá o poder de julgar os outros e de se sentir superior a eles. Vocês acreditam que estão vivendo num padrão mais elevado do que aqueles a quem vocês julgam. Aplicar regras, sobretudo em suas expressões mais sutis, como responsabilidade e expectativa, é uma tentativa inútil de criar a certeza a partir da incerteza. As regras não podem trazer a liberdade. Elas só têm o poder de acusar.
- Uau! - De repente Mack percebeu o que Sarayu havia dito. - Está dizendo que a responsabilidade e a expectativa são apenas outra forma de regra? Ouvi direito?
- É - exclamou Papai de novo. - Agora chegamos ao ponto: Sarayu, ele é todo seu!
Mack tentou concentrar-se em Sarayu, o que não era uma tarefa simples.
Sarayu sorriu para Papai e de novo para Mack. Começou a falar lenta e decididamente:
- Mackenzie, eu sempre prefiro um verbo a um substantivo. Parou e esperou. Mack não tinha muita certeza de ter entendido.
- Hein?
- Eu - ela abriu as mãos para incluir Jesus e Papai (mais uma vez, atente-se que Deus é unidade de natureza, mas tríade de pessoas) - sou um verbo. Sou o que sou. Serei o que serei. (isso aqui não tem sentido) Sou um verbo! Sou viva, dinâmica, sempre ativa e em movimento. Sou um ser-verbo.
Mack tinha uma expressão vazia no rosto. Entendia as palavras, mas ainda não achava o sentido.
- E, como minha essência é um verbo - continuou ela -, sou mais ligada a verbos do que a substantivos. Verbos como confessar, arrepender-se, viver, amar, responder, crescer, colher, mudar, semear, correr, dançar, cantar e assim por diante. Os humanos, por outro lado, gostam de pegar um verbo vivo e cheio de graça e transformá-lo num substantivo ou num princípio morto que fede a regras. Os substantivos existem porque existe um universo criado e uma realidade física, mas, se o universo for apenas uma massa de substantivos, ele está morto. A não ser "eu sou", não existem verbos e os verbos são o que torna o universo vivo.
- E... - Mack ainda estava lutando, mas pareceu que um brilho de luz começava a iluminar seu pensamento. - E isso significa exatamente o quê?
- Sarayu pareceu não se perturbar com sua falta de entendimento.
- Para que alguma coisa se mova da morte para a vida, você precisa colocar algo vivo e móvel na mistura. Passar de uma coisa que é apenas um substantivo para algo dinâmico e imprevisível, para algo vivo e no tempo presente - um verbo -, é mover-se da lei para a graça. Posso dar alguns exemplos?
- Por favor. Sou todo ouvidos.
Jesus deu um risinho e Mack piscou para ele antes de se voltar para Sarayu. A sombra levíssima de um sorriso atravessou o rosto dela enquanto retomava:
- Então vamos usar suas duas palavras: responsabilidade e expectativa. Antes que suas palavras se tornassem substantivos, eram nomes que continham movimento e experiência: a capacidade de reagir e a prontidão. Minhas palavras são vivas e dinâmicas, cheias de vida e possibilidades. As suas são mortas, cheias de leis, medo e julgamento. Por isso você não encontrará a palavra responsabilidade nas Escrituras.
- Minha nossa! - Mack franziu a testa, começando a perceber onde isso ia dar. - Por outro lado, nós a usamos um bocado.
Ela continuou:
- A religião usa a lei para ganhar força e controlar as pessoas de que precisa para sobreviver. (Essa crítica, obviamente, não se aplica à essência religiosa, mas se aplica a movimentos religiosos que fogem aos princípios) Eu, ao contrário, dou a capacidade de reagir e sua reação é estar livre para amar e servir em todas as situações. Por isso, cada momento é diferente, único e maravilhoso. Como sou capacidade de reagir livremente, tenho de estar presente em vocês. A responsabilidade seria uma tarefa a realizar, uma obrigação a cumprir, algo para vencer ou fracassar.
- Minha nossa, minha nossa - disse Mack outra vez, sem muito entusiasmo.
- Usemos o exemplo da amizade e veremos que remover o elemento de vida de um substantivo pode alterar um relacionamento. Mack, se você e eu somos amigos, há uma prontidão dentro de nosso relacionamento. Quando nos vemos ou quando estamos separados, há a prontidão de estarmos juntos, de rirmos e falarmos. Essa prontidão não tem definição concreta: é viva, dinâmica, e tudo que emerge do fato de estarmos juntos é um dom único que não é compartilhado por mais ninguém. Mas o que acontece se eu mudar "prontidão" por "expectativa", verbalizada ou não? Subitamente a lei entra no nosso relacionamento. Agora você espera que eu aja de um modo que atenda às suas expectativas. Nossa amizade viva se deteriora rapidamente e se torna uma coisa morta, com regras e exigências. Não tem mais a ver com nós dois, mas com o que os amigos devem fazer ou com as responsabilidades de um bom amigo.
- Ou - observou Mack - com as responsabilidades de marido, de pai, empregado ou qualquer outra coisa. Entendi. Prefiro viver na prontidão.
- Eu também - disse Sarayu.
- Mas - argumentou Mack -, se não tivéssemos expectativas e responsabilidades, tudo não iria simplesmente desmoronar?
- Só se você fizer parte do mundo fora de mim, regido pela lei. As responsabilidades e as expectativas são a base para a culpa, a vergonha e o julgamento. Elas fornecem a estrutura que faz do comportamento a base para a identidade e o valor de alguém. Você sabe muito bem como é não atender às expectativas de alguém.
- Sei mesmo! - murmurou Mack. - É uma idéia que me traz tristes lembranças. - Parou brevemente, com um novo pensamento relampejando. - Você está dizendo que não tem expectativas com relação a mim?
Agora Papai falou:
- Querido, eu nunca tive expectativas com relação a você nem a ninguém. A idéia por trás disso exige que alguém não saiba o futuro ou o resultado e esteja tentando controlar o comportamento do outro para chegar ao resultado desejado. Os humanos tentam esse controle principalmente por meio das expectativas. Eu o conheço e sei tudo sobre você. Por que teria uma expectativa diferente daquilo que já sei? Seria idiotice. E, além disso, como não a tenho, vocês nunca me desapontam.
- O quê? Você nunca ficou desapontado comigo? - Mack estava se esforçando bastante pra digerir isso.
- Nunca! - declarou Papai enfaticamente. - O que tenho é uma prontidão constante e viva no nosso relacionamento e lhe dou a capacidade de reagir a qualquer situação e circunstância em que você se encontrar. Se passar a contar com expectativas e responsabilidades, você não me conhece nem confia em mim.
- E pela mesma razão - exclamou Jesus - você vive no medo.
- Mas... - Mack não estava convencido. - Mas você não quer que a gente estabeleça prioridades? Você sabe: Deus primeiro, depois sei lá o quê, seguido por mais não sei o quê?
- O problema de viver segundo prioridades - disse Sarayu - é que se vê tudo como uma hierarquia, uma pirâmide, e você e eu já falamos sobre isso. Se você puser Deus no topo, o que isso realmente significa? Quanto tempo você me dá antes de poder cuidar do resto do seu dia, da parte que lhe interessa muitíssimo mais?
Papai interrompeu de novo.
- Mack, não quero ser o primeiro da sua lista de valores. Quero estar no centro de tudo. Quando vivo em você, podemos viver juntos tudo que acontece com você. Em vez de uma pirâmide, quero ser como centro de um móbile, onde tudo em sua vida - seus amigos, sua família, seu trabalho, os pensamentos, as atividades - esteja ligado a mim, mas se movimente ao vento, para dentro e para fora, para trás e para frente, numa incrível dança do ser.
- E eu - concluiu Sarayu - sou o vento. - Ela deu um sorriso enorme e fez uma reverência.
Houve silêncio enquanto Mack procurava se controlar. Estivera segurando a borda da mesa com as duas mãos, como se quisesse agarrar algo tangível diante daquele tiroteio de idéias e imagens.
- Bom, chega disso - declarou Papai, levantando-se da cadeira. - É hora de diversão! Vocês vão em frente enquanto eu tiro as coisas que podem estragar. Cuido dos pratos mais tarde.
A Cabana, p. 154-160
terça-feira, 12 de agosto de 2014
Sta Teresa D'Avila tenta descrever a luz do Corpo glorioso de Jesus
"Não é brilho que deslumbre. É brancura suave, resplendor infuso que encanta a visa e não cansa. O mesmo digo da claridade em que se vê esta formosura tão divina. É luz tão diferente da que existe na terra, que a claridade do sol nos parece apagada, em comparação daquele fulgor esplêndido que se apresenta à nossa vista. Quem a viu uma vez não desejará mais abrir os olhos. É como contemplar uma água muito límpida que desliza sobre cristal refletindo o sol, e depois olhar outra muito turva correndo em dia de grande nevoeiro por cima da terra. Não é que se veja o sol, nem semelhança de luz solar. Em suma, é luz que mostra ser verdadeira, e a deste mundo é artificial. Luz que não conhece noite. Brilha sempre e nada a pode ofuscar.
Finalmente, é de tal sorte que, por grande inteligência que uma pessoa tivesse, não a poderia imaginar, esforçando-se todos os dias de sua vida. E Deus a apresenta tão subitamente à nossa vista, que nem há tempo para abrir os olhos se fosse preciso abri-los. Tanto faz estarem abertos como fechados, pois, quando o Senhor quer, vemos, ainda que não queiramos. Não há distração que o estorve, nem resistência possível, nem diligência, nem cuidado que o consiga."
Sta Teresa D'Avila, Livro da vida, Cap. 28, n.5.
Usufruir através de prazeres do que Cristo nos ganhou à custa de tanta dor?
"Por que havemos de querer tantos bens, deleites e glórias sem fim, tudo unicamente à custa do bom Jesus? Não choraremos sequer ao menos com as filhas de Jerusalém, pois que não o ajudamos a levar a cruz como o Cirineu? Com prazeres e passatempos havemos de usufruir do que ele nos ganhou à custa de tanto sangue? É impossível. E com honras vãs pensamos reparar um só dos desprezos que ele sofreu a fim de adquirirmos um reino eterno? Não tem cabimento. Errado, este caminho é errado; por ele nunca chegaremos lá."
Sta Teresa D'Avila, Livro da Vida. Cap.27, n.13.
quinta-feira, 26 de junho de 2014
Três modos de olhar
No nosso dia a dia, nas relações que tratamos com as pessoas, sempre as olhamos e, nesse olhar, captamos uma série de informações que fundamentarão o modo como agiremos. Por exemplo: se, numa conversa com um amigo, notamos que ele manifesta expresso desinteresse pelo que estamos a dizer, naturalmente nós cessaremos o assunto e isto nos servirá como bloqueio para futuras conversas. Esta pessoa não constará mais na nossa lista de amigos com quem tratar intimidades, etc. Todos nós fazemos isso. Contudo, sabemos que nem sempre é possível esgotar uma pessoa num primeiro olhar - na verdade, nunca o é -, o que demonstra que uma pessoa é algo complexo, que não se reduz à aparência, mas que possui diversas camadas.
O nosso olhar, então, pode se direcionar a camadas diferentes, e isto por vezes é consequência do nosso nível de maturidade. Há, pelo menos, três camadas fundamentais.
A primeira é a puramente exterior. É aquela que percebemos ao topar com alguém pela primeira vez. Neste caso, de modo pré-racional, surge em nós um movimento de simpatia ou de antipatia. Por ser pré-racional, também costuma ser pré-volitivo, e, às vezes, semi-consciente. Estes movimentos pré-racionais, na verdade, são muito frequentes e estão subjacentes a várias das nossas ações. O que faz, por exemplo, com que terminemos um livro em específico e abandonemos outro pela metade? Não é somente o tema tratado. Por vezes, os dois livros possuem um assunto que nos interessa, mas um deles nos agrada mais. Este "agrado" sensível nos servirá de estímulo para continuar a leitura, enquanto que o outro, por mais que decidamos chegar ao fim, só o faremos à custa de mais esforço. E isto porque, a depender de uma série de fatores pré-racionais, o nosso ser dispõe-se ou não para uma atividade.
Estar fixado na camada puramente exterior é típico dos ingênuos. Ele reduz a pessoa ao que vê: confunde a sua interpretação subjetiva com a realidade mesma do outro. Assim, não consegue distinguir uma pessoa autêntica de um ator. A atenção está fixada no conteúdo das palavras e nos atos explícitos. Uma pessoa assim é facilmente enganada.
A segunda camada é a da pessoa que não fica no conteúdo do que é dito nem na superficialidade das ações, mas que como que adentra por trás dessas coisas. Ele já observa o tom de voz, a expressão facial, os olhares, e as possíveis intenções que motivaram os atos. Se, por um lado, podemos dizer que esta pessoa é mais astuta, pode se dar também o contrário: por causa deste hábito que a maioria de nós tem, não poucas injustiças são cometidas, pois é comum que, também aqui, confundamos a nossa interpretação pessoal, que por vezes não é mais que uma projeção, com a realidade mesma da outra pessoa. Assim, nem um santo poderia passar isento de acusações, pois, como uma pessoa geralmente toma por matéria prima da compreensão dos outros as suas experiências pessoais - sobretudo os seus interesses, medos e invejas - o santo seria tomado facilmente por hipócrita e falso, como alguém que pretende conquistar a simpatia das pessoas, já que isto é o que é comumente buscado pela maioria. Estas projeções impedem a contemplação correta, que é um ato eminentemente passivo e de respeito ao que é, e a substitui pela construção subjetiva da projeção. Este é sempre um risco, e é por isto que Jesus nos proibiu o julgamento de intenção, pois é pretender saber o que está no cerne dos atos alheios. Pronunciar-se sobre os atos é permitido; sobre o que os motiva, não. Ainda assim, é possível ter uma visão correta desta segunda camada, a depender da maturidade pessoal. Vários santos possuíram o dom da introspecção, que é a capacidade de ler as consciências. Diz-se do místico luterano Jacob Boehme que conseguia ler "dentro" das coisas. Mesmo sem chegar a estes extremos sobrenaturais, há pessoas astutas que conseguem facilmente observar essas regiões mais íntimas, seja pela maturidade pessoal de que falávamos - como é o caso do Pe. Brown, personagem literário do Chesterton, que adquiriu um profundo conhecimento da natureza humana por causa da sua prática constante da confissão, o que o ajuda depois a desvendar casos policiais -, seja por uma espécie de agudeza natural do espírito.
A terceira camada, enfim, seria aquela que bem poderíamos chamar de ontológica, pois não reside no conteúdo das operações nem nas suas motivações, mas no ser mesmo da pessoa. Por trás das palavras, há as intenções, e, por trás dessas, há o ser. A verdade da pessoa reside nesta terceira camada, a mais profunda. É comum que as duas camadas anteriores estejam em desacordo com esta; é o que ocorre com os hipócritas e com os que não se conhecem. Nestes casos, a pessoa está impedida de ser ela mesma, e instaura-se-lhe uma divisão interna. Estando o seu foco interior desajustado, não há modo de a sua visão ou os seus atos exprimirem a verdade do que ela é. Naturalmente, estes atos terão um alcance reduzido e a pessoa estará sempre aquém das suas reais possibilidades que sequer terão a oportunidade de despertar. Enxergar este fundo do ser é mais próprio dos santos, daqueles que tiveram o coração purificado. Eles não se deixam enganar por superficialidades, mas também não andam a julgar todos os homens de ambiciosos, avarentos, impuros, etc. Como o seu olhar reside neste último nível, eles percebem que todos os homens são, em si mesmos, bons. Ainda que pequem, o fundo do ser permanece sendo o que é, de modo que não se colocam acima dos demais, embora percebam objetivamente que, nestes outros, falta o estado de consciência desperta. Para alguém que olha deste modo, as dissonâncias internas das outras pessoas não lhe despertam o furor, mas, antes, a compaixão, pois, então, serão vistas como o que de fato são: enfermidades internas, carências pessoais de alguém que precisa de ajuda.
domingo, 22 de junho de 2014
Uma experiência da transfiguração no hesicasmo
- Meu amigo, estamos ambos neste momento no Espírito de Deus [...] Por que não queres olhar para mim?
- Não posso olhar para vós, meu Pai, porque vossos olhos projetam clarões; vosso rosto se tornou mais brilhante que o sol e sinto dor nos olhos em vos olhar.
- Não tenhas medo de nada. Neste momento te tornaste tão claro como eu. Também estás agora na plenitude do Espírito de Deus; de outra maneira, não poderias ver-me como me vês.
E, inclinado para mim, ele me disse baixinho ao ouvido:
- Dá graças ao Senhor Deus por sua bondade infinita para conosco. Como observaste, nem mesmo fiz o sinal da cruz; bastou apenas que eu orasse a Deus em pensamento, no meu coração, dizendo interiormente: Senhor, torna-o digno de ver claramente com seus olhos corporais esta descida de teu Espírito, que proporcionas a teus servos, quando te dignas aparecer-lhes na luz magnífica de tua glória. E como podes ver, meu amigo, o Senhor atendeu imediatamente esta oração do humilde Serafim [...] Como devemos ser reconhecidos a Deus por este dom inefável concedido a nós dois! Mesmo os pais do deserto nem sempre tiveram tais manifestações de sua bondade. É que a graça de Deus - como uma mãe cheia de ternura para com seus filhos - dignou-se consolar vosso coração aflito, pela intercessão da própria Mãe de Deus [...] Por que, então, meu amigo, não queres olhar-me direto na face? Olha francamente, sem medo: o Senhor está conosco [...].
Encorajado com estas palavras, olhei e fui tomado de um terror piedoso. Imaginem vocês a face do homem que lhes fala, no meio do sol, no brilho de seus raios escaldantes do meio-dia. Vocês podem ver o movimento de seus lábios, a expressão mutante de seus olhos, podem ouvir sua voz e sentir suas mãos pousarem sobre os ombros de vocês, mas não vêem nem suas mãos, nem o corpo de seu interlocutor - nada além da luz resplandescente que se propaga longe, a algumas toesas ao redor, iluminando com seu brilho o prado coberto de neve e os flocos brancos que não param de cair [...].
E o Padre Serafim me perguntou:
- O que é que sentes?
- Um bem-estar infinito, respondi.
- Mas que tipo de bem-estar? Em que precisamente?
- Sinto uma tal tranquilidade, uma tal paz na minha alma, que não encontro palavras para me exprimir.
- É, meu amigo, a paz da qual falava o Senhor quando disse a seus discípulos: "Eu vos dou a minha paz"; a paz que o mundo não pode dar [...]; "a paz que ultrapassa toda compreensão". O que sentes ainda?
- Uma alegria infinita no meu coração.
E o Padre Serafim continuou:
- Quando o Espírito de Deus desce sobre o ser humano e o envolve na plenitude de sua presença, então a alma transborda de uma alegria indizível, pois o Espírito Santo cumula de alegria todas as coisas que Ele toca [...] Se as primícias da alegria futura já enchem a nossa alma de uma tal doçura, de uma tal felicidade, que diremos da alegria que espera no Reino celeste todos aqueles que choram aqui na terra? Também tu, meu amigo, também tu choraste no curso de nossa vida terrestre, mas verás a alegria que o Senhor te envia para te consolar desde aqui na terra.
Então esta alegria que sentimos neste momento, parcial e breve, aparecerá em toda a sua plenitude, cumulando nosso ser de delícias inefáveis que ninguém poderá arrebatar-nos.
Colóquios de São Serafim In: Escritos sobre o hesicasmo, uma tradição contemplativa esquecida. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 2011. p.116-118.
domingo, 11 de maio de 2014
sábado, 10 de maio de 2014
Kierkegaard e Regine
Durante dois anos [Kierkegaard] estudou para valer, vivendo uma vida absolutamente cristã. Nesse período conheceu uma adolescente de boa família, Regine Olsen. Embora a garota tivesse dez anos menos que ele, Kierkegaard afeiçoou-se profundamente a ela. Cortejou-a na maneira formal da época, enviando-lhe livros e lendo para ela, escoltando-a de braço dado pela Esplanada nas tardes de domingo. Regine ficou deslumbrada com seu rico pretendente, cujo brilhantismo e graças sociais eram temperados por um toque de sedutora melancolia. A afeição de Kierkegaard era igualmente profunda mas inteiramente espiritual.
Na sua inocência, Regine dificilmente percebia isso: tal comportamento era considerado bastante normal na sociedade dinamarquesa decente. O lado físico de qualquer relacionamento vinha depois — e ai do pretendente que pensasse de outro modo. Apesar da sua ingenuidade, logo ficou claro para Regine que ela havia se apaixonado por um jovem nada comum.
Kierkegaard era meticuloso com os livros que lhe dava. Insistia em discutir de forma completa as idéias neles contidas, instruindo-a sobre a maneira correta de interpretá-las. Parecia que Kierkegaard queria dominar a jovem de 17 anos de modo tão completo quanto seu pai o dominara. Mas Kierkegaard não era feito da mesma obstinação do pai. Algo nele percebia que isso era errado, que toda a situação era um erro. Mas ainda a amava. Às vezes parava de ler para ela e Regine notava que ele chorava em silêncio. O mesmo ocorria quando, vez ou outra, ela tocava piano para ele. Como Regine observou, “Kierkegaard sofria medonhamente de melancolia” — o que se revelaria, além de tocante, tragicamente profético.
Quando Kierkegaard passou nos exames universitários, ficaram noivos e ele começou sua formação para tornar-se pastor. Uma vida normal acenava para ele. Mas Kierkegaard era incapaz de uma vida normal — e sabia disso. Espiritualmente, psicologicamente, emocionalmente, fisicamente — em quase todos os níveis uma vida assim lhe era impossível. Mas o impossível havia acontecido: ele se apaixonara. Regine tornara-se bem mais que a protegida espiritual que ele havia pretendido. Ao mesmo tempo Kierkegaard sentia-se atraído por uma vida além do normal, uma vida “mais elevada”. Mas ainda não sabia plenamente que vida era essa. Tudo o que sabia era que desejava dedicar-se a escrever, à filosofia, a Deus. E por isso sentia instintivamente que era necessário sacrificar tudo o mais.
Dois dias após ficar noivo, percebeu que tinha cometido um erro. Tentou romper o noivado da forma mais gentil possível, mas Regine não compreendeu. Ele lhe devolveu seu anel. Ela continuou sem compreender. (Regine sabia que ele a amava.) Seguiu-se uma tragicomédia, que perturbaria Kierkegaard até o fim da vida. Durante anos ele analisaria, fantasiaria, sofrendo desilusões e dissecando suas reações com uma honestidade de partir o coração. Quanto mais se preocupava com o assunto, mais profundos ficavam seus pensamentos.
Depois que Kierkegaard finalmente rompeu o noivado com Regine, fugiu para Berlim. Ficaria um ano lá.
(...)
Aos 30 anos de idade, Kierkegaard dedicava sua vida quase inteiramente a escrever. Não via mais os velhos colegas e levava uma existência solitária. Só saía para longas caminhadas pelas ruas de Copenhague, onde sua aparência cada vez mais excêntrica chamava a atenção. Figura magra e recurvada, usava um chapéu alto e calças apertadas com uma perna sempre mais curta que a outra. Aparentando ser mais velho do que era, já passava por um homem de meia idade. Ocasionalmente parava e conversava com criancinhas. Dava-lhes pequenos presentes e elas cautelosamente se deliciavam com o humor travesso daquele estranho e jovem velhinho.
Nos fins de semana Kierkegaard alugava um coche e passeava pelos jardins da cidade ou ia até o campo. Permaneceu cônscio do seu status como filho de um dos comerciantes mais ricos da cidade. Mas a família Olsen tinha ficado ultrajada com o seu comportamento em relação a Regine e o resultado foi que a sociedade educada o colocou no ostracismo.
Nos domingos ia à igreja. Entre os outros membros da congregação muitas vezes via Regine. E ela o notava. Não se falavam, mas estavam bem cientes da presença um do outro. Embora a tivesse ferido gravemente (e mais ainda a ele mesmo), permanecia um laço oculto entre eles. Com todo o seu auto-exame psicológico e sua honestidade, Kierkegaard continuava curiosamente propenso à ilusão. Não conseguia evitar a esperança de que algum dia, de alguma forma, ele e Regine se uniriam de novo, presumivelmente em algum tipo de laço espiritual. Embora soubesse que era impossível, não podia impedir-se de desejar o impossível. A análise que fazia da relação deles continuava a ser uma preocupação constante. E isso apenas contribuía para seu
autoconhecimento cada vez mais profundo. Tornou-se por demais consciente dos infindáveis subterfúgios que a mente emprega consigo mesma. O que havia começado como um fiasco extremamente pessoal da inadaptação levou-o a ver as inadequações universais da natureza humana.
(...)
Em 1844 Kierkegaard concluiu O conceito de angústia e também um livrinho intitulado Migalhas filosóficas. A este acrescentou extenso Pós-escrito conclusivo não científico: Composição mímico-patético-dialética, uma contribuição existencial (sob o pseudônimo de Johannes Climacus mas “publicado por S. Kierkegaard”). Aí aparece pela primeira vez a palavra existencialista — na sua forma dinamarquesa Existensforhold (“condição de existência, relação existencial”). Kierkegaard a essa altura já tinha escrito mais de um milhão de palavras em cinco anos e não era de espantai que se sentisse perdido sobre o que dizer.
Assim, mantendo a sua filosofia, ele decidiu agir — criar a si mesmo fazendo uma opção importante. Sua decisão de agir foi caracteristicamente perversa. Algumas de suas obras publicadas sob pseudônimo receberam críticas razoavelmente favoráveis na revista Corsair. Era a folha satírica e escandalosa de Copenhague, famosa pelos ataques e vitupérios contra personalidades locais. Kierkegaard optou então por instigar a Corsair a atacá-lo, publicando uma carta maldosa contra a revista (“é um insulto ser elogiado em tal publicação”) e revelando a identidade dos seus editores anônimos (o que fez um deles perder a oportunidade de um cargo no magistério).
O resultado era previsível. Por vários meses, todas as edições de Corsair trouxeram ataques a Kierkegaard e seus pseudônimos. Sua aparência foi caricaturada, suas roupas ridicularizadas e suas idéias viraram motivo de zombaria. Antes, Kierkegaard era notado como uma figura estranha, um escritor e intelectual talentoso que fora “acometido de religião” e se tornara um recluso depois de um amor infeliz. Nas ruas era visto como uma curiosidade, mas pouca atenção despertava em geral. Agora tudo isso mudara. Em função da série de artigos e desenhos na Corsair, o homenzinho magro, curvado e envelhecido, com seu andar de caranguejo, suas calças com pernas de tamanho desigual e seu grande guarda-chuva, tornou-se objeto da chacota pública.
Nas ruas, crianças e rapazolas passavam correndo por ele, fazendo zombarias. Lojistas e membros respeitáveis da sociedade riam abertamente quando ele passava.
Kierkegaard era uma personalidade sensível e seus sofrimentos com esse tratamento podem ser imaginados. Mas a questão é que ele mesmo atraíra tudo isso. Ele sabia exatamente o que estava fazendo. (“Aluga-se a Corsair para abusar, assim como se aluga um tocador de realejo para fazer música.”) Então por que ele o fez? Como seria de esperar em se tratando de uma personalidade tão complexa, a resposta não é nada simples. Não há dúvida de que era uma manifestação do mesmo complexo de mártir que o levara a espicaçar os colegas mais velhos na escola. Não há dúvida também de que o desprezo público por sua obra tinha algo a ver com isso. Kierkegaard tinha agora 33 anos de idade e ainda mal era conhecido como escritor. Assim, se não podia ser famoso, ficaria notório.
Por trás dessa dubiedade e egoísmo, Kierkegaard tinha também um propósito mais sério e sincero (embora não desprovido de egoísmo e dubiedade). Queria ser ultrajado pelos concidadãos para se tornar um homem melhor. Usava-os para tornar-se um cristão melhor. Se queria viver a vida do espírito, a única que valia a pena, essa era uma maneira de se estimular. (Se suas aspirações menores de antes foram em parte inconscientes, essa certamente não o era.) E naturalmente havia uma razão subjacente a todas elas. Nas palavras do único contemporâneo de Kierkegaard que a ele se compara como pensador religioso (Pascal), “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. A razão que se escondia no coração de Kierkegaard era Regine. Ele desejava chamar sua atenção, mostrar-lhe como estava sofrendo.
Mas se sua intenção era cativar Regine, ele evidentemente fracassou. Nessa época ela ficou noiva de outro homem e um ano depois se casava. Isso feriu profundamente Kierkegaard, embora não o demonstrasse. O que deixava ver era o prematuro envelhecimento em suas feições encarquilhadas. Os anos de sofrimento intenso, ascetismo, isolamento e constante esforço mental começavam a cobrar seu tributo. Mas, apesar de todo o seu discernimento cada vez mais profundo da condição humana, ainda apegava-se à sua impossível ilusão, sonhando que um dia se uniria de alguma forma a Regine. (Aos domingos ainda se viam na igreja.) Em abril de 1848 Kierkegaard teve uma experiência religiosa. “Toda a minha natureza mudou”, escreveu no diário.
Percebeu que apenas seu amor por Deus poderia protegê-lo da preocupação excessiva consigo mesmo. Daí em diante passaria a escrever diretamente a palavra de Deus, não mais se escondendo por trás de pseudônimos. Fez isso numa outra série de livros, meia dúzia de obras nos três anos seguintes. A visão religiosa de Kierkegaard é totalmente louca, adequada apenas a santos e misantropos dedicados. Na sua opinião, “toda a existência humana opõe-se a Deus”. No centro da religião de Kierkegaard (como também no coração da sua psicologia) está a noção da Queda — a perda da graça do Jardim do Éden pela humanidade. Essa queda foi o egoísmo, cuja principal manifestação era o sexo. Como sempre, tudo culpa das mulheres, que ganham com a experiência imagem bem negativa. “As mulheres são o egoísmo personificado... Toda a história do homem e da mulher é uma enorme intriga construída sutilmente ou um truque calculado para destruir o homem como espírito.” A única resposta é o celibato — em escala universal. A vontade de Deus só será cumprida quando toda a raça humana se extinguir.
(...)
Kierkegaard decidiu que era hora de expor a charada do cristianismo tal como era pregada pela Igreja da Dinamarca. Apesar da escassez de recursos, lançou uma revista intitulada O Momento (editor e único colaborador: S. Kierkegaard). Nela atacava a Igreja como “uma máquina”, castigando um dos seus amados bispos como um hipócrita mundano. (Para piorar as coisas, era também hegeliano.) Numa edição chegou a sugerir que se descobrissem que Cristo não existiu, a Igreja continuaria exatamente como antes e poucos pastores renunciariam a suas vidas de conforto.
Como era de esperar, isso causou grande escândalo. Não havia agora nenhuma chance de Kierkegaard perder sua liberdade: um emprego de pastor estava fora de questão. Sob vários aspectos, foi a repetição do incidente com a Corsair. Mais uma vez Kierkegaard alcançava a fama e atraía a atenção geral (seus artigos logo foram traduzidos em sueco e a controvérsia se espalhou pela Escandinávia). O mundo lhe dava o que ele achava (consciente ou inconscientemente) que lhe era devido. Mas era a fama da única maneira que Kierkegaard podia aceitar — notoriedade e execração. Ao mesmo tempo, não é difícil ver aqui um eco do jovem Kierkegaard pai amaldiçoando a Deus numa colina da Jutlândia. E, claro, o episódio trouxe-o novamente à atenção de Regine.
O marido de Regine fora recentemente nomeado governador das Índias Ocidentais dinamarquesas (três ilhotas caribenhas). Kierkegaard quase certamente soube disso; até que ponto esse fato desencadeou o lançamento de O Momento é algo que só se pode especular. Em abril de 1855, na manhã em que zarpava para as Antilhas, Regine deu um jeito de encontrar Kierkegaard na rua. Parou então e lhe disse calmamente: “Deus o abençoe. Que as coisas saiam bem para você.” Kierkegaard ergueu o chapéu, “trocando saudações gentilmente”, e cada um seguiu o seu caminho. Foi a primeira vez que se falaram depois de rompido o noivado, quatorze anos antes. E seria a última vez em que poriam os olhos um no outro.
Uma fraqueza crescente, combinada com o estresse da sua campanha contra a Igreja, logo cobrou tributo à saúde de Kierkegaard. Sete meses depois da partida de Regine para as Índias Ocidentais, ele sofreu um colapso na rua e foi levado para o hospital. Usou o que restava do seu dinheiro para pagar a impressão do número seguinte de O Momento. Fraco e em desespero (estado cuja topografia conhecia tão detalhadamente), perdeu a vontade de viver. Mas nunca perdeu a fé. Os que o viam reparavam o olhar radiante que dava vida a seu rosto emaciado e o seu ar de serenidade. Morreu em um mês, em 11 de novembro de 1855. Deixou em testamento seus poucos bens para Regine.
Paul Strathern, Kierkegaard em 90 minutos
quinta-feira, 3 de abril de 2014
Crítica à democracia - o caos social
René Guénon
O argumento mais decisivo contra a democracia resume-se em poucas palavras: o superior não pode emanar do inferior, porque o "mais" não pode sair do "menos"; isto é de um rigor matemático absoluto, contra o qual nada poderia prevalecer. Importa notar que é precisamente o mesmo argumento que, aplicado numa outra ordem, vale também contra o materialismo; nada há de fortuito nesta concordância e as duas coisas são muito mais estreitamente solidárias do que poderia parecer à primeira vista. É demasiado evidente que o povo não pode conferir um poder que ele próprio não possui; o verdadeiro poder só pode vir do alto, e é por isso, diga-se de passagem, que só pode ser legitimado pela sanção de qualquer coisa de superior à ordem social, ou seja, uma autoridade espiritual; se for de outra maneira, será apenas uma contrafacção de poder, e em que não pode haver senão desordem e confusão. Esta inversão de toda a hierarquia começa no momento em que o poder temporal se quer tornar independente da autoridade espiritual e, a seguir, subordiná-la, pretendendo que sirva fins políticos; há uma primeira usurpação que abre caminho a todas as outras, e poder-se-ia, assim, mostrar que, por exemplo, a realeza francesa, desde o séc. XIV, trabalhou ela própria, inconscientemente, na preparação da Revolução que a devia derrubar. (...)
Se se define a democracia como o governo do povo para si mesmo, trata-se de uma verdadeira impossibilidade, uma coisa que nem mesmo pode ter simples existência de facto, e não mais na nossa época do que em qualquer outra; não nos devemos deixar enganar pelas palavras e é contraditório admitir que os mesmos homens possam ser simultaneamente governantes e governados, visto que, para utilizar a linguagem aristotélica, um mesmo ser não pode ser "em ato" e "em potência" ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Há uma relação que supõe necessariamente dois termos em presença; não poderia haver governados se não houvesse também governantes, fossem eles ilegítimos e sem outro direito ao poder que aquele que atribuíram a si mesmos; mas a grande habilidade dos dirigentes, no Mundo Moderno, é a de fazer crer ao povo que ele se governa a si próprio; e o povo deixa-se persuadir de boa vontade, tanto mais quanto é nisso lisonjeado e que, aliás, é incapaz de reflectir bastante para ver o que há aí de impossível. Foi para criar essa ilusão que se inventou o "sufrágio universal": é a opinião da maioria que é suposto fazer lei; mas do que se não apercebem é que a opinião é qualquer coisa que se pode facilmente dirigir e modificar; pode-se sempre, com o auxílio de sugestões apropriadas, provocar nela correntes dirigidas neste ou naquele sentido determinado; não sabemos já quem falou em "fabricar a opinião" e esta expressão é completamente justa, embora se deva dizer, aliás, que não são sempre os dirigentes visíveis que têm realmente à sua disposição os meios necessários para obter este resultado. Esta última observação dá-nos certamente a razão pela qual a incompetência dos políticos mais destacados parece ter apenas uma importância muito relativa; mas como não se trata aqui de desmontar as engrenagens do que se poderia chamar a "máquina governativa", limitar-nos-emos a assinalar que essa mesma incompetência oferece a vantagem de manter a ilusão de que acabamos de falar: é somente nestas condições, efectivamente, que os políticos em questão podem aparecer como a emanação da maioria, sendo assim feitos à sua imagem, porque a maioria, seja qual for o assunto acerca do qual for chamada a dar a sua opinião, é sempre constituída pelos incompetentes, cujo número é incomparavelmente maior do que o dos homens que são capazes de se pronunciar com perfeito conhecimento de causa.
Isto leva-nos imediatamente a dizer em que é a idéia segundo a qual a maioria deve fazer a lei é essencialmente errônea, porque mesmo se essa idéia, pela força das coisas, é sobretudo teórica e não pode corresponder a uma realidade efectiva, resta, no entanto, explicar como é que ela se pôde implantar no espírito moderno, quais são as tendências deste às quais ela corresponde e que ela satisfaz, pelo menos aparentemente. O defeito mais visível é exactamente aquele que indicávamos há instantes: a opinião da maioria só pode ser a expressão da incompetência, quer esta resulte, aliás, da falta de inteligência, ou da ignorância pura e simples; poder-se-ia fazer intervir, a este respeito, certas observações de "psicologia coletiva" e lembrar nomeadamente esse facto, bastante conhecido, que numa multidão o conjunto das reações mentais que se produzem entre os indivíduos que a compõem leva à formação de uma espécie de resultante que está, nem sequer ao nível da média, mas ao dos elementos mais inferiores. Haveria aqui lugar para fazer notar, por outro lado, como certos filósofos modernos quiseram transportar para a ordem intelectual a teoria "democrática" que faz prevalecer a opinião da maioria, fazendo do que chamam o "consenso universal" um pretenso "critério da verdade": supondo mesmo que haja efectivamente uma questão acerca da qual todos os homens estejam de acordo, esse acordo não provaria nada em si mesmo; mas, além disso, se essa unanimidade existisse realmente, o que é tanto mais duvidoso quanto há sempre muitos homens que não têm nenhuma opinião sobre qualquer questão e que nunca a puseram, seria em todo o caso impossível verificá-la de facto, pelo que, o que se invoca a favor de uma opinião e como sinal da sua verdade, reduz-se a ser apenas o consentimento do maior número e ainda restringindo-se a um domínio aparece ainda mais claramente que a teoria carece de bases, porque é mais fácil subtrair-se à influência do sentimento que, pelo contrário, entra em jogo quase inevitavelmente quanto se trata do domínio político, e é esta influência que um dos principais obstáculos à compreensão de certas coisas, mesmo entre aqueles que teriam capacidade intelectual largamente suficiente para alcançar sem dificuldade essa compreensão; os impulsos emotivos impedem a reflexão e é uma das mais vulgares habilidades da política a que consiste em tirar partido dessa incompatibilidade.
Mas vamos mais ao fundo da questão: o que é exactamente essa lei do maior número que invocam os governos modernos e de que pretendem extrair a sua única justificação? É simplesmente a lei da matéria e da força bruta, a lei em virtude da qual uma massa, arrastada pelo seu peso, esmaga tudo o que se encontra no seu caminho; é aí que se encontra precisamente o ponto de junção entre a concepção "democrática" e o "materialismo", e é também o que faz que essa messa concepção esteja tão estreitamente ligada à mentalidade actual.
É a inversão completa da ordem normal, visto que é a proclamação da supremacia da multiplicidade como tal, supremacia que, de facto, só existe no mundo material; pelo contrário no mundo espiritual e, mais simplesmente ainda na ordem universal, é a unidade que está no cimo da hierarquia, porque é ela o princípio de onde parte toda a multiplicidade; mas quando o princípio é negado ou perdido de vista, só resta a multiplicidade pura, que se identifica com a própria matéria. Por outro lado, a alusão que acabamos de fazer à gravidade dos corpos implica mais do que uma simples comparação, porque a gravidade representa efectivamente, no domínio das forças físicas, no sentido mais vulgar desta palavra, a tendência descendente e compressiva, que traz para o ser uma limitação cada vez mais estreita, e que vai, ao mesmo tempo, no sentido da multiplicidade, representada aqui por uma densidade cada vez maior; e essa tendência é realmente a que marca a direcção segundo a qual a actividade humana se desenvolveu desde o começo da época moderna. Além disso, é caso para notar que a matéria, pelo seu poder de divisão e de limitação, sumultaneamente, é o que a doutrina escolástica chama o "princípio de individuação" e isso luga as considerações que expomos agora ao que dissemos anteriormente a respeito do individualismo: essa mesma tendência a que acaba de se fazer referência é também, poder-se-ia dizer, a tendência "individualizante", aquela segundo a qual se efectua o que a tradição judaico-cristã designa como a "queda" dos seres que se separam da unidade. A multiplicidade vista fora do seu princípio, e que, desse modo, não pode mais ser remetida à unidade, é, na ordem social, a colectividade concebida como sendo simplesmente a soma aritmética dos indivíduos que a compõem e que não é, com efeito, senão isso mesmo desde que não se encontra ligada a qualquer princípio superior aos indivíduos; e a lei da colectividade, sob este aspecto, é bem essa lei do maior número sobre a qual se funda a idéia "democrática".
Nesta altura devemos parar um instante para dissipar uma confusão possível: falando do individualismo moderno consideramos quase exclusivamente as suas manifestações na ordem intelectual: poder-se-ia crer que, pelo que respeita à ordem social, o caso é diferente. Com efeito, se se tomasse esta palavra "individualismo" na sua acepção mais estreita, poderia ser-se tentado a opor a colectividade ao indivíduo e a pensar que factos tais como o do papel cada vez mais invasor do Estado e o da complexidade crescente das instituições sociais, são a marca de uma tendência contrária ao individualismo. Na realidade não é assim, porque a colectividade, não sendo outra coisa senão a soma dos indivíduos, não pode ser oposta a estes, aliás como o próprio Estado concebido à maneira moderna, ou seja, como simples representação da massa, onde não se reflecte qualquer princípio superior; ora é precisamente na negação de todo o princípio supra-individual que consiste verdadeiramente o individualismo tal como o definimos. Portanto, se há no domínio social conflitos entre diversas tendências todas elas pertencentes igualmente ao espírito moderno, estes conflitos não existem entre o individualismo e qualquer outra coisa, , mas simplesmente entre as múltiplas variedades de que o próprio individualismo é susceptível; e é fácil de se dar conta que, na falta de todo o princípio capaz de unificar realmente a multiplicidade, tais conflitos devem ser mais numerosos e mais graves na nossa época do que jamais o foram, porque quem diz individualismo diz necessariamente divisão; e essa divisão, com o estado caótico que origina, é a consequência fatal de uma civilização totalmente material, visto que é a própria matéria que é a raiz da divisão e da multiplicidade.
Disto isto, devemos ainda insistir numa consequência imediata da ideia "democrática", que é a negação da elite entendida na sua única acepção legítima; não é propriamente "por acaso" que "democracia" se opõe a "aristocracia", esta última palavra designando precisamente, pelo menos quando é tomada no seu sentido etimológico, o poder da elite. Esta, de qualquer modo, por definição não pode ser senão o pequeno número, e o seu poder, ou antes, a sua autoridade, que vem apenas da sua superioridade intelectual, nada tem de comum com a força numérica sobre a qual repousa a "democracia", cujo carácter essencial é o de sacrificar a minoria à maioria, e também por isso mesmo, como dizíamos mais acima, a qualidade à quantidade, e, portanto, a elite à massa. Assim, o papel director de uma verdadeira elite e a sua própria existência, porque ela desempenha forçosamente este papel desde que exista, são radicalmente incompatíveis com a "democracia", que está inteiramente ligada à concepção "igualitária", quer dizer, à negação de toda a hierarquia: o próprio fundo da idéia "democrática" é o de que qualquer indivíduo vale tanto como outro porque são iguais numericamente, e embora só o possam ser numericamente. Uma autêntica elite, já o dissemos, só pode ser intelectual; é por isso que a "democracia" apenas se pode instaurar onde a pura intelectualidade já não existe, o que é efectivamente o caso do Mundo Moderno. Somente, como a igualdade é impossível de facto, e como não se podem suprimir praticamente todas as diferenças entre os homens, apesar de todos os esforços de nivelamento, chega-se, por um curioso ilogismo, ao ponto de inventar falsas elites, aliás, múltiplas, que pretendem substituir-se à única elite real; e estas falsas elites são baseadas na consideração de quaisquer superioridades, eminentemente relativas e contingentes, e sempre de ordem puramente material. Podemo-nos aperceber facilmente disto notando que a distinção social que mais conta no actual estado de coisas é a que se baseia na fortuna, isto é, sobre uma superioridade toda ela exterior e de ordem exclusivamente quantitativa, a única, em suma, que é conciliável com a "democracia", porque procede do mesmo ponto de vista. Acrescentaremos, de resto, que aqueles mesmos que se colocam actualmente como adversários deste estado de coisas, não fazendo intervir qualquer princípio de ordem superior, são incapazes de remediar eficazmente uma tal desordem, se é que não se arriscam mesmo e agravá-la ainda, indo sempre mais longe no mesmo sentido; a luta é apenas travada entre variedades da "democracia", acentuando mais ou menos a tendência "igualitária", que se encontra, tal como dissemos, entre as variedades do individualismo, o que aliás, vem dar exactamente ao mesmo.
Estas curtas reflexões parecem-nos suficientes para caracterizar o estado social do mundo contemporâneo, e para mostrar, ao mesmo tempo, que neste domínio, como em todos os outros, não pode haver senão um único meio de sair do caos: a restauração da intelectualidade e, por consequêcia, a reconstituição de uma elite que actuamente deve ser encarada como inexistente no Ocidente, porque não se pode dar este nome a alguns elementos isolados e sem coesão que representam apenas, de certo modo, possibilidades não desenvolvidas. Com efeito, estes elementos, em geral, têm apenas tendências ou aspirações, que os levam sem dúvida a reagir contra o espírito moderno, mas sem que a sua influência se possa exercer de maneira efectiva; o que lhes falta é o verdadeiro conhecimento, são os dados tradicionais que não se improvisam, e aos quais uma inteligência entregue a si própria, sobretudo em circunstâncias tão desfavoráveis em todos os aspectos, não se pode substituir senão muito imperfeitamente e em fraca medida. Não há, então, senão esforços dispersos, e que muitas vezes se perdem por falta de princípios e de direcção doutrinal; poder-se-ia dizer que o Mundo Moderno se defende pela sua própria dispersão, à qual os seus próprios adversários não conseguem subtrair-se. Será assim enquanto estes se mantiverem no terreno "profano", em que o espírito moderno tem vantagem evidente, visto que é esse o seu campo próprio e exclusivo; e, aliás, se eles se mantêm aí é porque este espírito tem ainda sobre eles, apesar de tudo, forte domínio.
É por isso que tantas pessoas, animadas, no entanto, de incontestável boa vontade, são incapazes de compreender que se deve necessariamente começar pelos princípios, e obstinam-se em gastar as suas forças neste ou naquele domínio relativo, social ou de outro tipo, embora nada de real ou de duradouro possa ser feito nessas condições. A verdadeira elite, pelo contrário, não teria que intervir directamente nestes domínios nem que se misturar com a acção exterior; ela dirigiria tudo por uma influência inapreensível para o comum e tanto mais profunda quanto menos visível fosse. Se se pensar no poder das sugestões de que falávamos há pouco, e que, no entanto, não supõem qualquer verdadeira intelectualidade, pode-se suspeitar o que seria, com muito mais razão, o poder de uma influência como essa, exercendo-se de maneira ainda mais escondida, em virtude da sua própria natureza e buscando a sua origem na intelectualidade pura, poder que, aliás, em lugar de ser diminuído pela divisão inerente à multiplicidade e pela fraqueza que comporta tudo o que é mentira ou ilusão, seria, pelo contrário, intensificado pela concentração na unidade principal e identificar-se-ia com a própria força na verdade.
GUÉNON, René. A crise do mundo moderno. Lisboa: Editoral Vega, 1977. p. 116-124.
É a inversão completa da ordem normal, visto que é a proclamação da supremacia da multiplicidade como tal, supremacia que, de facto, só existe no mundo material; pelo contrário no mundo espiritual e, mais simplesmente ainda na ordem universal, é a unidade que está no cimo da hierarquia, porque é ela o princípio de onde parte toda a multiplicidade; mas quando o princípio é negado ou perdido de vista, só resta a multiplicidade pura, que se identifica com a própria matéria. Por outro lado, a alusão que acabamos de fazer à gravidade dos corpos implica mais do que uma simples comparação, porque a gravidade representa efectivamente, no domínio das forças físicas, no sentido mais vulgar desta palavra, a tendência descendente e compressiva, que traz para o ser uma limitação cada vez mais estreita, e que vai, ao mesmo tempo, no sentido da multiplicidade, representada aqui por uma densidade cada vez maior; e essa tendência é realmente a que marca a direcção segundo a qual a actividade humana se desenvolveu desde o começo da época moderna. Além disso, é caso para notar que a matéria, pelo seu poder de divisão e de limitação, sumultaneamente, é o que a doutrina escolástica chama o "princípio de individuação" e isso luga as considerações que expomos agora ao que dissemos anteriormente a respeito do individualismo: essa mesma tendência a que acaba de se fazer referência é também, poder-se-ia dizer, a tendência "individualizante", aquela segundo a qual se efectua o que a tradição judaico-cristã designa como a "queda" dos seres que se separam da unidade. A multiplicidade vista fora do seu princípio, e que, desse modo, não pode mais ser remetida à unidade, é, na ordem social, a colectividade concebida como sendo simplesmente a soma aritmética dos indivíduos que a compõem e que não é, com efeito, senão isso mesmo desde que não se encontra ligada a qualquer princípio superior aos indivíduos; e a lei da colectividade, sob este aspecto, é bem essa lei do maior número sobre a qual se funda a idéia "democrática".
Nesta altura devemos parar um instante para dissipar uma confusão possível: falando do individualismo moderno consideramos quase exclusivamente as suas manifestações na ordem intelectual: poder-se-ia crer que, pelo que respeita à ordem social, o caso é diferente. Com efeito, se se tomasse esta palavra "individualismo" na sua acepção mais estreita, poderia ser-se tentado a opor a colectividade ao indivíduo e a pensar que factos tais como o do papel cada vez mais invasor do Estado e o da complexidade crescente das instituições sociais, são a marca de uma tendência contrária ao individualismo. Na realidade não é assim, porque a colectividade, não sendo outra coisa senão a soma dos indivíduos, não pode ser oposta a estes, aliás como o próprio Estado concebido à maneira moderna, ou seja, como simples representação da massa, onde não se reflecte qualquer princípio superior; ora é precisamente na negação de todo o princípio supra-individual que consiste verdadeiramente o individualismo tal como o definimos. Portanto, se há no domínio social conflitos entre diversas tendências todas elas pertencentes igualmente ao espírito moderno, estes conflitos não existem entre o individualismo e qualquer outra coisa, , mas simplesmente entre as múltiplas variedades de que o próprio individualismo é susceptível; e é fácil de se dar conta que, na falta de todo o princípio capaz de unificar realmente a multiplicidade, tais conflitos devem ser mais numerosos e mais graves na nossa época do que jamais o foram, porque quem diz individualismo diz necessariamente divisão; e essa divisão, com o estado caótico que origina, é a consequência fatal de uma civilização totalmente material, visto que é a própria matéria que é a raiz da divisão e da multiplicidade.
Disto isto, devemos ainda insistir numa consequência imediata da ideia "democrática", que é a negação da elite entendida na sua única acepção legítima; não é propriamente "por acaso" que "democracia" se opõe a "aristocracia", esta última palavra designando precisamente, pelo menos quando é tomada no seu sentido etimológico, o poder da elite. Esta, de qualquer modo, por definição não pode ser senão o pequeno número, e o seu poder, ou antes, a sua autoridade, que vem apenas da sua superioridade intelectual, nada tem de comum com a força numérica sobre a qual repousa a "democracia", cujo carácter essencial é o de sacrificar a minoria à maioria, e também por isso mesmo, como dizíamos mais acima, a qualidade à quantidade, e, portanto, a elite à massa. Assim, o papel director de uma verdadeira elite e a sua própria existência, porque ela desempenha forçosamente este papel desde que exista, são radicalmente incompatíveis com a "democracia", que está inteiramente ligada à concepção "igualitária", quer dizer, à negação de toda a hierarquia: o próprio fundo da idéia "democrática" é o de que qualquer indivíduo vale tanto como outro porque são iguais numericamente, e embora só o possam ser numericamente. Uma autêntica elite, já o dissemos, só pode ser intelectual; é por isso que a "democracia" apenas se pode instaurar onde a pura intelectualidade já não existe, o que é efectivamente o caso do Mundo Moderno. Somente, como a igualdade é impossível de facto, e como não se podem suprimir praticamente todas as diferenças entre os homens, apesar de todos os esforços de nivelamento, chega-se, por um curioso ilogismo, ao ponto de inventar falsas elites, aliás, múltiplas, que pretendem substituir-se à única elite real; e estas falsas elites são baseadas na consideração de quaisquer superioridades, eminentemente relativas e contingentes, e sempre de ordem puramente material. Podemo-nos aperceber facilmente disto notando que a distinção social que mais conta no actual estado de coisas é a que se baseia na fortuna, isto é, sobre uma superioridade toda ela exterior e de ordem exclusivamente quantitativa, a única, em suma, que é conciliável com a "democracia", porque procede do mesmo ponto de vista. Acrescentaremos, de resto, que aqueles mesmos que se colocam actualmente como adversários deste estado de coisas, não fazendo intervir qualquer princípio de ordem superior, são incapazes de remediar eficazmente uma tal desordem, se é que não se arriscam mesmo e agravá-la ainda, indo sempre mais longe no mesmo sentido; a luta é apenas travada entre variedades da "democracia", acentuando mais ou menos a tendência "igualitária", que se encontra, tal como dissemos, entre as variedades do individualismo, o que aliás, vem dar exactamente ao mesmo.
Estas curtas reflexões parecem-nos suficientes para caracterizar o estado social do mundo contemporâneo, e para mostrar, ao mesmo tempo, que neste domínio, como em todos os outros, não pode haver senão um único meio de sair do caos: a restauração da intelectualidade e, por consequêcia, a reconstituição de uma elite que actuamente deve ser encarada como inexistente no Ocidente, porque não se pode dar este nome a alguns elementos isolados e sem coesão que representam apenas, de certo modo, possibilidades não desenvolvidas. Com efeito, estes elementos, em geral, têm apenas tendências ou aspirações, que os levam sem dúvida a reagir contra o espírito moderno, mas sem que a sua influência se possa exercer de maneira efectiva; o que lhes falta é o verdadeiro conhecimento, são os dados tradicionais que não se improvisam, e aos quais uma inteligência entregue a si própria, sobretudo em circunstâncias tão desfavoráveis em todos os aspectos, não se pode substituir senão muito imperfeitamente e em fraca medida. Não há, então, senão esforços dispersos, e que muitas vezes se perdem por falta de princípios e de direcção doutrinal; poder-se-ia dizer que o Mundo Moderno se defende pela sua própria dispersão, à qual os seus próprios adversários não conseguem subtrair-se. Será assim enquanto estes se mantiverem no terreno "profano", em que o espírito moderno tem vantagem evidente, visto que é esse o seu campo próprio e exclusivo; e, aliás, se eles se mantêm aí é porque este espírito tem ainda sobre eles, apesar de tudo, forte domínio.
É por isso que tantas pessoas, animadas, no entanto, de incontestável boa vontade, são incapazes de compreender que se deve necessariamente começar pelos princípios, e obstinam-se em gastar as suas forças neste ou naquele domínio relativo, social ou de outro tipo, embora nada de real ou de duradouro possa ser feito nessas condições. A verdadeira elite, pelo contrário, não teria que intervir directamente nestes domínios nem que se misturar com a acção exterior; ela dirigiria tudo por uma influência inapreensível para o comum e tanto mais profunda quanto menos visível fosse. Se se pensar no poder das sugestões de que falávamos há pouco, e que, no entanto, não supõem qualquer verdadeira intelectualidade, pode-se suspeitar o que seria, com muito mais razão, o poder de uma influência como essa, exercendo-se de maneira ainda mais escondida, em virtude da sua própria natureza e buscando a sua origem na intelectualidade pura, poder que, aliás, em lugar de ser diminuído pela divisão inerente à multiplicidade e pela fraqueza que comporta tudo o que é mentira ou ilusão, seria, pelo contrário, intensificado pela concentração na unidade principal e identificar-se-ia com a própria força na verdade.
GUÉNON, René. A crise do mundo moderno. Lisboa: Editoral Vega, 1977. p. 116-124.
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