sexta-feira, 8 de abril de 2011

O filósofo para Sócrates


O texto que vai abaixo não tem nada de estritamente religioso. Mas, em se tratando de ser um livro de Platão, o Teeteto, em que, uma vez mais, ele retrata o seu mestre, Sócrates, a discutir com alguns presentes, não se podia esperar mediocridade nas discussões. Muito embora, em alguns pontos do que aqui transcrevo, seja fácil encontrar críticos - entre os quais, eu também-, o texto traz uma descrição muito interessante da consagração que é pedida ao filósofo. Aproveitemos.

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Sócrates - De início, devemos observar acerca dos primeiros (os filósofos) que desde a mocidade o que mais do que tudo ignoram é o caminho da ágora ou onde fica o tribunal, a sala de conselho e quejandos, locais de reuniões públicas; não ouvem nem vêem as leis nem as decisões escritas ou faladas. As disputas dos cargos públicos nas hetéreas, as reuniões e os festins, os banquetes animados por tocadores de flautas: nem em sonhos lhes ocorre comparecer a nada disso. Nasceu na cidade alguém de nobre ou baixa estirpe? Certo cidadão herdou tara de seus antepassados, homens ou mulheres? É o que o filósofo conhece tão pouco, como se diz, como se diz, como quanta areia há no mar. Nem chega mesmo a saber que não sabe nada disso. Porém não se alheia dessas coisas por vanglória, mas porque realmente só de corpo está presente na cidade em que habita, enquanto o pensamento, considerando inane e sem valor todas as coisas merecedoras apenas de desdém, paira por cima de tudo, como diz Píndaro, sondando os abismos da terra e medindo a sua superfície, contemplando os astros para além do céu, a perscrutar a natureza em universal e a cada ser em sua totalidade, sem jamais descer a ocupar-se com o que se passa ao seu lado.

Teodoro - Que queres dizer com isso, Sócrates?

Sócrates - Foi o caso de Tales, Teodoro, quando observava os astros; porque olhava para o céu, caiu num poço. Contam que uma decidida e espirituosa rapariga da Trácia zombou dele, com dizer-lhe que ele procurava conhecer o que se passava no céu mas não via o que estava junto dos próprios pés. Essa pilhéria se aplica a todos os que vivem para a filosofia. Realmente, um indivíduo assim alheia-se por completo até dos vizinhos mais chegados e desconhece não somente o que eles fazem como até mesmo se se trata de homens ou de criaturas de espécie diferente. Mas o que seja o homem e o que, por natureza, lhe cumpre fazer ou suportar, para distingui-lo dos outros seres, eis o que ele procura conhecer, sem se poupar a esforços em sua investigação. Compreendes-me, Teorodo, ou não?

Teodoro - Compreendo; é muito verdadeiro tudo isso.

Sócrates - Eis a razão, amigo, como disse no começo, de em todas as circunstâncias, assim na vida pública como no trato particular com seus cidadãos, no tribunal ou alhures, sempre que nosso filósofo é forçado a tratar de assuntos que lhe caem sob a vista ou diante dos pés, torna-se alvo de galhofa não apenas por parte das raparigas da Trácia como de todo o povo, levando-o sua falta de experiência a cair nos poçose na mais triste confusão. Sua irremediável inabilidade para as coisas práticas fá-lo passar por imbecil. Num revide de injúrias não sabe como atacar o adversário, por desconhecer os vícios dos homens, já que nunca se preocupou com a vida de ninguém. E por não saber como sair-se de tais enrascadas, faz papel mais que ridículo.

Por outro lado, quando se trata de elogios e de enaltecerem uns aos outros com termos tão pomposos, não procura esconder o riso; estoura em gargalhadas sem nenhum constrangimento, o que o faz parecer tolo. Quando ouve o encômio de qualquer tirano ou potentado, imagina que se trata de um elogio de um pastor: porqueiro, cabreiro ou vaqueiro, por ser abundante a sua ordenha. É de opinião, aliás, que os reis guardam e ordenham um rebanho muito mais insidioso e intratável do que os dos verdadeiros pastores, e que por falta de vagar acabam ficando tão rústicos e ignorantes como aqueles e tão cercados por seus muros como os verdadeiros pastores pelos currais das montanhas. 

Quando ouve dizer que tal indivíduo é dono de dez mil plectros de terra, ou até de mais, como se se tratasse de uma grande propriedade, julga que lhe falam de coisinhas sem valor, acostumado, como está, a contemplar a terra inteira. Ao ouvir gabarem títulos de nobreza, por poder alguém mencionar sete antepassados ricos, considera absolutamente fútil tal elogio e revelador de curteza de vista por parte dos que falam, os quais, por ignorância, são incapazes de apreender o todo e de calcular que não há quem não tenha miríades sem conta de avós e antepassados, entre os quais se sucedem ricos e pobres, também por miríades, potentados e escravos, Helenos e bárbaros, indiscriminadamente, nesta ou naquela geração. Enumerar como grande coisa vinte e cinco antepassados ou dizer-se originário de Héracles, filho de Anfitrião, é para ele uma contagem ínfima. O vigésimo quinto antepassado foi quem a sorte quis, sem falarmos no quinquagésimo avô desse vigésimo quinto, divertindo-se o filósofo com a incapacidade de toda essa gente para contar e para purgar a mente de tanta fatuidade. Em tais situações, o filósofo é ridicularizado pela plebe, que ora o considera desdenhoso, ora desconhecedor do que lhe está na frente dos pés e a quem as menores coisas causam inextricável confusão.

Platão, Teeteto

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