quarta-feira, 30 de novembro de 2011
segunda-feira, 28 de novembro de 2011
sábado, 26 de novembro de 2011
Bendita seja a dimensão do mistério
O Pe. Lima Vaz, grande metafísico, escreve que há, na história, dois grandes movimentos da humanidade: um de ascensão que se identifica com a abertura à transcendência, isto é, o olhar voltado àquilo que está para além do mundo. E há o movimento decadente, o da imanência, aquele em que o mundo se fecha em si mesmo, numa auto-suficiência tola. Do primeiro movimento, o transcendente, fazem parte a Filosofia Grega nos seus maiores expoentes, a Filosofia Medieval e a Religião Cristã. Do segundo movimento haverá uma prevalência na modernidade. Ao excluir o campo do Mistério, cai-se num tipo de absolutização da própria história e a redução da razão última do mundo ao mero curso dos acontecimentos. É Hegel, Feuerbach, Marx, Darwin, Freud, etc, etc. Neste tipo de "filosofia", termina-se por fazer o racional descender do irracional.
Também na nossa vida cotidiana, estamos tão acostumados ao modo de visão imanentista, que, até sem perceber, caímos em atitudes bastante subjetivistas. Fazemos mui facilmente do nosso ego o centro da realidade e reduzimos tudo quanto há à nossa medida pequena. Se aderimos a uma religião, mal aceitamos que Deus ultrapasse o nosso entendimento na prática. Nós aceitamos que Ele corresponda ao nosso conceito de supra-conceitual, ainda que não permitamos que, de verdade, Ele nos escape. Não raro, escolheremos seguir um deus à nossa imagem e semelhança e interpretaremos as verdades de fé sempre ao nosso modo. Aceitaremos aquilo que nos seja confortável e rejeitaremos o que não couber nos nossos interesses.
Até defenderemos a idéia do esvaziamento, mas sem que isto implique um real esvaziamento da nossa parte. No fundo o que nos move é o nosso próprio interesse, o nosso próprio benefício, a nossa própria reputação. Faremos tudo isto talvez sem dar-nos conta de como é repugnante essa nossa instrumentalização da Fé. Apontaremos para cima mas, na verdade, estaremos indicando o caminho para o nosso umbigo, que supomos ser a régua última de toda a existência e que, portanto, deve bem estar localizado lá em cima, no centro do universo.
Se empreendemos um projeto de conversão, começaremos com o nosso costume tosco de prever por quais caminhos teremos de passar e quais os estágios que teremos de alcançar. E, depois, começamos a andar, supondo que tudo já foi exaustivamente esquadrinhado por nós e, portanto, já nos é previamente conhecido. Não permitiremos que nada escape à nossa descrição sem que seja, na mesma medida, recusado, expurgado.
Como lidar com um Deus que absolutamente nos ultrapassa? Que é transcendente? Com este Deus não saberemos lidar e, portanto, não O entenderemos, nem O amaremos. Melhor aquele outro, fruto da nossa idéia, e que cabe direitinho na forma que nós compomos com a matéria prima da nossa soberba.
De Jesus mesmo, se continuamos agindo desse modo, nada saberemos, ainda que usemos o Seu nome para chamar o deus que nós mesmo inventamos. E passamos a vida sem aceitar o mistério, fazendo de conta que Deus está felicíssimo com tudo quanto fazemos e que, no fim, Ele é bonzinho segundo o nosso conceito de bonzinho. Ele deve identificar-se totalmente - é o que achamos - com os nossos valores e terminamos, veja só, elevando os nossos próprios critérios ao nível divino. De repente, somos o que há de mais elevado no mundo e isto sem termos feito sequer muito esforço. Eis aonde leva a "religião ao meu modo".
O Gustavo Corção, grande escritor brasileiro, escrevia com profundo senso: "uma das razões pelas quais o catolicismo me encantou é que ele era uma religião que não fora feita por mim". Era algo a que ele tinha de se adaptar ou, usando um termo mais apropriado neste terreno, a que ele tinha de se converter. Para que esta conversão se desse, era preciso que ele negasse a si mesmo, e não que negasse a religião. Se ele se nega, está a fazer justamente o que Jesus disse - quem quiser me seguir, negue-se - e a abrir-se a algo que é maior que ele e, portanto, vai rumando para a liberdade dos vastos horizontes. Se, ao contrário, ele se afirma a si mesmo ao ponto de negar o que na religião lhe desagrada, ele está, de novo, se fechando na imanência que nada mais é do que prisão, engano, redução de tudo quanto existe à própria medida, e eleição de si mesmo como redentor do mundo. Esta via do engodo foi empreendida, primeiramente, por Adão. E foi para nos libertar disto que o Cristo se fez carne e rebaixou-Se à nossa pobre condição para que pudesse nos elevar à Sua.
É como dizia S. João da Cruz: "O que Deus pretende é fazer-nos deuses por participação, sendo-o Ele por natureza".
Bendita seja a dimensão do Mistério que, acima de nós, abre uma via sem fim, sem limites e que, então, não obedece a qualquer tentativa de antecipação. Bendito seja o mistério que nos liberta de nós mesmos!
"O que o olho humano não viu, o que o ouvido não ouviu, o que o coração não imaginou... eis o que Deus tem preparado para os que O amam..."
Bendita seja a dimensão do Mistério, o oceano abismal e inesgotável de Deus.
sexta-feira, 25 de novembro de 2011
Saindo da Prisão
Tudo bem... Abandonemos os vínculos, sejam eles do desejo ou do temor. Teoricamente, ficou claro. Mas, e quando fomos pegos, isto é, quando estamos cativos de uma situação neurótica, o que fazer?
Se ficou claro o que foi dito até agora, ficará claro isso aqui também.
A neurose se estabelece ou como obsessão, rituais de pensamento ou comportamento, ou como mero mal estar. No caso das repetições, em geral elas consistem numa contínua verificação que visa assegurar se tudo está certo e se o sujeito está imune às eventuais ameaças. Outras vezes, a única razão de ser para a contínua execução de um certo ato é a sensação que este ato provoca. Algo que não chega a ser prazeroso, mas que, estranhamente, faz falta.
Os outros casos, como já dito, são de um certo mal estar, geralmente acompanhado das tais suposições sobre as possíveis causas do mal estar. Aqui, a neurose pode vestir-se de argumentos científicos. Mas permanece sendo só viagem na maionese.
O segredo está em reconhecer o colorido particular da neurose. Uma vez que este foi identificado, porém, não significa que a pessoa já se sentirá segura. Não. Na verdade, persiste em nós a tendência a acreditar na nossa própria teoria assustadora e fantasiosa. Mas é preciso ser cético; saber duvidar das próprias suposições.
Os rituais se mantêm como verificação. Ora, só se verifica porque há o medo de alguma coisa dar errada. O segredo é: reconhecer que é somente uma suposição neurótica e barrar o curso de verificações. Lembremos da inércia: há uma tendência em continuar. Mas convirá travar o passo. Penso que esta é a parte que mais exige disciplina: no ritmo frenético do mundo atual, o silêncio interior se torna cada vez mais algo de outro mundo. Outro dia, eu conversava com um amigo a respeito da quietude da mente e ele me perguntava se era possível. É claro que é.
Ah, então o neurótico somente sairá disso se se tornar um asceta ou um budista? Não, rs. Mas ele deverá se disciplinar para ficar sem racionalizar quando se decidir a fazê-lo. O indivíduo percebeu que é suposição? Pronto! Deixa de obedecer o curso neurótico! Aquiete a mente. No início, vai ser preciso fazer um certo esforço mesmo; mas nada de espernear, pois isto mais agita que aquieta. Sempre com paciência, mas com perseverança.
A contínua verificação gera, naturalmente, um cansaço. Quando ela deixa de ser alimentada, o cansaço persiste ainda por um tempo - é a inércia - e só depois ele cessa.
Também no simples mal estar, dá-se algo semelhante. Embora não haja rituais, o sujeito, no entanto, fixa sua atenção na bendita sensação ruim. Ao fazê-lo, geralmente ele intensifica a sensação e a estende. O segredo aqui está em distrair-se daquilo. A princípio, é complicado, pois as tais sensações, não obstante serem neuróticas, se fazem sentir de modo muito real. E, como qualquer incômodo, aquilo como que atrai a atenção.
O ideal seria que o sujeito continuasse sua vida como se nada estivesse errado, como se aquilo não fizesse qualquer diferença.
Uma das coisas que tendem a manter o mal estar é que o neurótico gosta de se pensar como o desafortunado, o sem sorte. Este tipo de atitude faz que ele oponha o seu estado atual ao que gostaria de experimentar. Esta distância lhe é, também, incômoda e termina por fazer retroceder a sua visão sobre a sensação neurótica, aumentando-a e fazendo-o lamentar ainda mais. Mas o que ele está a fazer é tão somente reafirmando pra si mesmo o seu incômodo e convencendo-se de como está distante daquilo que deseja. Tudo isto supõe uma atenção constante sobre o mal estar.
O segredo: não desejar qualquer outra coisa, até chegar o ponto de que tanto faça sentir o mal estar ou não. Se se alcança este nível, e se o incômodo for neurótico, dentro de um certo tempo, ele sumirá. E muito agradável é a sensação que daí surge.
Mesmo no caso de uma dor autêntica, ainda assim, a atitude aqui tomada minimizará bastante o desconforto.
Talvez neste post fique mais claro como é o amor-próprio o que nos atrapalha; aquele senso de auto-preservação exagerado é que inventa inimigos e põe sobre eles uma lente de aumento que só termina por fazer-nos sofrer bem mais.
Se adquiríssemos aquele desprezo e esquecimento de nós mesmos, ah, quão mais tranquilos e felizes nós seríamos! E depois, ninguém entende como Cristo pode nos convidar à Sua Cruz e, ao mesmo tempo, prometer-nos uma vida em plenitude.
"Como sois lentos para entender", nos diria Ele.
S. Rafael Arnaiz Barón - A Simplicidade
"E, à medida que nos vamos desprendendo
de tanto amor desordenado às criaturas,
e a nós mesmos,
me parece que nos vamos acercando mais e mais ao único amor,
ao único desejo, ao único anelo desta vida,
à verdadeira santidade que é Deus."
S. Rafael Arnaiz Barón
Neuroses - Não Vinculação
Vínculo quer dizer ligação. Estar vinculado é estar ligado. Isso é óbvio ao infinito. Porém, é preciso entender que há dois modos muito particulares pelos quais nos vinculamos às coisas e que são, nada mais nada menos, aqueles dois pelos quais iniciamos esta série de artigos sobre este tema: o medo e o desejo.
Comecemos por este último.
Ninguém terá dificuldade de entender que, quando desejamos algo, naturalmente nos apegamos àquilo; estabelecemos com o tal objeto um vínculo, pelo menos no íntimo da nossa alma. Um sujeito apaixonado, ainda que não seja correspondido, isto é, ainda que seu vínculo não se reproduza no real, estará cultivando-o dentro de si. Enquanto estiver apaixonado isto persistirá. Faz parte da estrutura do apaixonamento. Porém, para estabelecer um vínculo, nem é preciso chegar ao nível do apaixonamento: um simples desejo e eis-nos fisgados. Se estamos desejando ir à praia, se queremos comer uma fruta específica, se nos faz falta ver tal amigo, etc, etc, tudo isto são vínculos que trazemos dentro de nós. De um ponto de vista meramente ordinário, isto nos parece a coisa mais natural que há. Do ponto de vista espiritual, porém, isto traz algumas dificuldades. Uma das coisas que se requer para progredir na intimidade com Deus é o desapego, o rompimento destes vínculos pelo cordão do desejo, a fim de que o coração esteja totalmente livre para Deus. Esta atitude, porém, não faz que o sujeito assuma uma atitude de desprezo diante dos demais, como às vezes é suposto; é amando a Deus de modo mais pleno que o sujeito poderá amar as outras pessoas, também de modo pleno e sem propriedade, uma vez que seu amor tornou-se mais perfeito. A ilusão que permeia o mundo, aqui, é que em geral confundimos o amor com o apego, muito embora sejam coisas absolutamente diferentes.
Espero que tenha ficado claro como o desejo cria vínculos e, naturalmente, move a alma em direção daquilo que se deseja. Estabelece, como dizíamos no primeiro artigo, uma tensão na alma que a põe em movimento. Lembremos que a quietude interior é fundamental para que tenhamos uma visão clara das coisas.
Tudo bem, o desejo faz isso mesmo. Mas, e o medo? Sendo o medo justamente uma atitude de fuga, como que nos vincula com algo? Para responder, consideremos que o medo é um tipo de desejo às avessas: é o desejo de que tal coisa não aconteça ou de que tal coisa se mantenha longe. Ora, nesta estrutura é forçoso destacar o que é a "tal coisa". Se o medo é neurótico, construir-se-á, na alma, um vínculo entre a pessoa e a idéia da coisa temida. Este vínculo, embora seja orientado para a defesa do sujeito, terminará, ao contrário, por assombrá-lo. Diante de todo um universo de objetos e situações, todas elas indefinidas ao fundo, o neurótico destaca da multidão precisamente aquilo que ele teme. É como se ele encontrasse o objeto pelo qual tem repulsa e o pusesse diante dos olhos. Convenhamos que é uma sacanagem com ele mesmo, rsrs... O neurótico vive se sacaneando. As suas reclamações constantes da vida são, na maioria das vezes, empecilhos que ele mesmo se coloca.
Tomemos como exemplo o quase tradicional medo de aranha nas mulheres. Se isto é um medo neurótico, uma simples mancha escura no canto da parede já lhe parecerá, inconfundível e indubitavelmente, uma aranha. Pelo menos até que olhe uma segunda vez e de mais perto. O problema é fazer com que esta segunda vez aconteça. A crença na própria suposição precipitada é tão forte que a menina eleva, em um milésimo de segundo, uma mera impressão sensível ao status de verdade auto-evidente ao extremo.
Se, no entanto, a garotinha não é neurótica, a mancha escura será só uma mancha escura, ou, pelo menos, poderá ser uma sujeira, uma marca de tinta, um objeto de borracha, qualquer outro animalzinho gracioso, ou qualquer outro dos infinitos objetos pequenos e escuros. Diante de uma infinidade de possibilidades, qual o motivo racional para ter medo especificamente de aranha? NENHUM! O que aconteceu com a pessoa medrosa é que ela tinha um vínculo, um contrato interior com a idéia de aranha, o que faz com que qualquer coisa que possa ser, mesmo de longe, associada a tal idéia desperte a reação de medo. Quer estratégia de sacanagem mais arranjada?
O medo termina por criar o vínculo com a coisa temida, pois a destaca na multidão de eventos possíveis no mundo. Inúmeras vezes, inclusive, o objeto sequer estará nesta multidão, sendo mesmo impossível, mas o sujeito faz questão de trazê-lo e inventá-lo. No fundo, ele pensa que é melhor angustiar-se garantido contra o perigo do que relaxar e estar exposto ao que teme, ainda que o que teme seja ser abduzido.
O que é que se deve fazer, então? Numa ascese espiritual, conviria aprender a trabalhar o desapego em geral: desfazer os vínculos do desejo e os do medo. Mas, em se tratando especificamente destas neuroses, é preciso aprender a não destacar o objeto temido, a não considerá-lo na mente, a permitir que a sua figura se confunda no conjunto indefinido de objetos do universo. Deixa esses objetos quietos! Não precisa destacá-los. A reação primeira será fixar a mente no tal negócio temido quando supor tê-lo visto ou quando for antecipar situações em que ele possa insinuar-se. Porém, convém treinar para que estas antecipações não se dêem e para que o coração permaneça livre, sem objetos imaginários ameaçadores. Não destacar! Não vincular!
Para isto, requer-se, obviamente, disciplina e esta não se consegue de modo meramente teórico. Só vem com a prática. É a prática que dá substância aos passos e ensina a arte do combate interior. Ainda que um indivíduo concorde com tudo o que pus aqui, se ele não se dispõe a disciplinar os seus pensamentos, as suas suposições, etc., será apenas um conhecimento a mais sem qualquer consequência substancial para ele. Talvez ele se sinta um pouco aliviado por saber que dá pra quebrar esta dinâmica chata das suposições neuróticas. Não precisamos ser cativos desse monte de abobrinhas. Mas, para chegar aí, é preciso ir ao campo de batalha e lutar. Olhar na cara do bicho papão, se for preciso, e aprender a não se incomodar com ele. O único motivo que o bicho papão tem de existir é assustar. É por isso que ele ainda existia quando éramos crianças. Desde que crescemos e que ele deixou de fazer parte de qualquer vínculo interior nosso, ele deixou de existir. Com a neurose, pode ser a mesma coisa.
A pessoa terá amadurecido quando a idéia tão temida não lhe causar mais qualquer repercussão interior. Se ela adquire este tipo de quietude, significa alcançou também uma maior maturidade e é de dentro mesmo de sua alma - não mais da superfície - que ela vive. E isso é um negócio que vale a pena.
quarta-feira, 23 de novembro de 2011
Ainda as neuroses: a criança mimada interior
Já faz um tempo que iniciei a série sobre as neuroses, mas não cheguei a terminá-la. Vinha seguindo a exposição e a cortei com uma sucessão de textos do mesmo assunto, mas de um autor já consagrado, o Rudolph Allers, desconhecido em geral somente porque se opôs a Freud e terminou por elaborar uma teoria que concorda exatamente com a visão cristã do homem. Se considerarmos que a visão cristã do homem é a visão correta - por mais pretensioso que pareça ser, vamos fazer o quê? É assim, oras - entenderemos como uma Psicologia também correta deva se erigir em total harmonia com os dados da Fé. Tal é, portanto, a teoria do Allers.
Deixa, então, eu voltar à minha baixeza e abordar as coisas que eu vim aprendendo nestes tempos de lutas interiores. Há vezes em que eu desmascaro, mesmo, este jogo neurótico e passo tempo sem ser incomodado. Mas, essas cessações de combate terminam por me deixar, digamos, enferrujado, rs... Porém, o negócio nunca deixa de ser familiar...
Mas, continuemos. Da última vez, eu antecipei que abordaria duas coisas: uma tal de teoria da não vinculação (eu que cunhei o nome, hehe) e mostraria a semelhança entre estas neuroses frescas e aquelas crianças chatas e mimadas.
Como faz tempo que escrevi a última postagem sobre o assunto, relembro que a neurose trabalha sempre com suposições e que elas pretendem, em última instância, nos defender contra possíveis ameaças. Estas suposições, influenciadas pela fuga da dor, geralmente carecem de objetividade e, para lidar com elas, há que se ser cético. Absolutamente cético. Uma das características dessa dinâmica é que, se o sujeito for procurar argumentos que validem a sua acrobática teoria, ele os encontrará. Por isto que o ceticismo aqui deve ser, mesmo, total.
Mas vamos lá.
Não é difícil entender que o sujeito que age segundo seus caprichos torna-se um imaturo. As razões que pedem nossa ação devem ser mais profundas que as do campo epidérmico da sensação imediata. Um sujeito que seja tão volúvel quanto a superfície das suas disposições imediatas jamais adquirirá constância e sequer poderá ser fiel ao que quer que seja. A fidelidade, onde quer que ela se dê, implica que o indivíduo age segundo critérios mais profundos, a ponto de, mesmo se sua sensibilidade lhe inclinar à traição, ele não cair. Ora, se ele age de um modo constante, não obstante a oscilação das suas sensações, isto significa que o que definiu a sua atitude foi algo mais profundo.
No caso da pessoa imatura, ela tenderá a agir sempre segundo o apelo da situação. Se vê que adquire certo prazer ou fama de um modo, é deste que ela agirá. Se, ao contrário, ela antecipa que poderá se sentir confortável com tal atitude, ela a evitará. Vemos que é, mesmo, algo de sensibilidade. Geralmente, as pessoas sensuais agem bastante por meio deste critério.
Pois bem. As neuroses são o que há de mais infantil. Além de inventar teorias dignas do Mundo de Bob, elas ficam enchendo o saco, querendo satisfação. Porém, esta satisfação não é algo que cause prazer. Em geral, é algo que garanta ao sujeito que, se ele obedece, estará a salvo de algum perigo virtual.
Tomemos o seguinte exemplo: imaginemos um garoto, bem gordo e bochechudo, com olhar altivo. Acontece de esse pivete ser nosso sobrinho. De repente, ocorre-nos a idéia de jerico de levá-lo a um supermercado porque queremos comprar lá não sei o que. Passamos, então, pela prateleira de chocolates. O pivete, triste por não poder comer de imediato até as caixas de papelão, começa o seu ritual de puxar a borda da nossa camisa pedindo o bendito doce. Não importa se não temos dinheiro ou se apenas não queremos satisfazer o chato do nosso sobrinho - Vai que ele explode... -, o menino começa a gritar e a fazer seu show. Esperneia, cai no chão, chora e esbraveja. Tudo isto, naturalmente, chamará a atenção dos demais e nos colocará numa posição desconfortável. Qual é a melhor coisa a se fazer? Compra o chocolate! Se essa é a nossa atitude, agimos como neuróticos! Comprar a bendita caixa apenas amortece o problema por enquanto. Mas, o que fizemos foi tão somente satisfazer os apelos infantis de um chato. Eis a estratégia do neurótico ingênuo. Ele se torna um marionete nas mãos dos seus medinhos.
Para que a comparação fique bem feita, temos de conceber um menino que tenha um apetite sem fim. Ele se contenta enquanto há um chocolate na mão. É quando deixa de fazer barulho. Mas, tão logo o devore, recomeça a sua algazarra. Agora, notemos: quanto mais comprarmos chocolate para o madimbu, quanto mais satisfizermos os seus caprichos, mais estaremos demonstrando que a sua estratégia de causar desconforto funciona. E, por responder no nível de uma criança mimada, estaremos agindo de modo imaturo.
O que deveríamos fazer? Deixar o pivete esbravejar uma vez. Se, depois de bastante tempo, ele visse que nos mantemos irredutíveis, ele, claro, deixaria de chorar. De outra vez, quando passássemos pelo supermercado de novo, ele voltaria a chorar, mas, agora, com uma certa hesitação, pois da última vez o negócio não funcionara. Se, de novo, não cedermos, chegará o momento em que teremos ficado livres do incômodo, até o ponto de podermos acampar defronte às prateleiras de chocolate e sequer ouvirmos um piu. Teremos transformado o gordinho num buda, rsrs...
Entendamos, então, que este gordinho é nossa neurose e que, em várias situações e momentos, quererá nos chamar a atenção, para que façamos algo. O segredo é: não fazer! Perceber que aquilo é tão somente um capricho, ainda que ele nos ameace com coisas mais assustadoras do que uma vergonha num mercado. Estas coisas ameaçadoras que, no momento, podem nos aparentar tão reais, perderão seu disfarce se agirmos do modo como aqui é dito. E mais! Toda neurose tem um colorido muito característico. Aprenderemos, deste modo, a reconhecê-las todas.
Porém, uma coisa a se considerar, e que vim perceber de modo mais claro ao ler o Allers, é que a mera resignação diante do desconforto pode consistir numa atitude semelhante à da soberba que, como vimos, é a própria raiz da neurose. De fato, fazer-se de fortão ou de inatingível pode reforçar a soberba. O que aqui proponho não é isto! É tão somente reconhecer que aquilo não é verdade e, daí, não corresponder ao apelo infantil. Note que há uma diferença essencial! A verdade é íntima da humildade e, portanto, é inimiga da soberba. Agir de acordo com a realidade das coisas é ser humilde.
Se, porém, fizéssemos o contrário e satisfizéssemos o gordinho toda vez, chegaria o dia em que, por simplesmente avistar ao longe o supermercado, ele já iniciaria a sua brincadeira sem graça. Notem, por exemplo, como há pessoas que evitam usar certas palavras, ou fazer certas associações, e coisas semelhantes. Isto parece cair quase no campo da superstição.
O que se requer, então, é que o sujeito não se precipite em obedecer os caprichos desta sua criança interior. Quando eu estudava Psicologia, cheguei a aprender uma teoria lacaniana que, a meu ver, era muitíssimo interessante: tratava-se da transferência imaginária e da transferência simbólica. Como na época certas coisas me eram ainda bem obscuras, não sei se a idéia que apreendi era a correta, mas o que eu entendi foi fundamental.
A transferência imaginária consiste em obedecer o gordinho. Pelo fato de berrar, ele naturalmente nos coloca numa posição: a de incomodado que comprará o chocolate. A tendência primeira nossa será a de assumir justamente esta posição. Esse mecanismo pode ser usado, inclusive, como meio de manipulação. Muitos de nós apenas costumamos reagir, ao invés de agir autonomamente. Se alguém nos grita, nós assumimos a posição que nos foi suposta, e agimos a partir dela, geralmente esbravejando de volta ou nos encolhendo em nosso canto.
Outra coisa é a transferência simbólica. Nesta, o sujeito não obedece a suposição do outro, mas justamente a nega, ignorando-a. É como se, diante do drama do outro, este sujeito não lhe dá a mínima. Isto termina por fazer que o drama perca razão de ser. Se, ao contrário, ele agisse de acordo, isto terminaria por reforçar o drama. Agora, notemos como é ridículo o indivíduo que, surpreendido por uma criança que o xinga, responde à mesma altura! É a mesma coisa. Convirá, ao contrário, que sua atitude não seja condicionada pelas más maneiras do pivete.
Aplicando isto às nossas neuroses, se as obedecemos, estamos no campo da transferência imaginária, e terminamos por reforçá-las. Se, ao contrário, aprendemos a ser indiferentes, elas incomodarão por um tempo ainda - a inércia de que falei num post anterior - e, por fim, perderão razão de ser. No entanto, penso que a maior dificuldade do neurótico é mesmo, pelo menos a princípio, duvidar de si. Depois de um tempo, isto tende a ficar mais natural e a pessoa adquire um trato maior com a coisa. Mas só se deixar de agir como marionete.
Haveria tanto o que dizer aqui, mas nos contentemos, por ora, com essa visão geral.
Aplicando isto às nossas neuroses, se as obedecemos, estamos no campo da transferência imaginária, e terminamos por reforçá-las. Se, ao contrário, aprendemos a ser indiferentes, elas incomodarão por um tempo ainda - a inércia de que falei num post anterior - e, por fim, perderão razão de ser. No entanto, penso que a maior dificuldade do neurótico é mesmo, pelo menos a princípio, duvidar de si. Depois de um tempo, isto tende a ficar mais natural e a pessoa adquire um trato maior com a coisa. Mas só se deixar de agir como marionete.
Haveria tanto o que dizer aqui, mas nos contentemos, por ora, com essa visão geral.
No próximo, sim, falarei da outra teoria lá.
Pax.
terça-feira, 22 de novembro de 2011
Qualidades Indispensáveis da Oração
Padre Elílio de Faria Matos Júnior
Em sua pregação sobre a Oração do Senhor (In Orationem Dominicam videlicet "Pater Noster" Expositio), Santo Tomás elenca as cinco qualidades mais importantes para uma boa oração. E assevera que a Oratio Dominica satifaz de modo excelente a todas elas, de tal maneira que "entre todas as orações, o Pai-nosso ocupa manifestamente o primeiro lugar" (Prólogo).
Eis as qualidades enumeradas por Santo Tomás, qualidades que, se quisermos colher bons frutos, jamais devemos deixar faltar às nossas orações:
1) A oração deve ser confiante: "devemos pedir com fé, em nada hesitando" (Tg 1,6).
2) A oração deve ser conveniente: devemos pedir a Deus só o que é justo e proveitoso. Alguns não são ouvidos porque pedem o que não convém: "Pedis e não recebeis, porque pedis mal (Tg 4,3).
3) A oração deve ser ordenada: devemos pedir de acordo com uma certa ordem, de modo a preferirmos os bens espirituais aos temporais, os celestes aos terrenos, conforme o ensinamento do Senhor: "procurai primeiro o reino de Deus e sua justiça, e todas as coisas vos serão acrescentadas" (Mt 6,33).
4) A oração deve ser devota: devemos rezar com fervor e devoção. Para isso ajuda a brevidade das palavras, uma vez que "frequentemente a devoção se enfraquece com a prolixidade da oração" (Prólogo). A devoção, sendo fruto da caridade, deve manifestar nosso amor a Deus e ao próximo.
5) a oração deve ser humilde: devemos esperar tudo alcançar pelo poder de Deus, não pelas nossas próprias forças. "Deus se volta para a oração dos humildes e não despreza sua súplica (Sl 101,18). O publicano que se humilhou diante de Deus voltou para casa justificado; o fariseu, que se exaltou, não obteve justificação (cf. Lc 18 9,15).
Que a vida de oração, que outra coisa não é senão vida unida a Deus e em diálogo com Ele, produza em nós e através de nós frutos que durem para a vida eterna!
Fonte: Blog do Pe. Elílio
sábado, 19 de novembro de 2011
Breve Introdução à Teologia Negativa
O caminho da vida, já dizia S. Gregório de Nissa, doutor da Igreja, é um processo das trevas para a luz e da luz para as trevas.
S. Gregório de Nissa é, na verdade, o verdadeiro pai da Teologia Apofática ou Negativa, embora tenha sido o Pseudo-Dionísio Areopagita quem recebeu maior atenção. Mas isto se deu somente porque durante muito tempo estavam a considerar que este místico fosse um discípulo direto de S. Paulo, convertido quando da pregação deste no areópago, descrita no livro dos Atos. No entanto, posteriormente, veio-se a saber que, não obstante o nome com que vinham assinadas, as suas obras descendiam pelo menos do século VI e tinham sido produzidas, provavelmente, por algum monge.
O maior clássico do Pseudo-Dionísio é, sem dúvida, a "Teologia Mística", livro que inspirou bastante a Literatura Medieval, terminando por produzir certos reflexos mesmo nas obras de gigantes como S. João da Cruz, o grande doutor da Noite e a maior autoridade da Mística Católica.
Embora provenientes de um autor que falseia o seu próprio nome, a obra do Pseudo-Dionísio não deixa de ter uma grande profundidade. Não à toa foi lida e muitíssimo comentada.
Se voltarmos, porém, a S. Gregório de Nissa, veremos que ele é, não só mais antigo, como, também, mais profundo. Uma das principais obras onde ele trata deste tema é a "Vida de Moisés", dividida em duas partes. Na primeira, há uma descrição literal da vida do Profeta. Na segunda, há a sua interpretação mística.
Moisés será o grande paradigma da Teologia Negativa, pois se reconhecerá nele este processo de que S. Gregório de Nissa fala como sendo uma ida das trevas à luz e da luz às trevas.
Outra grande obra que trata do assunto é o livro "A Nuvem do Não Saber", de um anônimo do Séc. XVI, e que consistia, na verdade, num conjunto de orientações de um monge a um seu discípulo. Nele, o autor trata da superioridade da contemplação sobre a ação e da prática de uma oração para além dos conceitos.
A Teologia Negativa, também conhecida como Teologia das Trevas ou Mística de Trevas não é um traço exclusivamente católico. Ela está em inúmeros movimentos místicos pelo mundo, sobretudo em algumas correntes indianas. Porém, no âmbito da Fé Cristã, ela tem peculiaridades que a livram de entrar em certas aporias.
O elemento negativo é imprescindível a qualquer legítima teologia. Com relação a isto, é possível estabelecer uma divisão entre os santos, identificando uns como representantes da Teologia da Luz e outros, como adeptos da Teologia das Trevas. No primeiro caso, reconhecemos Sto Agostinho, Sto Tomás de Aquino, S. Bernardo de Claraval e, segundo alguns, até a Sta Teresa D'Avila - o que não deixa de me estranhar e, sinceramente, me coloca em dúvidas quanto a isto. No segundo grupo, temos S. João da Cruz, S. Gregório de Nissa, parece-me que Sta Teresinha de Lisieux, S. Bruno, etc. Importante notar que, nestes dois grupo de santos, todos, com exceção de S. Bruno, fundador da Cartuxa, são doutores da Igreja.
Porém, mesmo no primeiro grupo, o da Luz, notaremos claros elementos negativos. Muito conhecido é o êxtase de Sto Agostinho e sua mãe, Sta Mônica, na cidade de Óstia. Enquanto conversavam sobre as realidades celestes, viram-se, de repente, a transcender os conceitos e a mergulharem numa contemplação mais direta do objeto de suas discussões. Acabada a experiência supra-sensível, Sto Agostinho lamenta por ter de voltar ao baixo nível de suas idéias. Também Sto Tomás de Aquino, o maior doutor da Igreja, elevado certa vez a um êxtase em que contemplou o Mistério, decidiu, de volta ao ordinário da vida, parar de escrever, pois toda a sua obra, depois de ter visto o que vira, convertera-se em palha.
O elemento negativo livra o homem de cair no racionalismo da Fé que, na verdade, já não é Fé, mas adoração da razão. Cai-se, aí, numa redução absurda da dimensão do mistério e, em última instância, recai-se, de novo, num certo imanentismo, perdendo de vista o horizonte da transcendência.
Porém, se isto é mal compreendido, pode levar ao extremo oposto, ou seja, à afirmação da estrita inefabilidade do mistério e à relativização de tudo quanto seja conceito e linguagem humana. É precisamente neste erro que caem alguns orientais, entendendo a Teologia afirmativa como mera linguagem análoga, relativa e penúltima, destinada aos não agraciados pelo acesso místico. Os que, porém, conseguissem adentrar no campo obscuro da Mística se veriam, segundo esta teoria, absolutamente dispensados da observância de tudo quanto fora conceitualmente expresso. A Teologia se converte em religião de segunda categoria; em mera metáfora da realidade do Mistério.
Em outros textos, abordarei de modo mais preciso em que consiste este treva, ou nuvem, ou noite, ou obscuridade, ou, às vezes, vazio. Termino, citando o Rei Davi que, sobre Deus, escreveu: "Ele fez sua tenda nas trevas" (Cf Sl 17,12).
Fábio
quinta-feira, 10 de novembro de 2011
Natal chegando...
Já há alguns dias que eu venho sentindo o "cheiro" do Natal. A primeira vez que percebi foi uns dias atrás, logo após sair da Igreja e tê-Lo comungado. Esta ternura que eu sinto no mundo não poderia ser chamada meramente de "nostalgia". É algo maior...
Hoje vi a primeira árvore de Natal. O clima, o ambiente do mundo está mudado. As luzes têm maior beleza e eu penso que isso é tudo para preparar as coisas pra vinda d'Ele, em Belém.
Sobre isto, tem surgido um discurso, que já é antigo, mas que é modinha hoje, de que o dia 25 de Dezembro é uma data meramente arbitrária ou, quando muito, é apenas uma cristianização do dia do "deus-sol" pagão. Acontece que, à margem dos que defendem tal coisa, há também estudos sérios que vão afirmar, por sua vez, a absoluta precisão das datas. Seja como for, tendo a Igreja estabelecido neste dia o nascimento d'Aquele que nos veio remir, não há dúvidas de que isto seria ratificado também no céu, conforme o próprio Cristo o adiantara.
Natal.. a época mais doce do ano...
Outra coisa muito particular é que o natal deste ano é o primeiro em que o passarei na condição de escravo da Virgem Santíssima. Tenho sido um escravo meio rebelde; cafajeste mesmo... Mas tenho testemunhado a liberalidade da Virgem Mãe de Deus, a sua bondade, a sua ternura e a sua paciência. Nesta história, a honra é toda minha por poder fazer parte daqueles que ela mesma forma e conduz.
A encarnação do Verbo se dá, como festa, no dia 25 de março e esta é uma das devoções particulares dos escravos da Virgem. No entanto, vê-Lo nascer, agora no Natal, não pode deixar de nos extasiar... Contemplar assim a Sua pobreza, a Sua inofensibilidade, o Seu silêncio, a Sua majestade absolutamente natural sem necessidades de alardes, a Sua submissão a Maria e a José... Oh coração humano, feito de pedra e indiferença, que não reconhece entre os trapinhos de Belém o Senhor absoluto de tudo quanto existe.
Et Caritas Caro Factum Est Et Habitavit in Nobis...
Aquela criança... olhai bem... é Deus soberano.
Ele, que nos pede de beber, é Quem nos sacia
É do Filho que nos devemos aproximar, se quisermos acalmar a sede que atormenta a nossa alma. Ele vem ao nosso encontro e é ele próprio que nos pede de beber, tanto na sombra do recolhimento como ao sol ardente dos nossos dias. E assim que a alma começa a satisfazer o desejo divino, ouve estas palavras: "Se tu conheceras o dom de Deus e quem é que te diz: 'Dá-me de beber', tu certamente lhe pedirias e Ele te daria uma água viva" (Jo IV,10),
Oferta divina, na verdade! Basta confessarmos a nossa indigência para recebermos a dádiva da misericórdia. O coração divino conhece todas as nossas necessidades e faz chegar até nós a onda da sua caridade: convida-nos a beber sem reservas para refrescar e curar a nossa alma. Esta água que brota das profundezas divinas torna-nos cada vez mais permeáveis à sua pureza e mais aptos para receber a sua abundância, à medida que vamos matando a nossa sede. "Se alguém tem sede, venha a mim e beba. O que crê em mim, do seu coração correrão rios de água viva" (Jo VII, 37-38).
Libertarmo-nos dos laços egoístas e parciais que nos prendem às criaturas, desprendermos o nosso coração do que é temporal e efêmero, eis as condições para o nosso despertar espiritual. O conhecimento angustiante da nossa miséria arranca-nos às satisfações de uma hora para nos fazer desejar ardentemente a verdade eterna, a plenitude divina. "Aquele que beber da água que eu lhe der, nunca mais terá sede, mas a água que eu lhe der virá a ser nele uma nascente de água a jorrar para a vida eterna" (Jo IV, 14).
Se bebermos, pois, na fonte do paraíso interior, nunca mais procuraremos matar a sede nos regatos da terra, para que o Salvador não se queixe de nós: "Eles abandonaram-me, a mim que sou a fonte viva, para cavarem cisternas - cisternas cheias de fendas que não conservam a água (cisternas dissipatas)" (Jer II, 13). Estejamos atentos a esta hora da graça, que, quem sabe, pode soar pela última vez. "Se ouvirdes hoje a sua voz, não endureçais o vosso coração" (Heb IV, 7).
Um Monge Cartuxo, Intimidade com Deus.
terça-feira, 8 de novembro de 2011
L'amour
O amor, se é amor, deve amar.
Eis algumas características do amor legítimo:
- É amigo da verdade, do bem e da beleza
- É firme até a violência
- Submete amante ao objeto amado
- Conforma o amante ao objeto amado
- De tal modo move o amante em direção ao amado, que faz o amante esquecer-se de si mesmo.
Se não tiver essas características, de amor pode ter só o nome.
"Feliz o coração enamorado
Que só em Deus coloca o pensamento.
Por ele renuncia as criaturas
E encontra nele glória e contento.
E vive até de si tão descuidado
Pois no seu Deus está o seu intento.
E atravessa alegre e jubiloso
As ondas deste mar tempestuoso"
Sta Teresa D'Avila
Um pequeno fio e... eis o céu
Esse final de semana, participei de um retiro e, num determinado momento, foram-me dadas algumas folhas sendo que, numa delas, havia a já tão conhecida estória do alpinista que, despencando de um alto monte, fica preso somente pela corda que lhe sustenta pela cintura. Aconselhado por Deus para cortar a corda, ele recusa; prefere acreditar no seu próprio medo - ou seu apego à vida - e não corta. No outro dia, o encontram morto, a apenas 20 centímetros do chão. É interessante como estas estorinhas, por mais bobas que sejam, refletem sempre - ou quase - grandes verdades. Neste caso, vemos claramente a bobice que foi acreditar que o real correspondia exatamente às próprias suposições motivadas pelo medo e pelo apego que se recusou renunciar.
Embora me fosse uma história bem conhecida, fiz questão de a ler inteira. No final, havia uma pergunta:
"E você, que tão seguro você está da sua corda? Por que você não a solta?"
Lembrei-me logo de S. João da Cruz, o santo que nos recomenda um rigoroso desapego de tudo e nos diz que, às vezes, o que nos prende é um simples fio, fino, fácil de quebrar, mas suficiente para nos impedir de voar. E o santo, sem gracejos, recomenda parti-lo sem dó.
Sim, é o que farei.
quinta-feira, 3 de novembro de 2011
Viktor Frankl e a Logoterapia - A busca do sentido da vida
Das reflexões de Frankl sobre a experiência do absurdo nasceu um dos mais impressionantes sistemas de terapia criados no século dos psicólogos: a logoterapia, ou terapia do discurso - um conjunto de esquemas lógicos usados para desmontar os subtefúrgios com que a mente doentia procura eludir a questão decisiva: a busca de sentido.
Mas o sentido não teria o menor poder curativo se fosse apenas uma esperança inventada. A mente não poderia encontrar dentro de si a solução de seus males, pela simples razão de que o seu mal consiste em estar fechada dentro de si, sem abertura para o que lhe é superior. Em vez de criar um sentido, a mente tem de submeter-se a ele, uma vez encontrado. O sentido não tem de ser moldado pela mente, mas a mente pelo sentido. O sentido da vida, enfatiza Frankl, é uma realidade ontológica, não uma criação cultural. Frankl não dá nenhuma prova filosófica desta afirmativa, mas o caminho mesmo da cura logoterapêutica fornece a cada paciente uma evidência inequívoca da objetividade do sentido da sua vida. O sentido da vida simplesmente existe: trata-se apenas de encontrá-lo.
Universal no seu valor, individual no seu conteúdo, o sentido da vida é encontrado mediante uma tenaz investigação na qual o paciente, coma ajuda do terapeuta, busca uma resposta à seguinte pergunta: Que é que eu devo fazer e que não pode ser feito por ninguém, absolutamente ninguém exceto eu mesmo? O dever imanente a cada vida surge então como uma imposição da estrutura mesma da existência humana. Nenhum homem inventa o sentido da sua vida: cada um é, por assim dizer, cercado e encurralado pelo sentido da própria vida. Este demarca e fixa num ponto determinado do espaço e do tempo o centro da sua realidade pessoal, de cuja visão emerge, límpido e inexorável, mas só visível desde dentro, o dever a cumprir.
Em vez de dissolver a individualidade humana nos seus elementos, mediante análises tediosas que arriscam perder-se em detalhes irrelevantes, a logoterapia busca consolidar e fixar o paciente, de imediato, no ponto central do seu ser, que é, e não por coincidência, também o ponto mais alto. Eis aí por que é inútil buscar provas teóricas do sentido da vida: ele não é uma máxima uniforme, válida para todos - é uma obrigação imanente que cada um tem de transcender-se. Discutir o sentido da vida sem realizá-lo seria negá-lo; e, uma vez que começamos a realizá-lo, já não é preciso discuti-lo, porque ele se impõe com uma evidência que até a mente mais cínica se envergonharia de negar.
A logoterapia tem uma imponente folha de sucessos clínicos. Porém mais significativa do que suas aplicações médicas talvez seja a função que ela desempenhou e desempenha - a missão que ela cumpre - no panorama da cultura moderna. Num século que tudo fez para deprimir o valor da consciência humana, para reduzi-la a um epifenômeno de causas sociais, biológicas, linguísticas, etc., Frankl nadou na contracorrente e ninguém conseguiu detê-lo. Ninguém: nem os guardas do campo nem as hostes inumeráveis de seus antípodas intelectuais - os inimigos da consciência.
Frankl apostou no sentido da vida e na força cognoscitiva da mente individual. Apostou nos dois azarões do páreo filosófico do século XX, desprezados por psicanalistas, marxistas, pragmatistas, semióticos, estruturalistas, descontrucionistas - por todo o pomposo cortejo de cegos que guiam outros cegos para o abismo. Apostou e venceu.
Olavo de Carvalho, O Imbecil Coletivo II. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.
Olavo de Carvalho, O Imbecil Coletivo II. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.
A salvação do Homem é através do amor e no amor
"Um pensamento me traspassou: pela primeira vez em minha vida enxerguei a verdade tal como fora cantada por tantos poetas, proclamada como verdade derradeira por tantos pensadores. A verdade de que o amor é o derradeiro e mais alto objetivo a que o homem pode aspirar. Então captei o sentido do maior segredo que a poesia humana e o pensamento humano têm a transmitir: a salvação do homem é através do amor e no amor.
Compreendi como um homem a quem nada foi deixado neste mundo pode ainda conhecer a bem-aventurança, ainda que seja apenas por um breve momento, na contemplação da sua bem-amada. Numa condição de profunda desolação, quando um homem não pode mais se expressar em ação positiva, quando sua única realização pode consistir em suportar seus sofrimentos da maneira correta - de uma maneira honrada -, em tal condição o homem pode, através da contemplação que ele traz de sua bem-amada, encontrar a plenitude. Pela primeira vez em minha vida, eu era capaz de compreender as palavras: "Os anjos estão imersos na perpétua contemplação de uma glória infinita"."
Viktor Frankl, em alusão ao campo de concentração nazista onde ficou preso.
Homens de Dever x Homens de Prazer
Distribuídos na humanidade, independentemente de classes econômicas, culturas ou religiões, estes dois tipos de homens ocupam exaustivamente o globo. Não direi que seja comum a encarnação pura de um destes dois extremos, mas, sob diversos matizes, em certas pessoas predomina o senso do dever, enquanto noutras ganha o interesse de prazer. Estas últimas são, sem dúvida, muito mais comuns, mas são as primeiras que fazem perseverar no mundo o que ainda há de dignidade.
Agir sempre segundo os nossos interesses é bastante fácil, mas não é muito inteligente. Como eu já escrevi diversas vezes, ser egoísta implica reduzir o mundo inteiro, em todas as suas dimensões e valores, ao nível estreito da subjetividade. E, como se não bastasse, o sujeito não apenas apequena tudo à sua medida enquanto indivíduo, mas o faz segundo o seu estado interior imediato. O que lhe interessa é o que, naquele momento, lhe parece proveitoso à própria sensibilidade. Sendo que está justamente aí a raiz da inconstância, e que esta se define como uma oscilação contínua de disposições, o sujeito sequer saberá dizer qual a sua posição definitiva, variando-a de momento a momento, terminando por carecer de unidade naquilo que faz ou que acredita. A única unidade existente nesta vida, o seu próprio ego caprichoso, surge como ditador ao qual deverão obedecer os fatos, os valores, as realidades metafísicas, etc.
Caso muito diverso é o do homem de dever. Este sabe que, acima e independentemente de si mesmo, existem realidades às quais não caberá reduzir. Ao contrário, entendendo a objetividade dos princípios, o sujeito é que se porá em harmonia com eles. Isto implicará, naturalmente, a relativização dos próprios gostos, dos próprios interesses imediatos, e ele só poderá fazer isto se entende que aquilo que o define como indivíduo, como pessoa, se encontra num nível mais profundo que o das sensações imediatas. É uma questão de humildade, de saber que ocupamos um lugar modesto na realidade e que esta naturalmente nos precede. Existe uma ordem intrínseca ao real e que é preciso obedecer. Esta ordem está fundamentada na verdade, na beleza e na bondade. Estes três, chamados universais, na verdade constituem uma unidade e são a mesma realidade considerada sob aspectos diversos. O homem do dever deve agir segundo o bem; mas somente entenderá o que é o bem se se interessa pela verdade. Se, por sua vez, ele busca a verdade e cultiva o bem, terá um profundo senso da beleza.
Desta humildade, que é um respeito pela verdadeira ordem das coisas, é que surge a constância e a fidelidade. É aí também que está a profundidade na compreensão do mundo e, portanto, está aí a sabedoria. Disto descende toda a moral. É pela fidelidade a estes princípios que o homem poderá alcançar o nível da maturidade. E se ele é um dos que cultivam o ideal da santidade, sequer o compreenderá se não for por este caminho. Jesus já o tinha dito de modo muito mais profundo e muito mais direto: "Quem quiser me seguir, negue-se a si mesmo". Estes preceitos são abismos de verdade, aos quais devemos sempre aprofundar e nos quais encontraremos tesouros que, embora escondidos, são preciosíssimos. Convertamo-nos.
quarta-feira, 2 de novembro de 2011
A solidão e o amor
A solidão é, por vezes, mera questão de escolha, de inércia ou de ego. Bastaria olhar ao redor para sabê-lo. Em outras ocasiões, ela será, no entanto, condição de crescimento e alcance da grandeza.
Às vezes a solidão surge do descaso, do medo de comprometer-se, de ceder, do adiamento irresponsável do abraço; em outros momentos, ela será condição de fidelidade, de intransigência amorosa.
A solidão pode surgir quando não há decisão pelo amor. Mas pode também se dar enquanto resguarda o valor de um amor e o aperfeiçoa.
O amor, sendo adesão, implica muitos 'nãos'. Quando alguém se decide por outro alguém, ele diz 'não' a todas as outras possibilidades. Mas, se não ousa dizer este 'não' à multiplicidade, dirá 'não' necessariamente ao amor.
Decidir-se pelo amor é arriscar-se; é tomar uma atitude corajosa; é transcender o mero cálculo do próprio ganho; é sobretudo um lançar-se. Jesus já o tinha dito: amar é como perder a vida; eis a condição para ganhá-la.
Talvez implique numa certa solidão. Mas quão diferente é esta daquela outra solidão que não é, senão, o medo do dar-se. Deste medo, que também é morte, não surge nenhuma vida. Esta é a solidão de quem se recusou a amar, por medo de se ferir.
Sobre este assunto, S. João da Cruz tem uma frase majestosa: "O amor quanto mais fere, mais cura e, quanto mais cura, mais fere".
Que um dia, depois de deixarmos de meninices, possamos reviver aquilo que Sta Teresa D'Avila tão belamente descreveu: "De amor está se abrasando o que nasceu tiritando".
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