O Pe. Lima Vaz, grande metafísico, escreve que há, na história, dois grandes movimentos da humanidade: um de ascensão que se identifica com a abertura à transcendência, isto é, o olhar voltado àquilo que está para além do mundo. E há o movimento decadente, o da imanência, aquele em que o mundo se fecha em si mesmo, numa auto-suficiência tola. Do primeiro movimento, o transcendente, fazem parte a Filosofia Grega nos seus maiores expoentes, a Filosofia Medieval e a Religião Cristã. Do segundo movimento haverá uma prevalência na modernidade. Ao excluir o campo do Mistério, cai-se num tipo de absolutização da própria história e a redução da razão última do mundo ao mero curso dos acontecimentos. É Hegel, Feuerbach, Marx, Darwin, Freud, etc, etc. Neste tipo de "filosofia", termina-se por fazer o racional descender do irracional.
Também na nossa vida cotidiana, estamos tão acostumados ao modo de visão imanentista, que, até sem perceber, caímos em atitudes bastante subjetivistas. Fazemos mui facilmente do nosso ego o centro da realidade e reduzimos tudo quanto há à nossa medida pequena. Se aderimos a uma religião, mal aceitamos que Deus ultrapasse o nosso entendimento na prática. Nós aceitamos que Ele corresponda ao nosso conceito de supra-conceitual, ainda que não permitamos que, de verdade, Ele nos escape. Não raro, escolheremos seguir um deus à nossa imagem e semelhança e interpretaremos as verdades de fé sempre ao nosso modo. Aceitaremos aquilo que nos seja confortável e rejeitaremos o que não couber nos nossos interesses.
Até defenderemos a idéia do esvaziamento, mas sem que isto implique um real esvaziamento da nossa parte. No fundo o que nos move é o nosso próprio interesse, o nosso próprio benefício, a nossa própria reputação. Faremos tudo isto talvez sem dar-nos conta de como é repugnante essa nossa instrumentalização da Fé. Apontaremos para cima mas, na verdade, estaremos indicando o caminho para o nosso umbigo, que supomos ser a régua última de toda a existência e que, portanto, deve bem estar localizado lá em cima, no centro do universo.
Se empreendemos um projeto de conversão, começaremos com o nosso costume tosco de prever por quais caminhos teremos de passar e quais os estágios que teremos de alcançar. E, depois, começamos a andar, supondo que tudo já foi exaustivamente esquadrinhado por nós e, portanto, já nos é previamente conhecido. Não permitiremos que nada escape à nossa descrição sem que seja, na mesma medida, recusado, expurgado.
Como lidar com um Deus que absolutamente nos ultrapassa? Que é transcendente? Com este Deus não saberemos lidar e, portanto, não O entenderemos, nem O amaremos. Melhor aquele outro, fruto da nossa idéia, e que cabe direitinho na forma que nós compomos com a matéria prima da nossa soberba.
De Jesus mesmo, se continuamos agindo desse modo, nada saberemos, ainda que usemos o Seu nome para chamar o deus que nós mesmo inventamos. E passamos a vida sem aceitar o mistério, fazendo de conta que Deus está felicíssimo com tudo quanto fazemos e que, no fim, Ele é bonzinho segundo o nosso conceito de bonzinho. Ele deve identificar-se totalmente - é o que achamos - com os nossos valores e terminamos, veja só, elevando os nossos próprios critérios ao nível divino. De repente, somos o que há de mais elevado no mundo e isto sem termos feito sequer muito esforço. Eis aonde leva a "religião ao meu modo".
O Gustavo Corção, grande escritor brasileiro, escrevia com profundo senso: "uma das razões pelas quais o catolicismo me encantou é que ele era uma religião que não fora feita por mim". Era algo a que ele tinha de se adaptar ou, usando um termo mais apropriado neste terreno, a que ele tinha de se converter. Para que esta conversão se desse, era preciso que ele negasse a si mesmo, e não que negasse a religião. Se ele se nega, está a fazer justamente o que Jesus disse - quem quiser me seguir, negue-se - e a abrir-se a algo que é maior que ele e, portanto, vai rumando para a liberdade dos vastos horizontes. Se, ao contrário, ele se afirma a si mesmo ao ponto de negar o que na religião lhe desagrada, ele está, de novo, se fechando na imanência que nada mais é do que prisão, engano, redução de tudo quanto existe à própria medida, e eleição de si mesmo como redentor do mundo. Esta via do engodo foi empreendida, primeiramente, por Adão. E foi para nos libertar disto que o Cristo se fez carne e rebaixou-Se à nossa pobre condição para que pudesse nos elevar à Sua.
É como dizia S. João da Cruz: "O que Deus pretende é fazer-nos deuses por participação, sendo-o Ele por natureza".
Bendita seja a dimensão do Mistério que, acima de nós, abre uma via sem fim, sem limites e que, então, não obedece a qualquer tentativa de antecipação. Bendito seja o mistério que nos liberta de nós mesmos!
"O que o olho humano não viu, o que o ouvido não ouviu, o que o coração não imaginou... eis o que Deus tem preparado para os que O amam..."
Bendita seja a dimensão do Mistério, o oceano abismal e inesgotável de Deus.
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