sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Neuroses - Não Vinculação


Vínculo quer dizer ligação. Estar vinculado é estar ligado. Isso é óbvio ao infinito. Porém, é preciso entender que há dois modos muito particulares pelos quais nos vinculamos às coisas e que são, nada mais nada menos, aqueles dois pelos quais iniciamos esta série de artigos sobre este tema: o medo e o desejo.

Comecemos por este último.

Ninguém terá dificuldade de entender que, quando desejamos algo, naturalmente nos apegamos àquilo; estabelecemos com o tal objeto um vínculo, pelo menos no íntimo da nossa alma. Um sujeito apaixonado, ainda que não seja correspondido, isto é, ainda que seu vínculo não se reproduza no real, estará cultivando-o dentro de si. Enquanto estiver apaixonado isto persistirá. Faz parte da estrutura do apaixonamento. Porém, para estabelecer um vínculo, nem é preciso chegar ao nível do apaixonamento: um simples desejo e eis-nos fisgados. Se estamos desejando ir à praia, se queremos comer uma fruta específica, se nos faz falta ver tal amigo, etc, etc, tudo isto são vínculos que trazemos dentro de nós. De um ponto de vista meramente ordinário, isto nos parece a coisa mais natural que há. Do ponto de vista espiritual, porém, isto traz algumas dificuldades. Uma das coisas que se requer para progredir na intimidade com Deus é o desapego, o rompimento destes vínculos pelo cordão do desejo, a fim de que o coração esteja totalmente livre para Deus. Esta atitude, porém, não faz que o sujeito assuma uma atitude de desprezo diante dos demais, como às vezes é suposto; é amando a Deus de modo mais pleno que o sujeito poderá amar as outras pessoas, também de modo pleno e sem propriedade, uma vez que seu amor tornou-se mais perfeito. A ilusão que permeia o mundo, aqui, é que em geral confundimos o amor com o apego, muito embora sejam coisas absolutamente diferentes.

Espero que tenha ficado claro como o desejo cria vínculos e, naturalmente, move a alma em direção daquilo que se deseja. Estabelece, como dizíamos no primeiro artigo, uma tensão na alma que a põe em movimento. Lembremos que a quietude interior é fundamental para que tenhamos uma visão clara das coisas.

Tudo bem, o desejo faz isso mesmo. Mas, e o medo? Sendo o medo justamente uma atitude de fuga, como que nos vincula com algo? Para responder, consideremos que o medo é um tipo de desejo às avessas: é o desejo de que tal coisa não aconteça ou de que tal coisa se mantenha longe. Ora, nesta estrutura é forçoso destacar o que é a "tal coisa". Se o medo é neurótico, construir-se-á, na alma, um vínculo entre a pessoa e a idéia da coisa temida. Este vínculo, embora seja orientado para a defesa do sujeito, terminará, ao contrário, por assombrá-lo. Diante de todo um universo de objetos e situações, todas elas indefinidas ao fundo, o neurótico destaca da multidão precisamente aquilo que ele teme. É como se ele encontrasse o objeto pelo qual tem repulsa e o pusesse diante dos olhos. Convenhamos que é uma sacanagem com ele mesmo, rsrs... O neurótico vive se sacaneando. As suas reclamações constantes da vida são, na maioria das vezes, empecilhos que ele mesmo se coloca.

Tomemos como exemplo o quase tradicional medo de aranha nas mulheres. Se isto é um medo neurótico, uma simples mancha escura no canto da parede já lhe parecerá, inconfundível e indubitavelmente, uma aranha. Pelo menos até que olhe uma segunda vez e de mais perto. O problema é fazer com que esta segunda vez aconteça. A crença na própria suposição precipitada é tão forte que a menina eleva, em um milésimo de segundo, uma mera impressão sensível ao status de verdade auto-evidente ao extremo.

Se, no entanto, a garotinha não é neurótica, a mancha escura será só uma mancha escura, ou, pelo menos, poderá ser uma sujeira, uma marca de tinta, um objeto de borracha, qualquer outro animalzinho gracioso, ou qualquer outro dos infinitos objetos pequenos e escuros. Diante de uma infinidade de possibilidades, qual o motivo racional para ter medo especificamente de aranha? NENHUM!  O que aconteceu com a pessoa medrosa é que ela tinha um vínculo, um contrato interior com a idéia de aranha, o que faz com que qualquer coisa que possa ser, mesmo de longe, associada a tal idéia desperte a reação de medo. Quer estratégia de sacanagem mais arranjada?

O medo termina por criar o vínculo com a coisa temida, pois a destaca na multidão de eventos possíveis no mundo. Inúmeras vezes, inclusive, o objeto sequer estará nesta multidão, sendo mesmo impossível, mas o sujeito faz questão de trazê-lo e inventá-lo. No fundo, ele pensa que é melhor angustiar-se garantido contra o perigo do que relaxar e estar exposto ao que teme, ainda que o que teme seja ser abduzido.

O que é que se deve fazer, então? Numa ascese espiritual, conviria aprender a trabalhar o desapego em geral: desfazer os vínculos do desejo e os do medo. Mas, em se tratando especificamente destas neuroses, é preciso aprender a não destacar o objeto temido, a não considerá-lo na mente, a permitir que a sua figura se confunda no conjunto indefinido de objetos do universo. Deixa esses objetos quietos! Não precisa destacá-los. A reação primeira será fixar a mente no tal negócio temido quando supor tê-lo visto ou quando for antecipar situações em que ele possa insinuar-se. Porém, convém treinar para que estas antecipações não se dêem e para que o coração permaneça livre, sem objetos imaginários ameaçadores. Não destacar! Não vincular!

Para isto, requer-se, obviamente, disciplina e esta não se consegue de modo meramente teórico. Só vem com a prática. É a prática que dá substância aos passos e ensina a arte do combate interior. Ainda que um indivíduo concorde com tudo o que pus aqui, se ele não se dispõe a disciplinar os seus pensamentos, as suas suposições, etc., será apenas um conhecimento a mais sem qualquer consequência substancial para ele. Talvez ele se sinta um pouco aliviado por saber que dá pra quebrar esta dinâmica chata das suposições neuróticas. Não precisamos ser cativos desse monte de abobrinhas. Mas, para chegar aí, é preciso ir ao campo de batalha e lutar. Olhar na cara do bicho papão, se for preciso, e aprender a não se incomodar com ele. O único motivo que o bicho papão tem de existir é assustar. É por isso que ele ainda existia quando éramos crianças. Desde que crescemos e que ele deixou de fazer parte de qualquer vínculo interior nosso, ele deixou de existir. Com a neurose, pode ser a mesma coisa.

A pessoa terá amadurecido quando a idéia tão temida não lhe causar mais qualquer repercussão interior. Se ela adquire este tipo de quietude, significa alcançou também uma maior maturidade e é de dentro mesmo de sua alma - não mais da superfície - que ela vive. E isso é um negócio que vale a pena.

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