domingo, 29 de abril de 2012

Faz o que quer


A mera espontaneidade não pode ser critério da moral (como também não ´é na arte musical, por exemplo: para tocar piano).

No entanto, S. Tomás afirma: "As virtudes nos aperfeiçoam para que possamos seguir nossas inclinações naturais de modo devido" (II-III, 108, 2).

Na verdade, só com a perfeição da virtude a espontaneidade moral ganha total legitimidade: a improvisação de um virtuose ao piano é deliciosa; a minha, desastrosa.

É a distinção entre o querer e o - para usar a linguagem mais popular - "estar a fim". A virtude faz com que "estejamos a fim" do que realmente, por natureza, queremos*.

A sabedoria popular refere-se ao craque dizendo que ele, sim, faz o que quer com a bola; e também o bom músico é o que faz o que quer com o instrumento. O homem bom (moralmente) faz o que quer simpliciter.

LAUAND, Jean. Linguagem e Ética; Ensaios. Curitiba: Editora Universitária Champagnat, 1989.

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* O "queremos" não faz referência ao aspecto superficial, como se dissessem respeito a vontades caprichosas, mas ao que, profundamente, nossa alma anseia pela sua própria constituição natural ainda que de tais desejos não tenhamos atual consciência.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Guerra e Ternura


Ontem, meditando sobre a minha vida espiritual, sobre as minhas tantas negligências, dei-me conta, de um modo mais acentuado, de como ando distante de Deus. Na verdade, eu sempre estou percebendo, olhando e vendo isso. Porém, ontem eu contrastei esta situação - ruim, tíbia - com a ternura com que eu costumava olhar para Deus e que constitui parte essencial da minha espiritualidade pessoal.

E, enquanto me dava conta destas coisas, eu li em S. Josemaria Escrivá o seguinte:

"A guerra! - A guerra - dizes - tem uma finalidade sobrenatural desconhecida do mundo; a guerra foi feita para nós... A guerra é o obstáculo máximo do caminho fácil. - Mas temos de amá-la, ao fim e ao cabo, como o religioso deve amar as suas disciplinas." (Caminho, nº 311.)

Estas coisas parecem contraditórias à primeira vista, não? Pois é! Mas não são! Muito pelo contrário. É preciso fazer guerra a si mesmo a fim de manter a ternura e o frescor do amor a Deus. É preciso lutar muito para manter a integridade, não apenas o vigor da ação positiva, mas também a delicadeza e a sutileza da alma, sem as quais compreenderemos o Cristo muito pouco.

Lembrava-me de uma frase de S. João da Cruz que muito me impressionou na ocasião em que a li pela primeira vez: "É preciso tornar-se delicado para que a delicadeza encontre a Delicadeza". E, quem conhece S. João da Cruz, saberá que, ao fundo de sua ternura única e do seu imenso carinho por Cristo, há toda uma estratégia de guerra contra a soberba, explicada passo a passo, milímetro a milímetro e que espanta pela violência e pelo rigor. Brincando um pouco com isso, ironizava com o santo, o Thomas Merton: "será mesmo ele o mesmo escritor de 'Viva Chama de Amor'?"

Pois bem: é preciso amar a guerra e manter a ternura da alma. Nestes tempos difíceis, temos de ter o cuidado de não embrutecer o espírito, de não cair no engodo de uma espiritualidade seca sob pretexto de que este é o caminho dos fortes. De fato, as emoções e intensos afetos sensíveis não fazem necessariamente parte da vida espiritual e devem ser deixados de lado, com certa indiferença, a fim de abrirem espaço a um amor mais puro e forte. Porém, disto não se deduz que a pessoa deva tornar-se ríspida, supondo que Nosso Senhor despreza as pequenas atitudes, os ternos gestos, a amabilidade da alma para com Ele. É preciso, sim, que nos tornemos delicados, não de uma delicadeza romântica moderna, cheia de susceptibilidades e 'não-me-toques', mas de uma delicadeza viril, do homem que, experimentado nos combates da vida - sejam estes morais ou doutrinários - e sem tempo ou saco de deter-se em contemplações inúteis quando é preciso agir - sejam estas as das próprias supostas virtudes ou das dificuldades do caminho -, contudo não renuncia deter-se terna e amorosamente na contemplação de Jesus, no trato íntimo e enamorado com Ele, na doce e calma quietude que permite olhá-Lo em cada gesto e palavra, que permite participar do Seu silêncio e tê-Lo por companhia deliciosa.

Sim.. Devemos entender a oração não como um mero compromisso enfadonho ao qual devemos nos submeter de modo heróico, passando por cima da nossa própria vontade que, sinceramente, não quer nada daquilo, preocupada que está com futilidades. Não. Devemos, antes, ter uma concepção diferente da oração: é uma oportunidade, uma feliz ocasião de estarmos, de novo, com Ele. Sta Teresa D'Avila já dizia: "A oração não consiste em dizer muito, mas em amar muito". E é preciso redescobrir este tesouro, este sumo bem que é o trato íntimo com Nosso Senhor. E é preciso descobri-lo de um modo muito pessoal.

Guerra e ternura cultivemos, como um verdadeiro cavaleiro cruzado. Que Nosso Senhor nos ensine. Ámen.

O Sofrimento - Thomas Merton


"Que é, afinal, mais pessoal do que o sofrimento? A espantosa futilidade dos nossos esforços para comunicar a outrem a realidade dos nossos sofrimentos, e a trágica insuficiência da simpatia humana, tudo prova como é realmente incomunicável o sofrimento"

"O sofrimento, portanto, deve ser entendido para nós, não como uma vaga necessidade universal, mas como coisa exigida pelo nosso destino pessoal. Quando eu vejo as minhas provações não como a colisão da minha vida com uma cega máquina chamada fatalidade, mas como o dom sacramental do amor de Cristo, dado a mim por Deus Pai juntamente com a minha identidade e o meu nome verdadeiro, então eu posso consagrá-las e a mim mesmo com elas, ao Senhor. Pois aí compreendo que o meu sofrimento não é meu. Ele é a Paixão de Cristo, a estender até à minha vida os seus rebentos, a fim de produzir abundantes cachos, embriagando a minha alma com o vinho do amor de Cristo, e derramando esse vinho, ardente como o fogo, sobre o mundo inteiro"

Thomas Merton, Homem Algum é Uma Ilha.

domingo, 22 de abril de 2012

Jesus abriu-lhes a inteligência


"Então Jesus abriu a inteligência dos discípulos para entenderem as Escrituras" (Lc 24,45)


Ótimo trecho para os racionalistas imanentistas meditarem. 
Oh homens, não sois auto-suficientes.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

"Viva Paulo Freire!" Olavo de Carvalho


Vocês conhecem alguém que tenha sido alfabetizado pelo método Paulo Freire? Alguma dessas raras criaturas, se é que existem, chegou a demonstrar competência em qualquer área de atividade técnica, científica, artística ou humanística? Nem precisam responder. Todo mundo já sabe que, pelo critério de “pelos frutos os conhecereis”, o célebre Paulo Freire é um ilustre desconhecido.

As técnicas que ele inventou foram aplicadas no Brasil, no Chile, na Guiné-Bissau, em Porto Rico e outros lugares. Não produziram nenhuma redução das taxas de analfabetismo em parte alguma.

Produziram, no entanto, um florescimento espetacular de louvores em todos os partidos e movimentos comunistas do mundo. O homem foi celebrado como gênio, santo e profeta.

Isso foi no começo. A passagem das décadas trouxe, a despeito de todos os amortecedores publicitários, corporativos e partidários, o choque de realidade. Eis algumas das conclusões a que chegaram, por experiência, os colaboradores e admiradores do sr. Freire:

“Não há originalidade no que ele diz, é a mesma conversa de sempre. Sua alternativa à perspectiva global é retórica bolorenta. Ele é um teórico político e ideológico, não um educador.” (John Egerton, “Searching for Freire”, Saturday Review of Education, Abril de 1973.)

“Ele deixa questões básicas sem resposta. Não poderia a ‘conscientização’ ser um outro modo de anestesiar e manipular as massas? Que novos controles sociais, fora os simples verbalismos, serão usados para implementar sua política social? Como Freire concilia a sua ideologia humanista e libertadora com a conclusão lógica da sua pedagogia, a violência da mudança revolucionária?” (David M. Fetterman, “Review of The Politics of Education”, American Anthropologist, Março 1986.)

“[No livro de Freire] não chegamos nem perto dos tais oprimidos. Quem são eles? A definição de Freire parece ser ‘qualquer um que não seja um opressor’. Vagueza, redundâncias, tautologias, repetições sem fim provocam o tédio, não a ação.” (Rozanne Knudson, Resenha da Pedagogy of the Oppressed; Library Journal, Abril, 1971.)

“A ‘conscientização’ é um projeto de indivíduos de classe alta dirigido à população de classe baixa. Somada a essa arrogância vem a irritação recorrente com ‘aquelas pessoas’ que teimosamente recusam a salvação tão benevolentemente oferecida: ‘Como podem ser tão cegas?’” (Peter L. Berger, Pyramids of Sacrifice, Basic Books, 1974.)

“Alguns vêem a ‘conscientização’ quase como uma nova religião e Paulo Freire como o seu sumo sacerdote. Outros a vêem como puro vazio e Paulo Freire como o principal saco de vento.” (David Millwood, “Conscientization and What It's All About”, New Internationalist, Junho de 1974.)

“A Pedagogia do Oprimido não ajuda a entender nem as revoluções nem a educação em geral.” (Wayne J. Urban, “Comments on Paulo Freire”, comunicação apresentada à American Educational Studies Associationem Chicago, 23 de Fevereiro de 1972.)

“Sua aparente inabilidade de dar um passo atrás e deixar o estudante vivenciar a intuição crítica nos seus próprios termos reduziu Freire ao papel de um guru ideológico flutuando acima da prática.” (Rolland G. Paulston, “Ways of Seeing Education and Social Change in Latin America”, Latin American Research Review. Vol. 27, No. 3, 1992.)

“Algumas pessoas que trabalharam com Freire estão começando a compreender que os métodos dele tornam possível ser crítico a respeito de tudo, menos desses métodos mesmos.” (Bruce O. Boston, “Paulo Freire”, em Stanley Grabowski, ed., Paulo Freire, Syracuse University Publications in Continuing Education, 1972.)

Outros julgamentos do mesmo teor encontram-se na página de John Ohliger, um dos muitos devotos desiludidos (http://www.bmartin.cc/dissent/documents/Facundo/Ohliger1.html#I).

Não há ali uma única crítica assinada por direitista ou por pessoa alheia às práticas de Freire. Só julgamentos de quem concedeu anos de vida a seguir os ensinamentos da criatura, e viu com seus próprios olhos que a pedagogia do oprimido não passava, no fim das contas, de uma opressão da pedagogia.

Não digo isso para criticar a nomeação póstuma desse personagem como “Patrono da Educação Nacional”. Ao contrário: aprovo e aplaudo calorosamente a medida. Ninguém melhor que Paulo Freire pode representar o espírito da educação petista, que deu aos nossos estudantes os últimos lugares nos testes internacionais, tirou nossas universidades da lista das melhores do mundo e reduziu para um tiquinho de nada o número de citações de trabalhos acadêmicos brasileiros em revistas científicas internacionais. Quem poderia ser contra uma decisão tão coerente com as tradições pedagógicas do partido que nos governa? Sugiro até que a cerimônia de homenagem seja presidida pelo ex-ministro da Educação, Fernando Haddad, aquele que escrevia “cabeçário” em vez de “cabeçalho”, e tenha como mestre de cerimônias o principal teórico do Partido dos Trabalhadores, dr. Emir Sader, que escreve “Getúlio” com LH. A não ser que prefiram chamar logo, para alguma dessas funções, a própria presidenta Dilma Roussef, aquela que não conseguia lembrar o título do livro que tanto a havia impressionado na semana anterior, ou o ex-presidente Lula, que não lia livros porque lhe davam dor de cabeça.

domingo, 15 de abril de 2012

A abnegação e a lógica do desprendimento


Porque amamos só a Deus, além e acima de todas as coisas, e como o nosso amor nos mostra que Ele excede infinitamente à bondade de todas elas, ficamos indiferentes a tudo que não é Deus. Mas, ao mesmo tempo, o nosso amor nos habilita a achar, em Deus mesmo, a bondade e a realidade de todas as coisas a que renunciamos por Ele. Nós, assim, vemos até naquilo que abandonamos, Aquele que amamos, e n'Ele tudo reencontramos. Embora a graça do Espírito Santo nos ensine a usar das coisas criadas "como se não usássemos", isto é, com desapego e indiferença, não nos faz ela indiferentes ao valor das coisas como tais. Pelo contrário, é só quando nos desapegamos da criatura, que começamos a avaliá-la, como deveríamos. É só quando elas nos são indiferentes que começamos realmente a amá-las. A indiferença, pois, de que falo, deve ser uma indiferença não das coisas propriamente mas dos seus efeitos na nossa vida.

O homem que se prefere a Deus ama as coisas e as pessoas pelo bem que delas pode tirar. O seu amor egoísta tende a destruí-las, a consumi-las, a absorvê-las no seu próprio ser. O seu amor pelas coisas é um aspecto apenas do seu egoísmo, e não passa de um preconceito em seu próprio favor. Tal homem não é absolutamente indiferente ao efeito das coisas, das pessoas e dos acontecimentos na sua vida, mas é, de fato, desprendido do bem das coisas e das pessoas, consideradas à parte do seu próprio benefício. Em relação ao bem que ele retira das coisas, esse homem não é nem desprendido nem desinteressado. Mas, diante do bem próprio das coisas, ele é de todo indiferente.

Quem ama a Deus mais do que a si mesmo, é capaz de também amar as pessoas e as coisas pelo bem que elas possuem em Deus. Equivale a dizer que ele ama a glória que as coisas rendem a Deus: porque essa glória é o reflexo de Deus na bondade, comunicada por Ele às criaturas. Tal homem é indiferente ao embate das coisas na sua própria vida. Ele só considera as coisas na sua relação à glória de Deus e à sua Vontade. Por maior que seja a sua utilidade e satisfação temporal, Ele fica indiferente. Mas, quanto ao valor das coisas em si mesmas, ele não é mais indiferente do que em relação a Deus. Ama-as no mesmo ato pelo qual renunciou. E nesse amor que se afirma pela renúncia, ele as recupera num nível mais alto.

Dizer que a renúncia cristã deve ser ordenada para Deus, é dizer que ela deve frutificar numa vida profunda de oração e em obras de caridade. A renúncia cristã não é questão de técnica de abnegação pessoal, começando e acabando nos estreitos limites da nossa própria alma. É o primeiro movimento de uma liberdade que, transcendendo os quadros de tudo que é finito, natural e contingente, entra em contato de amor com a bondade infinita de Deus e daí vai atingir todas as coisas que Ele ama.

A renúncia cristã é só o começo de uma divina plenitude. É inseparável da íntima conversão de nosso ser inteiro que se volta de nós mesmos para Deus. É a rejeição da nossa imperfeição, a renúncia da nossa pobreza, para que possamos mergulhar na plenitude das riquezas de Deus e da sua criação, sem recair no nosso próprio nada.

A abnegação livra-nos das paixões e do amor próprio. Liberta-nos desse supersticioso apego ao nosso eu, como se fôssemos um deus. Livra-nos da "carne" no sentido técnico do Novo Testamento, mas não nos forra do corpo. Não é nenhuma fuga da matéria ou dos sentidos nem pretende ser. É o primeiro passo para a transformação do nosso ser inteiro, em que, segundo o plano de Deus, até os nossos corpos viverão à luz da glória divina e serão também, com as almas, transformados n'Ele.

sábado, 14 de abril de 2012

As Virtudes da Esperança e da Pobreza


É quando não desejamos as coisas deste mundo por elas mesmas, que ficamos aptos a vê-las como são realmente. Vemos ao mesmo tempo a sua bondade e a sua finalidade, e tornamo-nos capazes de apreciá-las como nunca antes. Tão logo nos desprendemos delas, eis que começam a agradar-nos. Mal cessamos de contar só com elas, ei-las prontas para servir-nos. Uma vez que não dependemos mais nem do prazer nem do auxílio que nos dão, elas oferecem-nos um e outro à ordem de Deus. Pois que disse Jesus: "Procurai, primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e todas as coisas (isto é, tudo que precisardes para a vossa vida na terra) vos serão dadas em acréscimo" (Mt 6,33).

Esperança sobrenatural é a virtude que nos despoja de tudo a fim de nos dar tudo. Ninguém espera por aquilo que já tem. Por conseguinte, viver de esperança é viver em pobreza, sem nada. E, no entanto, se nos entregamos à economia da Providência, nada do que esperamos nos faltará. Pela fé conhecemos a Deus sem O ver. Pela esperança possuímos a Deus sem sentir-Lhe a presença. Se esperamos em Deus já O possuímos pela esperança, pois ela é uma confiança que Ele cria em nossas almas, uma como evidência secreta de que Ele tomou posse de nós. Assim, a alma que espera em Deus, já Lhe pertence, e pertencer a Deus é o mesmo que possuí-Lo, pois Ele se entrega totalmente àqueles que a Ele se entregam. O que a fé e a esperança não nos dão, é somente a visão clara d'Aquele que nós já possuímos. Somos-Lhe unidos na obscuridade, porque temos de esperar. Spes quae videtur num est spes.

A esperança priva-nos de cada coisa que não é Deus, para que todas as coisas possam servir ao seu verdadeiro destino, que é levar-nos a Deus.

A esperança é proporcional ao desprendimento. Ele introduz a nossa alma no estado do mais perfeito despojamento. É graças a isto que ela restaura todos os valores, dispondo-os no seu justo lugar. A esperança esvazia-nos as mãos, para que possamos trabalhar com elas. Mostra-nos que temos razão de agir, e ensina-nos a fazê-lo.

Sem a esperança, a nossa fé só nos dá distantes relações com Deus. Sem o amor e a esperança, a fé só O conhece como a um estranho. Pois a esperança é que nos joga nos braços da sua misericórdia e da sua providência. Se esperamos em Deus, não nos limitaremos a saber que Ele é bom, mas experimentaremos nas nossas vidas a sua misericórdia.

Thomas Merton, Homem Algum é Uma Ilha, Sentenças Sobre a Esperança

terça-feira, 10 de abril de 2012

Dois modos de Pura Intenção: A Reta e a Simples


Em um lugar de sua obra, faz Tauler uma distinção entre dois graus da intenção pura: a um deles chama de reta intenção; a outro, de intenção simples. Eles servem para explicar a união de ação e contemplação em um todo harmonioso.

Quando temos reta intenção, a nossa intenção é pura. procuramos fazer a vontade de Deus com motivo sobrenatural. Temos em vista agradar a Deus. Mas, assim fazendo, nós ainda nos consideramos a nós e à nossa obra como algo à parte de Deus e fora d'Ele. Nossa intenção dirigi-se principalmente à obra a fazer. Quando o trabalho termina, descansamos em seu acabamento, e aguardamos a paga de Deus.

Mas, quando é uma intenção simples que temos, somos menos ocupados com a coisa a fazer. Tudo que então fazemos, fazemos não somente por Deus, mas, por assim dizer, em Deus. Somos mais atentos a Deus que trabalha em nós, do que a nós mesmos ou à nossa obra. Isso, porém, não quer dizer que não temos plena consciência do que fazemos, nem que as realidades perdem o seu contorno numa sorte de doce cerração metafísica. Pode até acontecer que alguém que age com esta simples intenção é mais perfeitamente sensível às exigências da sua obra, e a faz muito melhor do que um operador de reta intenção, desprovido de tal perspectiva. O homem de retas intenções faz a Deus uma oferta jurídica do seu trabalho e em seguida mergulha no mesmo, esperando pelo melhor. Por todas as suas retas intenções, ele bem pode acabar completamente aturdido num labirinto de pormenores práticos.

A reta intenção exige bastante desprendimento para que em nossa ação nos guardemos acima da obra a fazer. Mas não nos impede por completo de ir gradualmente afundando nesta até às orelhas. Quando tal acontece, temos de puxar-nos para fora, deixar de lado o trabalho, e tentar recobrar, num intervalo de oração, o equilíbrio e a reta intenção.

O homem de intenção simples, por ser essencialmente um contemplativo, trabalha sempre em uma atmosfera de oração. Não digo puramente que é numa atmosfera de paz, que ele trabalha. Quem quer que sadiamente se ocupa de uma obra de que gosta, pode fazer outro tanto. Mas o homem de intenção simples, opera em atmosfera de oração, vale dizer, ele vive recolhido. As suas reservas espirituais não são dissipadas por inteiro na ação, mas guardadas nas profundezas do ser, onde se unem com o seu Deus. Ele é desprendido da obra e dos respectivos resultados. Somente um homem que trabalha para Deus pode, a um só tempo, fazer um ótimo serviço e deixar só a Deus os resultados do mesmo. Se a nossa intenção é menos do que simples, podemos realizar um ótimo trabalho, mas, assim fazendo, deixamo-nos envolver pela esperança de resultados que nos satisfarão pessoalmente. Se a nossa intenção é menos do que reta, não nos preocuparemos nem com o serviço, nem com os resultados porque não nos damos o incômodo de tomar um interesse pessoal por qualquer um deles.

Uma intenção simples descansa em Deus enquanto executa as coisas. Ela presta atenção aos fins particulares para os alcançar por Ele: mas ela não pára nos mesmos. Desde que a intenção simples não precisa de repousar em nenhum fim particular, ela já atingiu o fim, apenas começada a obra. Porque o fim da intenção simples é trabalhar em Deus e com Ele - mergulhar raízes profundas no solo da sua Vontade e aí crescer qualquer que seja o tempo que Ele possa mandar.

Uma reta intenção é o que podemos chamar de intenção "transitiva": ela é própria à vida ativa que está sempre em movimento para alguma coisa. A nossa intenção passa de um fim particular a outro, de um trabalho a outro, dum dia ao seguinte, duma possibilidade a outra possibilidade. Ela estende-se para a frente em vários planos. As obras planejadas e feitas são todas para a glória de Deus; mas estão diante de nós como marcos ao longo de uma estrada cujo fim é invisível. E Deus sempre está lá no fim. Ele é sempre "futuro", mesmo que possa estar presente. A vida espiritual de um homem de reta intenção é sempre mais ou menos provisória. Ela pertence mais ao reino da possibilidade do que ao da realidade, porque ele sempre vive como se tivesse de acabar um serviço a mais, antes de poder, afinal, descansar e procurar um pouco de contemplação.

Mesmo, porém, em mosteiros contemplativos, a "reta" intenção é mais comum do que a intenção realmente simples. Mesmo os contemplativos podem viver num mundo onde as coisas a fazer dificultam a visão d'Aquele para quem elas são feitas. Não há diferença se essas coisas a fazer estão dentro de nós. Talvez, nesse caso, fique apenas mais difícil a confusão, dado o fato de que a nossa reta intenção não tem nada de tangível em que pegar, e vive a fazer esforços, ao longo do dia, por mérito, sacrifícios, graus de virtude e de oração. Na realidade, sem a intenção simples, uma vida de oração tende a ser não só difícil mas até incompreensível. Porque o alvo da vida contemplativa não é simplesmente capacitar um homem a dizer orações e fazer sacrifícios com uma reta intenção: é ensiná-lo a viver em Deus.

Simples intenção é um raro dom de Deus. Raro porque pobre. A pobreza é um dom que poucos religiosos realmente apreciam. Eles desejam que a sua religião os faça pelo menos espiritualmente ricos, e, se  renunciam a tudo neste mundo, eles desejam ganhar não somente a vida eterna, mas, sobretudo, o "cêntuplo" que nos é prometido já antes que morramos.

Esse cêntuplo, realmente encontra-se nas bem-aventuranças, e a primeira delas é a pobreza.

A nossa intenção não pode ser completamente simples enquanto não for completamente pobre. O que ela busca e deseja é nada menos que a suprema pobreza de não ter outra coisa senão Deus. Na verdade, quem quer que tenha um grão de fé compreende que possuir Deus, e só Deus, é possuir tudo mais n'Ele. Mas, entre o pensamento de tal pobreza e a sua realização na nossa vida, estende-se o deserto do despojamento, pelo qual devemos passar para encontrá-Lo.

Limitados a uma reta intenção, enfrentamos com calma o risco de perder o fruto do trabalho. Com uma intenção simples, nós renunciamos ao fruto, antes mesmo de começar. Nem mesmo o esperamos mais. Somente a este preço pode o nosso trabalho transformar-se em oração.

Uma intenção simples é morte perpétua em Cristo. Ela guarda a nossa vida escondida com Cristo, em Deus. Não procura, senão no céu, o seu tesouro. As suas preferências vão para aquilo que não pode ser tocado, contado, pesado, saboreado, ou visto. Mas, ela deixa o nosso ser profundo mais aberto, a cada momento, para o abismo da divina paz, onde têm as suas raízes a nossa vida e a nossa atividade.

Reta intenção não visa senão reta intenção. Mas uma intenção simples, mesmo em plena ação, pela renúncia que faz de tudo o que não for Deus, só procura unicamente a Deus. O segredo da intenção simples é que ela se contenta de buscar a Deus, e não insiste em encontrá-Lo imediatamente, sabendo que só de procurá-lo, ela já O achou. A reta intenção conhece isso também, mas não por experiência, e assim ela julga obscuramente que não basta procurar a Deus.

A intenção simples é medicina divina, é bálsamo que acalma as potências da nossa alma feridas pelo excesso de expressão subjetiva. Ela cura os nossos atos na sua secreta fraqueza, e atrai a nossa força às alturas ocultas do nosso ser, e banha o nosso espírito na infinita misericórdia de Deus. Ela nos fere a alma para medicá-la em Cristo, pois a intenção simples revela a presença e a ação de Cristo em nossos corações. Ela faz de nós perfeitos instrumentos de Cristo e transforma-nos em sua semelhança, enchendo a nossa vida inteira da sua brandura e da sua força. da sua pureza, da sua oração e do seu silêncio.

Tudo que se oferece a Deus com reta intenção é aceito por Ele.

Tudo que se oferece a Deus com intenção simples, Ele aceita não só por causa da nossa boa vontade, mas porque Lhe é agradável em si mesmo. É uma obra boa e perfeita, inteiramente feita por amor de Deus. Ela tira a própria perfeição não apenas dos nossos pobres esforços, mas da sua misericórdia, que os enriqueceu. Dando ao Senhor obras de reta intenção, eu posso estar seguro de que Lhe dou o que não é mau. Mas, se Lhe ofereço obras de simples intenção, estou dando o que é melhor. E, além de tudo que posso dar ou fazer por Ele, eu fico na paz e tenho a minha alegria na sua glória.

Thomas Merton, Homem Algum é Uma Ilha

sábado, 7 de abril de 2012

Amor, liberdade, verdade e a "vontade de poder"


Diz um dos meus professores que Nietzsche é um filósofo pra adolescente, pois ele só sabe falar mal de tudo. Embora eu concorde no geral, há, no entanto, umas sacadas dele que são muito corretas. Não o conheço a fundo. Li pouca coisa dele - aliás, li pouco de tudo o que li, sem falsa modéstia -, mas tem uns pontos em que ele realmente acerta.

Problematizando, por exemplo, sobre o que seja a moral e discursando sobre como este conceito tenha se formado, ele diz que, em geral, ela é tão somente um meio de dominação, isto é, um modo de expressão da tal "vontade de poder". 

Bom. Dizer que a moral seja só isso é, de fato, simplório. Porém, embora a moral seja algo real e fundamental, ela bem pode ser instrumentalizada para este fim. E é fácil constatar isso. Um amigo que é generoso com outro apenas para provocar neste outro um certo senso do dever para com ele; uma mãe que enche o filho de mimos e que, sob a aparência de afeto e doação, apenas pratica um seu modo muito particular de dominação  sobre o pequeno e, às vezes, de mera ostentação. Um namorado que, sob a capa de uma certa fragilidade, chantageia a namorada para que, presa e constrangida, ela faça o que ele pretende, etc. Isto, infelizmente, é muito comum por causa do nosso egoísmo. E este tipo de "tráfico com a alma alheia", para usar uma expressão do Thomas Merton, é algo realmente pavoroso, não apenas pela sua natureza perversa, mas ainda porque, para conseguir seu intento, se transveste do que há de mais puro, que é o amor.

O legítimo amor somente pode respirar num ambiente onde existam duas coisas essenciais: a verdade e a liberdade. Quem usa o amor para prender o outro está sendo falso e, logo, está fazendo algo a que se pode chamar de qualquer coisa, menos de amor. Todo amor, ainda que exista mesclado com o egoísmo, não pode florescer se não se cultiva a verdade e a liberdade, e terminará morrendo sob o jugo da auto-adoração do indivíduo; sim, porque tal coisa é, por força, uma mentira e para para manter semelhante atitude, o ego do próprio sujeito tem de ser visto como uma divindade no altar da qual ele deverá sacrificar a liberdade da outra pessoa e a verdade do amor entre ambos.

Existem os que fazem isto conscientemente; há outros que o fazem num misto de consciência e inconsciência: sabem, lá no fundo, que estão apelando mas, ao mesmo tempo, olham para si próprios e vêem qualquer coisa de correto e sincero; e há, ainda, os que o fazem inconscientemente. Nos três, a verdade deixa de ter qualquer valia, pois a posse do outro parece-lhes algo tão essencial e fundamental que pouco importa que ele não seja uma extensão sua e que seja dotado de uma vida própria e tenha, portanto, direitos particulares. Aos seus olhos, todos estes direitos e vontades alheias só deverão ser considerados quando a sua posse estiver garantida. Aí, então, haverá tempo para ser sincero e pensar numa certa liberdade condicional deste outro.

O amor, porém, é algo muito diferente.  Sóbrio, doado e desprendido de si, ele respeita ao máximo a outra parte, embora o respeite sempre dentro do campo mesmo da verdade ao qual todos - inclusive o outro - deverão se submeter e no qual todos devem viver. Ceder à mentira para agradar ao outro não é próprio do amor. Esta preocupação exagerada em fazer-lhes os caprichos demonstra, de novo, uma instrumentalização do afeto a fim de que o outro lhe esteja garantido. É como um caçador que desconsidera o valor do outro em si; apenas lhe atribui valor quando o tem consigo.

E tudo isto, muito próprio das relações humanas, pode ser feito com Deus. Só que aí o buraco é mais embaixo. Brincar de amor com Deus significa quebrar a cara. As rasteiras que, então, o sujeito irá levar são monumentais. Nenhum filme de kung fu, dos mais mentirosos, será capaz de reproduzir as cenas. E, no entanto, um dos tais riscos é que o sujeito aprenda a amar, de fato, pois Deus só deseja o nosso bem. É como diz a música:


"O teu amor cegou o olhar perdido da maldade; paralisou os passos largos da mentira
Quando a minha miséria se encontrou com a terra santa do teu coração, 
assim como a morte e a cruz, vida brotou"

Todos nós, sem exceção, quando começamos a amar a Deus, o fazemos de modo muito impuro. Se não vemos impureza nos nossos atos e intenções, isto não significa que dela sejamos isentos. O nosso nível de auto-conhecimento é que é ainda muito modesto. Haverá de chegar o dia em que passaremos a maior parte do tempo envergonhados porque, de repente, Ele nos permitiu ver a baixeza da nossa vaidade e a vileza das nossas estratégias. Mas o único modo de purificar-nos é saber-nos ruins e mesquinhos. E isto só o fazemos, de fato, na luz de Deus. É por este relacionamento que as nossas outras relações, com quem quer que seja, podem passar a um maior nível de pureza e gratuidade. Nesta altura, Nietzsche já estará superado há muito tempo.

Que Deus nos conceda amar.. O amor é a dilatação da bondade. E a bondade, como dizia o Chesterton, é o que há de mais importante no mundo. E como diz Nosso Senhor: "Só Deus é bom".

Mais uma vez, as suposições...


Nós temos o péssimo costume de levar a sério demais os nossos critérios subjetivos. Em geral, a nossa visão das coisas é limitada; logo, a nossa apreciação delas, também. Porém, a gente gosta de absolutizar nossas impressões e nossas suposições. Como se isto não fosse por si só uma posição irracional - fazer o absoluto derivar do que é relativo e mui incerto - as nossas suposições tendem a carecer de objetividade, não importando o quanto nos pareçam claras e lógicas, se elas se inserem na clássica redoma de quatro paredes que tende a falsear as coisas: o nosso medo, o nosso prazer, a nossa dor, ou a nossa esperança de ganho.

Portanto, se for supor, suponha pelo lado melhor. Precipitar-se sobre as intenções dos outros é muito fácil, mas é muito falso. Muitas injustiças podem ser - e são - cometidas por causa disso.

É sempre a verdade que liberta. Nunca a fantasia. Sempre a verdade.

De nada vale projetar no mundo uma invenção subjetiva. A primazia é do real. Ver o real sem o colorido dos nossos interesses, medos ou suposições, é imprescindível em uma pessoa sincera. A primeira coisa que se espera de uma pessoa sensata é que saiba duvidar de si mesma.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Dificuldades da vida cristã - O que fazer diante dos ataques dos outros e diante da constatação da nossa própria fraqueza?


Escrevo este texto em resposta à pergunta que uma cara amiga me fez recentemente e que basicamente se resumia a duas partes: 1- por que, se nos decidimos por Cristo de fato, tantas são as pessoas que ficam contra nós, nos fazendo contínua oposição, e somos expostos à perda de "tudo"? 2- Isto significa que, para ser um bom cristão, é preciso ser masoquista, ser de ferro ou ser divino?

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Seduziste-me, Senhor, e eu me deixei seduzir.
Por tua causa e por teu nome estão todos contra mim (Jer 20,7)

Para que vivemos? Vivemos para nos santificarmos, dirá Sto Afonso. Este é o grande motivo pelo qual Deus nos mantém nesta vida, o que significa que tudo o mais, comparado a isto, é bastante secundário.

A santidade acontece quando há união de vontades, isto é, quando a vontade de Deus se torna a minha, de modo que eu queira o que Deus quer e deteste o que Deus detesta. No entanto, é preciso entender que há uma desordem em nós, fruto do pecado. Este é um fator importantíssimo para entendermos as dificuldades práticas que enfrentamos no decorrer da vida e na luta por sermos pessoas boas.

Esta desordem na alma nos inclina sempre ao egoísmo, explícito ou disfarçado. Isto se torna como que uma tendência natural nossa. Acontece que o egoísmo é o que há de mais oposto à santidade. Logo, se somos egoístas, estamos frustrando a única razão pela qual vivemos. E, no entanto, é um fato que somos fortemente inclinados ao egoísmo. Como resolver este problema?

Negando-nos a nós mesmos. "Quem quiser me seguir - se quiser - negue-se a si mesmo"; "Quem não faz pouco caso da própria vida, não é digno de mim". São expressões e mandamentos difíceis, mas profundamente curativos e necessários a uma alma que pretenda adquirir saúde. A "vida em plenitude" que Jesus promete não se alcança de qualquer modo. O nosso egoísmo sufoca a nossa alma e não lhe permite fruir da autêntica alegria. Portanto, é preciso dilatá-la - à alma -, arrancando as raízes do egoísmo nela. De início, isto não é confortável; é dolorido, é enfadonho e cansativo, do mesmo modo que é dolorido, enfadonho e cansativo que um doente tenha de fazer exercícios físicos. E, no entanto, é necessário. Submeter-se a esta violência contra si mesmo é o caminho do despertar. "O reino dos céus pertence aos violentos". 

Há que se ter, portanto, um desprendimento de si mesmo, e entender bem todo este contexto: o centro de tudo deve ser Deus, e todo o resto - as amizades, os compromissos, as brincadeiras, os lazeres - deve estar em harmonia com Deus. A aquisição, porém, de uma vontade aguerrida, de um olhar claro sobre o que se deva fazer e de uma compreensão profunda da própria alma, é algo um tanto difícil - na verdade impossível - de se alcançar sozinho. É por isso que precisamos de auxílio. Deus muitas vezes nos ajuda, seja incidindo diretamente sobre nós os seus dons, seja nos tocando indiretamente, através de outras pessoas. Neste último caso, haverá quem nos console e dê forças; mas haverá, também, quem nos importune e incomode, ajudando-nos, dependendo do modo como lidamos com isto, a acelerar o processo de extirpação do nosso egoísmo.

Já dizia um santo: "existimos para amar e tudo quanto existe, existe para tornar o amor possível". S. João da Cruz diz a mesma coisa: "estás aqui para te santificares. Considera que todos estes que te importunam são ajudadores que Deus enviou para que te libertes de ti mesmo".

Além disto, há os que efetivamente nos querem derrubar e estranham quando o nosso discurso alcança o grau de uma firmeza irredutível; sentem-se sutilmente atacados, denunciados na sua tibieza e isto às vezes se transveste, neles, de sobriedade, de realismo e tolerância. Chamam-nos logo de arrogantes e duvidam das nossas intenções. Muitas vezes são sujeitos pretensiosos, afetados de falsa humildade, que entendem ser a virtude um certo tipo de moleza e bom mocismo - uma coisa cosmética que a ninguém deve incomodar - e que fazem as vezes do próprio demônio. Mas, ainda que nos queiram e possam, objetivamente, prejudicar, se estivermos com as devidas disposições de alma, serão, antes, preciosas ajudas.

S. Francisco de Assis, quando atacado por demônios, gritava-lhes o seguinte: "isso mesmo! Meu maior inimigo sou eu mesmo. Se vocês surram este meu inimigo, só estão me fazendo um grande bem."

S. João da Cruz, por sua vez, após passar extremos sofrimentos, aos quais se referia pelo termo "noite", poetizou:

"Oh noite mais amável que a alvorada; oh noite que juntaste Amado com amada, amada já no Amado transformada".

E aí, eu retomo a pergunta: é preciso, então, ser de ferro, masoquista ou ser divino demais?

É preciso, primeiramente, entender que tudo isso é muito real:
a) o nosso orgulho, que precisa ser extirpado da alma e cuja remoção só se consegue com luta;
b) a necessidade de alcançarmos um conhecimento agudo da nossa própria fraqueza, o que nos motivará a pedir com sinceridade o auxílio divino.

Entender ainda que, se a nossa natureza reclama e o nosso ânimo se abate, talvez isto se deva também por estarmos viciados nalguma suposição equivocada, ou presos por caprichos pessoais. A soberba tenta fazer com que o mundo se adéque aos nossos gostos subjetivos. Se, porém, isto não se dá - e não pode se dar - a alma se abate. Daí o grande e salutar segredo do abandono em Deus; da espiritualidade da Pequena Via; do amor aos desígnios de Cristo, sejam eles quais forem. Este tipo de amor, que se entrega, torna-se amor adorante, oblativo, pois nele há uma atitude de sacrifício, de auto-desapego, e de Fé real na bondade divina.

Deus sabe da nossa dor e está disposto a nos ajudar se a Ele nos achegarmos. Para suprir essa nossa necessidade, fez-Se acessível, seja pelos sacramentos, seja pela oração individual. Mas é preciso entender que o Seu amor por nós não pode privá-Lo de trabalhar em nosso favor e isto, muitas vezes, implicará em espremer a ferida purulenta da alma, ainda que doa, para que dela se desprenda a sujeira que a infecta.

Além de tudo isto, Deus às vezes quer ver a nossa fidelidade. Amá-Lo quando todos nos aplaudem seria fácil. Porém, o verdadeiro amor trará sempre a marca da Cruz, pois é este um sinal muito amado por Jesus e com o qual ele marca tudo quanto seja verdadeiramente Seu. Mas é a Cruz a nossa esperança. É como diz a Igreja: Ave Crux Spes Unica.

E quanto aos que se nos opõem? O que fazer a respeito?

Primeiramente, não deixar de rezar por eles e pedir a Deus a graça de amá-los. Depois, não pensar que amá-los significa dar-lhes crédito ou levá-los a sério; às vezes, o correto será dizer-lhes umas boas verdades, ou ignorá-los ou até dar-lhes uma banana. Frequentemente, esses sujeitos são só pessoas infladas de falsa virtude. Penso que o que se deve fazer é não se incomodar com eles, nem ficar a considerá-los interiormente. Se for possível ajudá-los, ajudemo-los. Se não, recomendemo-los a Deus. Mas, no geral, eles podem contribuir para que nos desapeguemos ainda mais de nós mesmos, e isto é o segredo da liberdade.

Já dizia S. Francisco de Assis que a verdadeira alegria existe quando, ainda que apanhando e recebendo ofensas pessoais, sequer movemos interiormente qualquer pensamento raivoso em relação ao sujeito que nos insultou. Isto, claro, é uma realidade muita alta; mas a verdadeira alegria não é, mesmo, qualquer coisa. Não à toa, Jesus fala que devemos nascer de novo. Isto significa, contudo, que devemos trabalhar para que o que antes nos incomodava - porque feria o nosso egoísmo - chegue, então, a não causar sequer qualquer repercussão interior. É o que os espirituais chamam de "santa indiferença", e os orientais chamavam de "apathia". E essa graça só se consegue com muita disciplina e a ajuda de Deus.

Respondendo, então, diretamente às perguntas:

É preciso ser masoquista? Não. Nem devemos sê-lo.

É preciso ser de ferro? Não; e é preciso saber que não somos. Muitas vezes, Jesus permite que caiamos repetidas vezes para que possamos desenvolver a certeza da nossa própria fraqueza, sem a qual Ele mal encontra espaço para fazer qualquer coisa em nós.

É preciso ser divino? Sim, e este é o ponto! Todo o cristianismo é a imitação de um Deus humanado. Se imitamos a um Deus, precisamos agir de modo divino. Porém, isto não depende somente das nossas forças. É algo que Deus realiza em nós, se nos abandonamos. E para alcançarmos esta realidade, cumpre começarmos e, paulatinamente, irmos destruindo esse falso eu ao qual nos habituamos e nos apegamos, mas que não conhece nada do que seja a vida verdadeira. É preciso que nos submetamos, gradativamente, a uma espécie de morte para que, mais e mais, seja o Cristo a viver em nós. E, contudo, isto é uma aventura saborosa; deliciosa; de uma arrebatadora felicidade.

O cristão deve ter uma visão sobrenatural da vida, do mundo, das amizades, de tudo. Deve ter cuidado para não naturalizar as coisas; essa imanência moderna é a causa de todo mal no mundo e o motivo de haverem tantos "cegos guiando cegos", pois faz parte da cegueira espiritual que o cego não se saiba cego e que reduza toda a realidade ao estreito corredor do seu pequeno mundinho.

O cristão deve ter ainda uma disposição aguerrida, dada à luta, entendendo que o que se está buscando não visa, primeiramente, ao conforto da sensibilidade nem à satisfação dos caprichos do ego. Muito pelo contrário, é deste ego que temos de nos livrar. Devemos compreender que o que estamos a seguir e a defender é algo que ultrapassa infinitamente e abismalmente o pequeno pontinho inútil que são os nossos desejos egoístas. É  só quando entendemos esta verdade - quando a entendemos de verdade - que podemos alcançar a liberdade necessária para abrir mão dos nossos caprichos - bem como dos nossos medos -, e elevar os nossos olhos à imensidão infinita do céu; é a livre, suave e deleitosa contemplação desinteressada da Beleza.

Para chegarmos aí, sofreremos. Teremos a cruz como uma companheira diária. Choraremos, também. Seremos incompreendidos. Amigos queridos e familiares nos acusarão de tudo quanto seja. Mas isso Jesus mesmo já dizia: "Por minha causa, em uma mesma casa ficarão três contra dois e dois contra três". No entanto, é pela nossa fidelidade - conquistada com sangue, suor e lágrimas, mas também uma alegria descomunal que, vez ou outra, Ele nos permite vislumbrar - que podemos ter a legítima esperança de que o amor destilado pelo nosso coração alcance estes mesmos que, hoje, nos lançam pedras.

O que digo, enfim, é: coragem! Se poucos levam a sério o cristianismo, seja destes poucos. Também a Elias, o único que estava cuidadoso das coisas de Deus e que se dizia "devorado de amor pelo Senhor dos Exércitos", tentaram ferir. É assim mesmo. 

Já dizia S. João da Cruz:

"Sofrer pelo Amado é melhor do que fazer milagres"

Já dizia Sta Teresa D'Avila:

"As prisões, as ignomínias e afrontas por meu Cristo e por minha religião, são regalos e mercês para mim... cruz busquemos, cruz desejemos, trabalhos abracemos!"

"Não haja, entre nós, covarde! Aventuremos a vida: Não há quem melhor a guarde que o que a deu por já perdida."

"O amor quando já crescido não pode ocioso ficar, nem o forte sem lutar por amor de seu Querido"

Já dizia Sta Teresinha de Lisieux:

"Morrerei no campo de batalhas, de armas na mão".

Já dizia S. Paulo Apóstolo:

"Deus me livre de gloriar-me em outra coisa a não ser na Cruz de Nosso Senhor"

Força, aí! Embora tudo isso pareça meio pesado, a porta estreita tem a propriedade de nos livrar de todo peso inútil. O que nos cansa não é a doutrina de Nosso Senhor, mas a soberba que trazemos conosco. Se dela nos livrarmos, descansamos e tudo fica fácil. Aquele que se dispõe a viver a autêntica vida cristã, esvaziado de toda inutilidade, haverá de fazer a experiência de como o jugo do Senhor é leve e de como é suave o Seu peso.

Abraço.

Fábio.