Porque amamos só a Deus, além e acima de todas as coisas, e como o nosso amor nos mostra que Ele excede infinitamente à bondade de todas elas, ficamos indiferentes a tudo que não é Deus. Mas, ao mesmo tempo, o nosso amor nos habilita a achar, em Deus mesmo, a bondade e a realidade de todas as coisas a que renunciamos por Ele. Nós, assim, vemos até naquilo que abandonamos, Aquele que amamos, e n'Ele tudo reencontramos. Embora a graça do Espírito Santo nos ensine a usar das coisas criadas "como se não usássemos", isto é, com desapego e indiferença, não nos faz ela indiferentes ao valor das coisas como tais. Pelo contrário, é só quando nos desapegamos da criatura, que começamos a avaliá-la, como deveríamos. É só quando elas nos são indiferentes que começamos realmente a amá-las. A indiferença, pois, de que falo, deve ser uma indiferença não das coisas propriamente mas dos seus efeitos na nossa vida.
O homem que se prefere a Deus ama as coisas e as pessoas pelo bem que delas pode tirar. O seu amor egoísta tende a destruí-las, a consumi-las, a absorvê-las no seu próprio ser. O seu amor pelas coisas é um aspecto apenas do seu egoísmo, e não passa de um preconceito em seu próprio favor. Tal homem não é absolutamente indiferente ao efeito das coisas, das pessoas e dos acontecimentos na sua vida, mas é, de fato, desprendido do bem das coisas e das pessoas, consideradas à parte do seu próprio benefício. Em relação ao bem que ele retira das coisas, esse homem não é nem desprendido nem desinteressado. Mas, diante do bem próprio das coisas, ele é de todo indiferente.
Quem ama a Deus mais do que a si mesmo, é capaz de também amar as pessoas e as coisas pelo bem que elas possuem em Deus. Equivale a dizer que ele ama a glória que as coisas rendem a Deus: porque essa glória é o reflexo de Deus na bondade, comunicada por Ele às criaturas. Tal homem é indiferente ao embate das coisas na sua própria vida. Ele só considera as coisas na sua relação à glória de Deus e à sua Vontade. Por maior que seja a sua utilidade e satisfação temporal, Ele fica indiferente. Mas, quanto ao valor das coisas em si mesmas, ele não é mais indiferente do que em relação a Deus. Ama-as no mesmo ato pelo qual renunciou. E nesse amor que se afirma pela renúncia, ele as recupera num nível mais alto.
Dizer que a renúncia cristã deve ser ordenada para Deus, é dizer que ela deve frutificar numa vida profunda de oração e em obras de caridade. A renúncia cristã não é questão de técnica de abnegação pessoal, começando e acabando nos estreitos limites da nossa própria alma. É o primeiro movimento de uma liberdade que, transcendendo os quadros de tudo que é finito, natural e contingente, entra em contato de amor com a bondade infinita de Deus e daí vai atingir todas as coisas que Ele ama.
A renúncia cristã é só o começo de uma divina plenitude. É inseparável da íntima conversão de nosso ser inteiro que se volta de nós mesmos para Deus. É a rejeição da nossa imperfeição, a renúncia da nossa pobreza, para que possamos mergulhar na plenitude das riquezas de Deus e da sua criação, sem recair no nosso próprio nada.
A abnegação livra-nos das paixões e do amor próprio. Liberta-nos desse supersticioso apego ao nosso eu, como se fôssemos um deus. Livra-nos da "carne" no sentido técnico do Novo Testamento, mas não nos forra do corpo. Não é nenhuma fuga da matéria ou dos sentidos nem pretende ser. É o primeiro passo para a transformação do nosso ser inteiro, em que, segundo o plano de Deus, até os nossos corpos viverão à luz da glória divina e serão também, com as almas, transformados n'Ele.
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