terça-feira, 10 de abril de 2012

Dois modos de Pura Intenção: A Reta e a Simples


Em um lugar de sua obra, faz Tauler uma distinção entre dois graus da intenção pura: a um deles chama de reta intenção; a outro, de intenção simples. Eles servem para explicar a união de ação e contemplação em um todo harmonioso.

Quando temos reta intenção, a nossa intenção é pura. procuramos fazer a vontade de Deus com motivo sobrenatural. Temos em vista agradar a Deus. Mas, assim fazendo, nós ainda nos consideramos a nós e à nossa obra como algo à parte de Deus e fora d'Ele. Nossa intenção dirigi-se principalmente à obra a fazer. Quando o trabalho termina, descansamos em seu acabamento, e aguardamos a paga de Deus.

Mas, quando é uma intenção simples que temos, somos menos ocupados com a coisa a fazer. Tudo que então fazemos, fazemos não somente por Deus, mas, por assim dizer, em Deus. Somos mais atentos a Deus que trabalha em nós, do que a nós mesmos ou à nossa obra. Isso, porém, não quer dizer que não temos plena consciência do que fazemos, nem que as realidades perdem o seu contorno numa sorte de doce cerração metafísica. Pode até acontecer que alguém que age com esta simples intenção é mais perfeitamente sensível às exigências da sua obra, e a faz muito melhor do que um operador de reta intenção, desprovido de tal perspectiva. O homem de retas intenções faz a Deus uma oferta jurídica do seu trabalho e em seguida mergulha no mesmo, esperando pelo melhor. Por todas as suas retas intenções, ele bem pode acabar completamente aturdido num labirinto de pormenores práticos.

A reta intenção exige bastante desprendimento para que em nossa ação nos guardemos acima da obra a fazer. Mas não nos impede por completo de ir gradualmente afundando nesta até às orelhas. Quando tal acontece, temos de puxar-nos para fora, deixar de lado o trabalho, e tentar recobrar, num intervalo de oração, o equilíbrio e a reta intenção.

O homem de intenção simples, por ser essencialmente um contemplativo, trabalha sempre em uma atmosfera de oração. Não digo puramente que é numa atmosfera de paz, que ele trabalha. Quem quer que sadiamente se ocupa de uma obra de que gosta, pode fazer outro tanto. Mas o homem de intenção simples, opera em atmosfera de oração, vale dizer, ele vive recolhido. As suas reservas espirituais não são dissipadas por inteiro na ação, mas guardadas nas profundezas do ser, onde se unem com o seu Deus. Ele é desprendido da obra e dos respectivos resultados. Somente um homem que trabalha para Deus pode, a um só tempo, fazer um ótimo serviço e deixar só a Deus os resultados do mesmo. Se a nossa intenção é menos do que simples, podemos realizar um ótimo trabalho, mas, assim fazendo, deixamo-nos envolver pela esperança de resultados que nos satisfarão pessoalmente. Se a nossa intenção é menos do que reta, não nos preocuparemos nem com o serviço, nem com os resultados porque não nos damos o incômodo de tomar um interesse pessoal por qualquer um deles.

Uma intenção simples descansa em Deus enquanto executa as coisas. Ela presta atenção aos fins particulares para os alcançar por Ele: mas ela não pára nos mesmos. Desde que a intenção simples não precisa de repousar em nenhum fim particular, ela já atingiu o fim, apenas começada a obra. Porque o fim da intenção simples é trabalhar em Deus e com Ele - mergulhar raízes profundas no solo da sua Vontade e aí crescer qualquer que seja o tempo que Ele possa mandar.

Uma reta intenção é o que podemos chamar de intenção "transitiva": ela é própria à vida ativa que está sempre em movimento para alguma coisa. A nossa intenção passa de um fim particular a outro, de um trabalho a outro, dum dia ao seguinte, duma possibilidade a outra possibilidade. Ela estende-se para a frente em vários planos. As obras planejadas e feitas são todas para a glória de Deus; mas estão diante de nós como marcos ao longo de uma estrada cujo fim é invisível. E Deus sempre está lá no fim. Ele é sempre "futuro", mesmo que possa estar presente. A vida espiritual de um homem de reta intenção é sempre mais ou menos provisória. Ela pertence mais ao reino da possibilidade do que ao da realidade, porque ele sempre vive como se tivesse de acabar um serviço a mais, antes de poder, afinal, descansar e procurar um pouco de contemplação.

Mesmo, porém, em mosteiros contemplativos, a "reta" intenção é mais comum do que a intenção realmente simples. Mesmo os contemplativos podem viver num mundo onde as coisas a fazer dificultam a visão d'Aquele para quem elas são feitas. Não há diferença se essas coisas a fazer estão dentro de nós. Talvez, nesse caso, fique apenas mais difícil a confusão, dado o fato de que a nossa reta intenção não tem nada de tangível em que pegar, e vive a fazer esforços, ao longo do dia, por mérito, sacrifícios, graus de virtude e de oração. Na realidade, sem a intenção simples, uma vida de oração tende a ser não só difícil mas até incompreensível. Porque o alvo da vida contemplativa não é simplesmente capacitar um homem a dizer orações e fazer sacrifícios com uma reta intenção: é ensiná-lo a viver em Deus.

Simples intenção é um raro dom de Deus. Raro porque pobre. A pobreza é um dom que poucos religiosos realmente apreciam. Eles desejam que a sua religião os faça pelo menos espiritualmente ricos, e, se  renunciam a tudo neste mundo, eles desejam ganhar não somente a vida eterna, mas, sobretudo, o "cêntuplo" que nos é prometido já antes que morramos.

Esse cêntuplo, realmente encontra-se nas bem-aventuranças, e a primeira delas é a pobreza.

A nossa intenção não pode ser completamente simples enquanto não for completamente pobre. O que ela busca e deseja é nada menos que a suprema pobreza de não ter outra coisa senão Deus. Na verdade, quem quer que tenha um grão de fé compreende que possuir Deus, e só Deus, é possuir tudo mais n'Ele. Mas, entre o pensamento de tal pobreza e a sua realização na nossa vida, estende-se o deserto do despojamento, pelo qual devemos passar para encontrá-Lo.

Limitados a uma reta intenção, enfrentamos com calma o risco de perder o fruto do trabalho. Com uma intenção simples, nós renunciamos ao fruto, antes mesmo de começar. Nem mesmo o esperamos mais. Somente a este preço pode o nosso trabalho transformar-se em oração.

Uma intenção simples é morte perpétua em Cristo. Ela guarda a nossa vida escondida com Cristo, em Deus. Não procura, senão no céu, o seu tesouro. As suas preferências vão para aquilo que não pode ser tocado, contado, pesado, saboreado, ou visto. Mas, ela deixa o nosso ser profundo mais aberto, a cada momento, para o abismo da divina paz, onde têm as suas raízes a nossa vida e a nossa atividade.

Reta intenção não visa senão reta intenção. Mas uma intenção simples, mesmo em plena ação, pela renúncia que faz de tudo o que não for Deus, só procura unicamente a Deus. O segredo da intenção simples é que ela se contenta de buscar a Deus, e não insiste em encontrá-Lo imediatamente, sabendo que só de procurá-lo, ela já O achou. A reta intenção conhece isso também, mas não por experiência, e assim ela julga obscuramente que não basta procurar a Deus.

A intenção simples é medicina divina, é bálsamo que acalma as potências da nossa alma feridas pelo excesso de expressão subjetiva. Ela cura os nossos atos na sua secreta fraqueza, e atrai a nossa força às alturas ocultas do nosso ser, e banha o nosso espírito na infinita misericórdia de Deus. Ela nos fere a alma para medicá-la em Cristo, pois a intenção simples revela a presença e a ação de Cristo em nossos corações. Ela faz de nós perfeitos instrumentos de Cristo e transforma-nos em sua semelhança, enchendo a nossa vida inteira da sua brandura e da sua força. da sua pureza, da sua oração e do seu silêncio.

Tudo que se oferece a Deus com reta intenção é aceito por Ele.

Tudo que se oferece a Deus com intenção simples, Ele aceita não só por causa da nossa boa vontade, mas porque Lhe é agradável em si mesmo. É uma obra boa e perfeita, inteiramente feita por amor de Deus. Ela tira a própria perfeição não apenas dos nossos pobres esforços, mas da sua misericórdia, que os enriqueceu. Dando ao Senhor obras de reta intenção, eu posso estar seguro de que Lhe dou o que não é mau. Mas, se Lhe ofereço obras de simples intenção, estou dando o que é melhor. E, além de tudo que posso dar ou fazer por Ele, eu fico na paz e tenho a minha alegria na sua glória.

Thomas Merton, Homem Algum é Uma Ilha

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