Para entender o que vai abaixo, saiba o leitor que a cena se dá dentro de um mundo subterrâneo, tão abaixo da superfície que lhes é estranho e distante tudo o que se passa aqui em cima. Note ainda como a argumentação sofística da bruxa se assemelha, em vários pontos, à retórica ateísta.
***
A bruxa nada disse, mas andou vagarosamente pela sala, conservando os olhos fixos no príncipe. Ao chegar a uma arca não longe da lareira, abriu-a, apanhando lá dentro um punhado de pó verde, que atirou ao fogo. Não fez o fogo arder muito, mas um aroma muito doce e inebriante encheu a sala. Durante a conversa que se seguiu o cheiro foi ficando mais intenso, dificultando o ato de pensar. Em seguida, ela pegou um instrumento meio parecido com um bandolim e começou a tocar um repenicado monótono que se fez despercebido depois de poucos minutos. Também isso atrapalhava o raciocínio. Depois de ter tocado por algum tempo, com o aroma doce cada vez mais forte, começou a dizer numa voz macia:
- Nárnia? Nárnia? Ouvi Vossa Alteza pronunciar esse nome durante os delírios. Querido príncipe, você está muito doente. Não há nenhuma terra chamada Nárnia.
- Há sim, madame - interrompeu Brejeiro. - Eu mesmo passei lá minha vida inteira.
- Que interessante! - disse a bruxa. - Mas diga-me por favor uma coisa: onde é essa terra?
- Lá em cima - respondeu Brejeiro, decidido, apontando para o teto. - Mas onde fica exatamente, não sei.
- Como assim? - perguntou a rainha, com uma risadinha musical. - Existe então um país lá em cima, no meio das pedras e do reboco do teto?
- Não - respondeu Brejeiro, respirando com certa dificuldade. - O país fica por cima. É o Mundo de Cima.
- E onde fica... como é o nome... esse Mundo de Cima?
- Oh, deixe de bancar a boba - disse Eustáquio, que lutava contra o encantamento produzido pelo doce aroma e o repenicar do bandolim. - Como se não estivesse cansada de saber! É lá em cima, lá onde você pode ver o céu, o Sol e as estrelas. Esta é boa! Você já esteve lá! Nós nos encontramos lá!
- Peço perdão, irmãozinho - riu-se a bruxa, uma delícia de riso. - Não me lembro desse encontro. Quando sonhamos é que costumamos encontrar os nossos amigos em lugares estranhos. Mas, a não ser que sonhemos o mesmo sonho, não é razoável pedir que se lembrem.
- Senhora - disse o príncipe gravemente -, já lhe disse que sou filho do rei de Nárnia.
- E será, meu amigo - disse a rainha numa voz ciciante, como se estivesse acalmando uma criança -, será rei de muitas terras imaginárias.
- Também estivemos lá - falou Jill com impertinência. Estava furiosa por perceber que o feitiço ia tomando conta dela.
- E você também é rainha de Nárnia, não é, minha belezinha? - disse a feiticeira, na mesma voz insinuante, mas meio zombeteira.
- Negativo - respondeu Jill, batendo com o pé. - Nós somos de outro mundo.
- Ah, que maravilha! Diga-me, senhorita, onde fica esse outro mundo? Quais os navios e carruagens que fazem o transporte para cá?
Uma cachoeira de lembranças caiu sobre Jill: o Colégio Experimental, sua casa, aparelhos de rádio, automóveis, aviões, engarrafamento, filas. Mas pareciam imagens apagadas e distantes. (Drim-drim-drim, repenicava o bandolim) Jill não conseguia lembrar-se das coisas de nosso mundo. E dessa vez não lhe ocorreu que estava sendo enfeitiçada, pois a magia atingira o auge. Surpreendeu-se dizendo (e era um alívio dizê-lo) o seguinte:
- Acho que o outro mundo deve ser um sonho.
- Claro. O outro mundo é um sonho - disse a bruxa, sempre repenicando.
- Um sonho - repetiu Jill.
- Nunca existiu esse mundo - disse a feiticeira.
Jill e Eustáquio falaram ao mesmo tempo:
- Nunca existiu esse mundo.
- Só existe um mundo - continuou a bruxa -, o meu.
- Só existe o seu mundo - disseram eles.
Brejeiro ainda tentava resistir:
- Não sei direito o que você entende por um mundo - disse, como alguém que não respira ar suficiente. - Mas pode tocar essa rabeca até que seus dedos caiam no chão; mesmo assim nunca vou me esquecer de Nárnia. E nem do Mundo de Cima. Imagino que nunca mais o veremos, pois é bem provável que o tenha obscurecido como fez a este mundo. Mas vou saber sempre que estive lá. Já vi o céu cheio de estrelas. Já vi o Sol nascente no mar e sumindo atrás das montanhas ao cair da noite. E vi também o Sol ao meio dia, cujo brilho nos fere a vista.
As palavras de Brejeiro tiveram um efeito estimulante. Os outros três respiraram de novo e se olharam como pessoas que despertam.
- Que Aslam abençoe o nosso bom paulama - disse o príncipe. - Estivemos sonhando. Como iríamos esquecer? Todos nós já vimos o Sol.
- É claro que sim! - gritou Eustáquio. - Muito bem, Brejeiro. Você é o único aqui que não perdeu o juízo.
E mais uma vez se ouviu a voz da feiticeira arrulhando como uma pombarola no alto da árvore de um velho quintal, às três horas de uma sonolenta tarde de verão:
- De que sol vocês estão falando? Essa palavra significa alguma coisa?
- Significa muito! - respondeu Eustáquio.
- Poderiam contar-me como é o sol? (Drum-drim-drim)
- Por obséquio, Majestade - disse o príncipe, com fria polidez. - Vê aquela lâmpada redonda e amarela iluminando a sala? O que chamamos Sol é parecido, só que é muito maior e muito mais brilhante e ilumina todo o Mundo de Cima. E em vez de estar preso no teto, está solto no céu.
- Solto onde? - E enquanto pensavam na resposta, ela prosseguiu, com uma de suas risadinhas melodiosas: - Estão vendo? Quando vocês procuram saber o que deve ser realmente o tal de sol, não conseguem. Só sabem dizer que parece uma lâmpada. O sol de vocês é um sonho, e não há nesse sonho nada que não tenha sido copiado de uma lâmpada. A lâmpada é real; o sol não passa de uma invenção, uma história para crianças.
- Ah, sim, é verdade - disse Jill com uma voz pesada e sem esperança. - Deve ser isso mesmo. - E acreditava que estava sendo muito sensata.
Lenta, gravemente, a feiticeira repetia: "Não há Sol." E eles nada mais diziam. "Não há Sol" - ela repetia, com a voz mais branda e profunda. Depois de uma pausa e de um conflito em seus espíritos, todos os quatro disseram: "Certo. Não há Sol". Era um alívio desistir e reconhecer que o Sol nunca existira.
Nos últimos minutinhos Jill sentira que havia alguma coisa da qual, a todo custo, tinha de se lembrar. E agora conseguia. Era entretanto tremendamente difícil dizê-la. Sentia como se enormes fardos pesassem em sua boca. Por fim, com um esforço que pareceu axauri-la, disse:
- Aslam existe.
- Aslam? - disse a feiticeira, apressando ligeiramente o repenicado de seu instrumento. - Que lindo nome! Que significa Aslam?
- Aslam é o grande Leão que nos chamou de nosso mundo - disse Eustáquio - e aqui nos enviou em busca do príncipe Rilian.
- Leão, o que é um leão? - perguntou a bruxa;
- Ora, não amole - respondeu Eustáquio. - Não sabe? Como é que eu vou descrever um leão? Já viu um gato?
- Claro, adoro gatos - respondeu a feiticeira.
- Bem, um leão é um pouquinho... só um pouquinho, hein... parecido com um gato enorme com uma juba. E é amarelo. E é incrivelmente forte.
A feiticeira balançou a cabeça:
- Acho que o leão de vocês vale tanto quanto o sol. Viram lâmpadas, e acabaram imaginando uma lâmpada maior e melhor, a que deram o nome de sol. Viram gatos, e agora querem um gato maior e melhor, chamado leão. É puro faz-de-conta, mas, francamente, já estão meio crescidos demais para isso. Já repararam que esse faz-de-conta é copiado do mundo real, do meu mundo, que é o único mundo? Já estão grandes demais para isso, jovens. Quanto ao meu príncipe, um homem feito, que vergonha! Brincando depois de grande! Venham. Esqueçam essas fantasias infantis. Tenho trabalho para vocês no mundo real. Não há Nárnia, não há Mundo de Cima, não há céu, nem Sol, nem Aslam. Agora, cama. E vamos começar vida nova amanhã. Primeiro, cama. Dormir. Dormir bem, um travesseirinho macio, um sono sem sonhos bobos.
O príncipe e as duas crianças estavam de cabeça caída, as faces coradas, os olhos semicerrados; fugira-lhes toda a energia, o sortilégio era quase total. Mas Brejeiro, juntando desesperadamente o resto de suas forças, caminhou até a lareira. E praticou então uma proeza de rara coragem. Sabia que não doeria tanto quanto em um ser humano, pois seus pés (sempre nus) eram membranosos, duros e frios como pés de pato. Mas sabia que iria doer bastante; mesmo assim o fez: espezinhou as brasas, apagando um pouco o fogo. Três coisas aconteceram.
Primeiro: o doce e pesado aroma diminuiu muito. O cheiro de paulama assado, que não é inebriante, predominou na sala. O cérebro de todos ficou mais limpo. O príncipe e as crianças ergueram as cabeças e abriram os olhos.
Segundo: a feiticeira, num tom terrível, completamente diferente da voz doce que havia usado até então, de um berro:
- O que está fazendo? Se ousar tocar no meu fogo outra vez, porcalhão imundo, vou transformar em fogo o sangue de suas veias!
Terceiro: a própria dor esclareceu completamente a cabeça de Brejeiro, pois não há nada como um impacto doloroso para desfazer certas espécies de magia.
- Uma palavrinha, dona - disse ele, mancando de dor -, uma palavrinha: tudo o que disse é verdade. Sou um sujeito que gosta logo de saber tudo para enfrentar o pior com a melhor cara possível. Não vou negar nada do que a senhora disse. Mas mesmo assim uma coisa ainda não foi falada. Vamos supor que nós sonhamos, ou inventamos, aquilo tudo - árvores, relva, sol, lua, estrelas e até Aslam. Vamos supor então que esta fossa, este seu reino, seja o único mundo existente. Pois, para mim, o seu mundo não basta. E vale muito pouco. E o que estou dizendo é engraçado, se a gente pensar bem. Somos apenas uns bebezinhos brincando, se é que a senhora tem razão, dona. Mas quatro crianças brincando podem construir um mundo de brinquedo que dá de dez a zero no seu mundo real.
C.S. Lewis, As Crônicas de Nárnia, A Cadeira de Prata, Cap. 12.