quinta-feira, 31 de maio de 2012

O mistério do sofrimento


Contemplando o sofrimento nos rostos, nas mãos, nos olhos, nas almas, surge-nos, da evidente constatação da dor humana, a pergunta de por que isso se deu e de onde isso veio. É então que nos aparece em toda a seriedade a doutrina do Pecado Original e todas as suas consequências. Mas também é aí que passamos a entender um pouco da veracidade da Encarnação, onde o Filho de Deus, esposando a nossa dor e tocando as nossas misérias, realizou uma como que transubstanciação do sofrimento, tornando aquilo que, antes, era mera punição, no meio de redenção, no instrumento de salvação do gênero humano. Contemplar essa dor e abraçá-la impede que a tenhamos como mera teoria imaginativa. Ela é o que há de mais real, mais cruamente real. E o amor divino, subjazendo a tudo isso, é violentamente real.

O sofrimento tem um caráter transcendente. Ele nos força para fora de nós mesmos. E nesse empurrão, ele nos mostra quem, de fato, nós somos, pois assumimos o nosso verdadeiro eu quando recordamos a nossa natureza supra-sensível. É abandonando os nossos apegos que despertamos para a nossa natureza espiritual e para a nossa alta descendência e alto chamado. O sofrimento, portanto, força-nos ao desprendimento e, fazendo-o, ele contribui para que readquiramos a nossa dignidade. Distraindo-nos dos nossos caprichos, ele nos pressiona com ímpeto contra a realidade infinitamente mais densa do Céu. A dor é um remédio para sonâmbulos.

Se assim é, "santificada seja a dor! Bendita seja a dor", como dizia S. Josemaria Escrivá. E o mesmo santo nos advertia: "não temos o direito de ter nada no coração, exceto o amor de Deus". Abandonemos, pois, tudo n'Ele. E desapegados de nós mesmos, preparemo-nos para o grande salto, que será quando Ele quiser. No final do filme de S. Pio de Pietrelcina, escutamo-lo dizer: "Papai, estou pronto". Tal deve ser a contínua disposição de um cristão.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Estamos a caminho de algo grandioso...


O mundo, a vida, a existência, fazem parte de um belíssimo plano, de um fenomenal projeto. E nós, tão pequenos, temos a honra de poder fazer parte disso. Que coisa imensa! Todos assistiremos ao desfecho da história. Saberemos que, aquilo que críamos com tanta hesitação, era verdade. E quereremos voltar para viver tudo de novo com mais firmeza. Naquele dia, na vida totalmente desperta, tudo nos ficará claro; "então, não me perguntareis mais coisa alguma", disse Ele. Todos estamos rumando para lá. Vamos mais ou menos distraídos com as nossas coisas, caminhamos como ébrios.. pobre condição a nossa. Mas um dia acordaremos e, então, que belo!... Queira Deus que, naquela ocasião, nós tenhamos cultivado a Sua amizade.

O Silêncio


Com esse post, eu encerro essa série de transcrições deste livro do Thomas Merton. Espero que tenha sido - ou seja, algum dia - útil a alguém. Fica a recomendação do livro e do autor, lembrando que, ainda que se trate de alguém cujos escritos aprecio, eu sugiro lê-lo com critério, pois há coisas que ele diz, nesta ou noutras obras, que me parecem estranhas. Mas fica a dica. Pax.

***

Thomas Merton

A chuva cessa, e o  canto puro de um pássaro anuncia, de repente, a diferença entre o Céu e o Inferno.

Deus, nosso Criador e Salvador, deu-nos uma linguagem em que Ele pode ser anunciado, pois a fé nos vem pelo ouvido, e as nossas línguas são as chaves que abrem o céu aos outros.

Mas, quando o Senhor vem como um Esposo, nada fica por dizer, exceto que ele vem e que devemos ir ao seu encontro. Ecce sponsus venit! Exite obviam ei.

Saímos, então, a encontrá-Lo na solidão. Aí nos comunicamos com Ele só, sem palavras, sem pensamentos discursivos, no silêncio de todo o nosso ser.

Quando o que dizemos se destina só a Ele, é difícil poder dizê-lo em palavras. O que não se dirige à comunicação, nem sequer é objeto de experiência num nível que pode ser claramente analisado. Sabemos que isso não deve ser dito, porque não pode.

Mas, antes de chegarmos a esse inefável e impensável, o espírito ronda as fronteiras da linguagem, indeciso em ficar ou não nos seus próprios limites, a fim de ter alguma coisa a trazer aos homens. Essa é a prova daqueles que desejam cruzar as fronteiras. Se eles não estão prontos a deixar atrás as suas próprias idéias e palavras, não podem ir além.

Não desejemos, principalmente, ser mimados e consolados pro Deus. Desejemos, acima de tudo, amá-Lo.

Não desejemos ansiosamente que os outros encontrem consolação em Deus. Ajudemo-los, antes, a amar a Deus.

Não se procure consolação em falar de Deus; mas falemos d'Ele para vê-Lo glorificado.

Se O amamos deveras, nada pode consolar-nos além da sua glória. Quem, porém, procura a sua glória acima de tudo, será também bastante humilde para receber das suas mãos consolação, aceita, sobretudo, porque, com a sua misericórdia para conosco, Ele é glorificado nas nossas almas.

Quem procura a glória de Deus antes de tudo conhecerá que a melhor maneira de consolar a outrem é mostrar-lhe como amar a Deus. Só aí existe a verdadeira paz.

Se quiserem que as palavras ditas sobre Deus signifiquem algo, vibrem de zelo pela sua glória. Pois, se os ouvintes perceberem que falamos apenas para nosso próprio agrado, acusarão o nosso Deus de ser somente uma sombra. Se se ama a glória de Deus, é esta transcendência que se procurará, e é no silêncio que ela se encontra.

Não procuremos, pois, conforto numa certeza de sermos bons. Saibamos somente que só Deus é santo, só Ele é bom.

Não é raro que o nosso silêncio e as nossas orações levem mais ao conhecimento de Deus do que tudo que dissermos sobre Ele. O simples fato de querermos glorificar a Deus falando d'Ele não prova que o conseguiremos. Que importa, se Ele prefere o meu silêncio? Não ouviram dizer que o silêncio Lhe dá glória?

Se alguém entra na solidão com uma língua silenciosa, as criaturas mudas partilharão com ele a sua tranquilidade. Mas se entra com um coração silencioso, o silêncio da criação falará mais alto que a língua dos homens e dos anjos.

O silêncio dos lábios e da imaginação dissolve o que nos separa da paz das coisas, que só existem para Deus e não para si. Mas o silêncio de todo o desejo desordenado elimina a barreira, que nos separa de Deus. Então, passamos a viver só n'Ele.

As coisas mudas cessam, então, de conversar conosco em seu silêncio. É o próprio Senhor que nos fala, com um silêncio ainda mais profundo, do meio do nosso próprio ser, onde Ele se esconde.

Os que amam o ruído que fazem são impacientes do resto. Desafiam constantemente o silêncio das florestas, das montanhas e do mar. Eles passeiam com as suas máquinas, através da floresta silenciosa, em todas as direções, cheios de medo que um mundo calmo os acuse de vazios. A pressa da sua velocidade, sob pretexto de um fim, simula ignorar a tranquilidade da natureza. O avião ruidoso, por sua trajetória, seu estrondo, sua força aparente, parece por um momento negar a realidade das nuvens e do céu. Vai-se o avião, e fica o silêncio do céu. Afasta-se ele, e a tranquilidade das nuvens permanece. O silêncio do mundo é que é real. O nosso barulho, os nossos negócios, os nossos planos, e todas as nossas fátuas explicações sobre o nosso barulho, negócios e planos, tudo isso é ilusão.

Deus está presente, e o seu pensamento é vivo e palpitante na plenitude, na profundeza e na vastidão de todos os silêncios do mundo. O Senhor vigia, nas amendoeiras, o cumprimento das suas palavras (Jr 1,11).

Quer passe o avião esta noite ou amanhã, haja ou não haja carros na estrada, conversem no campo homens, haja ou não um rádio na casa, a árvore floresce em silêncio. Seja a casa vazia ou cheia de crianças, vão os homens à cidade ou trabalhem com os seus tratores no campo, entrem navios cheios de turistas ou de soldados, a amendoeira frutifica em silêncio.

Há homens para quem uma árvore não tem realidade enquanto não lhes vem a idéia de cortá-la; para quem o animal não tem valor enquanto não entra no matadouro. Homem que jamais olhou para uma coisa enquanto não se decide a abusar dela, e que nem sequer percebe a existência do que ele não projeta destruir. Tais pessoas dificilmente conhecerão o silêncio do amor, pois o seu amor é a absorção do silêncio de outrem em seu próprio barulho. E, por ignorar o silêncio do amor, não podem conhecer o silêncio de Deus, que é Caridade, que não destrói o que Ele ama, obrigado que está, por sua própria lei de Caridade, a dar vida a todos os que Ele atrai para o seu próprio silêncio.

O silêncio não deve existir na nossa vida, só por causa dele mesmo. Ele é ordenado a outra coisa. O silêncio é o pai da palavra. Uma vida inteira de silêncio é ordenada a uma declaração final, que pode ser posta em termos, uma declaração de tudo pelo que vivemos.

Vida e morte, palavras e silêncio, são-nos dados por causa de Cristo. Em Cristo morremos à carne e vivemos do espírito. Morremos à ilusão e vivemos da verdade. Falamos para celebrá-Lo, e somos silenciosos para meditar n'Ele e entrar mais profundamente no seu silêncio, que é ao mesmo tempo o silêncio da morte e da vida eterna, o silêncio da noite de Sexta-feira Santa e a paz da madrugada de Páscoa.

Recebemos no coração o silêncio de Cristo, quando pela primeira vez falamos de coração a palavra da fé. Conseguimos a salvação no silêncio e na esperança. O silêncio é a força da nossa vida interior. Ele entra no próprio coração do nosso ser moral, e de tal forma que, se não temos silêncio, não temos moralidade. O silêncio entra misteriosamente na composição de todas as virtudes e preserva-as da corrupção.

Por "silêncio" da virtude, entendo a caridade que deve dar a cada virtude uma vida sobrenatural e é "silenciosa" por ter as suas raízes em Deus. Sem tal silêncio, as nossas virtudes não passam de som, não passam de ruído exterior e manifestação de nada: o que revela as virtudes é a sua caridade interior, que tem um "silêncio" todo particular onde se esconde uma Pessoa: Cristo, Ele mesmo escondido, quando é falado, no silêncio do Pai.

Se enchemos de silêncio a nossa vida, viveremos em esperança, e Cristo viverá em nós, dando substância à nossa virtude. Assim, ao chegar a hora, confessamo-Lo diante dos homens, e essa confissão é cheia de sentido, porque se enraíza nas profundezas do silêncio. Ela acorda o silêncio de Cristo no coração dos que nos ouvem, e eles, assim, ficam silenciosos e começam a querer saber e a ouvir. Começaram a descobrir o seu eu verdadeiro.

Se a nossa vida é dissipada em palavras inúteis, jamais ouviremos qualquer coisa no fundo dos nossos corações, onde Cristo vive e fala em silêncio. Nunca seremos nada, e, no fim, ao chegar a hora de mostrarmos quem somos, apareceremos sem nada a dizer e estaremos exaustos de falar antes mesmo de ter alguma coisa a dizer.

Deve haver um momento no dia em que o homem que faz planos os esqueça e aja como se não os tivesse. Deve haver uma hora do dia em que o homem que precisa de falar fique em silêncio. E, a sua mente, não forme raciocínios, e ele se pergunte se os que fez tiveram algum sentido.

Deve haver um tempo em que o homem de oração vá orar como se fosse a primeira vez na sua vida; em que o homem resoluto ponha de lado as suas decisões, como se estivessem quebradas, e ele aprenda uma nova sabedoria: distinção entre o sol e a luz, entre as estrelas e as trevas, o mar e a terra firme, o céu noturno e o cume de uma colina.

Thomas Merton, Homem Algum é Uma Ilha

terça-feira, 29 de maio de 2012

A falsa e a verdadeira solidão


A falsa solidão é uma posição favorável donde o indivíduo, a quem se negou direito de tornar-se pessoa, se vinga da sociedade pela conversão do seu individualismo em arma destrutiva. A verdadeira solidão encontra-se na humildade, que é infinitamente rica. Falsa soledade é o refúgio do orgulho, e é infinitamente pobre. A pobreza da falsa solitude vem de uma ilusão que pretende, embelezando-se com o que ela não poderá jamais possuir, distinguir da massa comum dos homens um só indivíduo. A verdadeira é desinteressada. É, por isso, rica de silêncio, de caridade e de paz. Ela descobre em si mesma reservas de bem aparentemente inesgotáveis, a repartir com os outros. A falsa é concentrada em si mesma. E, como não descobre nada em seu centro, esforça-se por puxar tudo para si. Mas, cada coisa que ela toca, fica infetada por sua nulidade, e desagrega-se. A solidão autêntica purifica a alma, abrindo-a de par em par aos quatro vendos da generosidade. A mentirosa, porém, aferrolha a porta contra todos os homens e deixa-se ficar absorvida nas suas próprias futilidades.

Estas duas espécies de solidão procuram distinguir o indivíduo da massa. A verdadeira consegue-o; a mentirosa falha. A genuína separa um homem do resto, a fim de que ele possa livremente desenvolver as potências do bem que há nele, e cumprir o seu verdadeiro destino, pondo-se ao serviço de todos. A falsa, porém, separa um homem dos seus irmãos, para impedir que ele continue efetivamente a dar ou a receber qualquer coisa, em seu próprio espírito, o que o mantém nume estado de indigência, miséria, cegueira, tormento e desespero. Enlouquecido por causa da sua insuficiência, o orgulhoso apropria-se, sem nenhum pudor, de satisfações e direitos que não lhe são devidos, nem jamais podem satisfazer-lhe, e que não serão nunca para ele um objeto de necessidade. Por não ter aprendido a distinguir o que é realmente seu, procura desesperadamente possuir o que nunca poderá pertencer-lhe.

Na realidade, o orgulhoso não tem respeito de si mesmo, porque sempre lhe faltou oportunidade para descobrir se há nele alguma coisa digna de respeito. Convencido da própria baixeza, e na desesperada esperança de guardar os outros na ignorância, ele apodera-se de tudo que lhes pertence, para tentar esconder-se. O simples fato de pertencerem a outrem, abre-lhe o apetite das coisas. Mas, como ele secretamente detesta o que é seu, cada coisa, tão logo passa a pertencer-lhe, perde o valor e torna-se-lhe odiosa. Vê-se obrigado a encher sempre a solidão de novas presas, de mais e mais rapinas, devorando as coisas não por estar à míngua, mas por não poder tolerar a vista do que já obteve.

São estes, pois, os que se colocam acima da massa comum dos outros, por que nunca aprenderam a amar nem a si nem a eles. Odeiam os homens porque se odeiam primeiro, e o seu amor pelos outros não passa de uma expressão do seu ódio solitário.

O solitário orgulhoso nunca é mais perigoso do que ao parecer sociável. Não tendo verdadeira solidão e, portanto, energia espiritual própria, carece desesperadamente dos outros.

Mas sua indigência é para absorvê-los, como se pudesse, assim, encher o vazio do seu espírito.

Quando o Senhor, na sua justiça, quer manifestar e punir os pecados de uma sociedade esquecida da lei natural, deixa-a cair nas mãos desse gênero de homens. O orgulhoso solitário é o ditador ideal, que põe o mundo inteiro a ferro e fogo, disseminando a destruição, abrindo brechas de morte de cidade em cidade, para que elas possam proclamar o nada e a degradação dos homens sem Deus.

A expressão perfeita de uma sociedade, que perdeu todo o sentido do valor da solidão pessoal, é um Estado forçado a viver como refugiado entre as suas próprias ruínas, uma turba sem teto, um rebanho sem estábulo.

A verdadeira solidão é a da caridade, que "não procura o que é seu". (I Cor 13,5).

Nossa solitude pode ser fundamentalmente verdadeira, mas ainda imperfeita. Neste caso, contamina-se com o orgulho. É uma mistura confusa de ódio e amor. Um dos segredos da perfeição espiritual é perceber que possuímos essa mistura em nós, e saber distinguir uma da outra. Pois a tentação dos que buscam a perfeição é tomar o ódio pelo amor e colocar a sua perfeição numa vida solitária que distingue dos outros pelo ódio, pondo-se a amar e a odiar, ao mesmo tempo, o que eles têm de bom.

O ascetismo do falso solitário é sempre falso. Pretende amar os outros, mas odeia-os. Pretende detestar as criaturas, mas estima-as. E como as ama no mau sentido, só consegue odiá-las.

Por conseguinte, a nossa reclusão, enquanto for imperfeita, há de tingir-se de amargura e desgosto, porque nos esgotará por um constante conflito. O aborrecimento é inevitável. A amargura, que não devia haver, está lá no entanto. Sirvam-nos ambos para a nossa purificação. Devem ensinar-nos a distinguir o que é realmente amargo do que é realmente doce, impedindo a cada um de achar uma envenenada doçura no ódio de si mesmo, e uma envenenada amargura no amor dos outros.

O verdadeiro solitário tem de reconhecer a sua obrigação de amar os homens e as criaturas de Deus: obrigação que, longe de ser penosa e desagradável, é um dever que não é nunca amargo. Ele deve aceitar sem murmuração a doçura do amor, e não se maldizer por sentir que o seu amor pode, no início, ser um pouco desordenado. Deve sofrer sem amargura, para aprender a amar como lhe cumpre, e não temer que o amor seja uma ameaça à solidão. O amor é a sua solidão.

A nossa soledade será imperfeita, enquanto for marcada de inquietação e de acedia. Pois esse vício faz-nos odiar o que é bom e fugir das virtudes que só nos podem salvar. A pura solidão interior não foge das coisas boas da vida nem da companhia dos homens, pois deixou de pretendê-los por causa deles mesmos. Não os desejando mais, abandona o temor de amá-los. Livre do medo, livra-se do azedume. Purificada do fel, a alma pode, sem risco, ficar só.

De fato, a alma que não procura ataviar-se de possessões e não se regala com nenhuma satisfação comprada ou roubada será o mais das vezes abandonada pelos outros homens. O verdadeiro solitário não tem que fugir dos outros: eles é que cessam de reparar nele, porque não compartilha a sua busca de ilusões. A alma verdadeiramente solitária torna-se perfeitamente incolor, e o seu retiro cessa de excitar nos outros o amor ou o ódio. Ela pode, sem dúvida, tornar-se odiada ou perseguida: mas não será em razão do que ela é. Só será detestada porque tem uma obra divina a realizar. Sua solidão, como tal, não criará conflito. A solidão só traz perseguição quando toma a forma de "missão" a cumprir, e nesse caso há nela alguma coisa de bem maior que solitude. Pois, quando o solitário vê que o seu retiro tomou o caráter de missão, descobre que se tornou uma força a reagir no próprio seio da sociedade em que vive, um poder que perturba, impede e acusa as forças do egoísmo e do orgulho, lembrando aos outros a sua carência de solidão, de caridade e de paz com Deus.

A pura solidão interior encontra-se na virtude da esperança. A esperança nos retira inteiramente deste mundo, embora aí continuemos em corpo. Nossas mentes retêm a visão clara do que é bom nas escrituras. As nossas vontades permanecem castas e solitárias no meio de toda a beleza criada, não mutiladas num confinamento medroso e envergonhado, mas suspensas ao Céu por uma humildade que a esperança despojou de todo o azedume, de toda a consolação e de todo o temor.

Assim é que estamos e, ao mesmo tempo, não estamos no tempo. Somos pobres, possuindo todas as coisas. Não tendo nada de nosso em que nos fiarmos, nada temos a perder e a temer. Cada coisa é reservada à nossa segura possessão, fora do alcance, nos Céus. Vivemos onde as nossas almas desejam estar, e nossos corpos deixam de ter importância excessiva. Somos sepultados em Cristo, a nossa vida se esconde com Ele em Deus, e sabemos o que significa a liberdade de Cristo.

Essa, a verdadeira solidão, em torno da qual não há disputas nem questões. A alma que então se encontrou a si mesma gravita em direção do deserto, mas não faz objeção em permanecer na cidade, estando só em toda a parte.

Thomas Merton, Homem Algum é Uma Ilha

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Solidão sem recolhimento


Quantos há que vivem em solidão e não a amam, porque é uma solidão sem recolhimento! Ela não passa de um abandono. Não faz nada para levá-los a si mesmos. Estão sós porque estão separados de Deus, dos outros homens e até de si próprios. São como almas que erraram o inferno e acharam por engano o caminho do céu, somente para descobrir que o céu é para elas um inferno pior do que o inferno mesmo. Assim acontece com aqueles que entram forçados no paraíso da solidão e são incapazes de saborear-lhe as alegrias porque desconhecem o recolhimento.

Thomas Merton, Homem Algum é Uma Ilha

domingo, 27 de maio de 2012

A solidão essencial


Uma pessoa é pessoa à medida que possui um segredo e constitui uma solidão que não pode ser comunicada a nenhum outro. Se eu amo uma pessoa, amarei o que mais a faz ser uma pessoa: o mistério, o segredo, a solidão do seu ser, que só Deus pode penetrar e compreender.

Um amor que invade a intimidade espiritual do próximo, para abrir-lhe todos os segredos e sitiar com importunidade a sua solidão, não é amor: procura, sim, destruir o que ele tem de melhor, e de mais íntimo.

(...)

Este respeito pelos valores mais profundos da personalidade alheia é mais do que uma obrigação de caridade. É uma dádiva de justiça a todos os seres, especialmente àqueles, como nós, criados à imagem de Deus.

Nosso malogro em respeitar a intimidade espiritual de outras pessoas reflete um secreto desprezo de Deus mesmo. Emana desse orgulho crasso do homem decaído, que, no desejo de provar que é Deus, se intromete em tudo que não lhe diz respeito. A árvore da ciência do bem e do mal deu aos nossos protoparentes o gosto para conhecer as coias, não em Deus mas fora d'Ele, segundo um modo em que elas não são verdadeiramente conhecidas. Só em Deus as podemos encontrar, conhecer e amar, tais quais sã. A justiça original deu-nos o poder de bem amar, de aumentarmos a herança de vida, amando o próximo pelo bem dele mesmo. O pecado original deu-nos o poder de amar destruidoramente: arruinarmos o objeto do nosso amor, consumindo-o, sem outro proveito que o aumento da nossa fome interior.

Para arruinarmos os outros e a nós mesmos, não entramos no santuário interior, onde ninguém pode penetrar além do Criador. Mas, ao tirá-los de lá, para ensinar-lhes a viver como vivemos: centralizados sobre eles mesmos.

Se um homem desconhece o valor da sua própria solidão, como pode respeitá-la nos outros?

Quando a sociedade humana cumpre a sua verdadeira missão, as pessoas que a formam crescem cada vez mais em liberdade individual e integridade pessoal. E quanto mais o indivíduo desenvolve e descobre os secretos poderes da sua incomunicável personalidade, tanto mais contribuirá para a vida e o bem-estar do conjunto. A solitude é tão necessária à sociedade como o silêncio à linguagem, o ar aos pulmões e o alimento ao corpo.

Uma comunidade que tenta invadir ou destruir a soledade espiritual dos indivíduos que a compõem, condena-se à morte por asfixia espiritual.

Se não me posso distinguir da massa dos outros homens, jamais serei capaz de amar e respeitar o próximo, como devia. Se não me separo deles o bastante para conhecer o que é meu e seu, jamais descobrirei o que devo dar-lhes, nem lhes concederei a oportunidade de dar-me o que me devem. Somente uma pessoa pode saldar dívidas e cumprir obrigações. Se sou menos do que uma pessoa, não darei numa a outrem o que tem o direito de esperar de mim. Se o outro é que é menos do que uma pessoa, não saberá o que esperar de mim. Nem descobrirá jamais que tem algo a dar. Devemos normalmente educar-nos um ao outro pela satisfação recíproca das justas indigências de cada um. Mas, numa sociedade em que a personalidade é ofuscada e dissolvida, os homens nunca aprendem a encontrar-se e, portanto, a amar uns aos outros.

A solitude é tão necessária ao indivíduo e à sociedade, que falhando esta em proporcionar suficiente solidão para que se desenvolva a vida interior dos seus membros, eles se rebelam e vão procurar falsas soluções.

Thomas Merton, Homem Algum é Uma Ilha

Que significa conhecer-vos, ó meu Deus?


Que significa conhecer-vos, ó meu Deus?

Há almas que tremem e desfalecem ao pensamento de dar-vos um nome insuficiente!

Eu acordo de noite, coberto de um suor de medo, porque ousei chamar-Vos "Ato Puro".

Quando Moisés viu o espinheiro em chamas, a arder no deserto sem se consumir, não respondestes à sua pergunta com uma definição. Dissestes: "Eu sou". Qual foi o efeito dessa resposta? Fez instantaneamente santo o pó da terra, de modo que Moisés tirou as sandálias (símbolos dos seus sentidos e do seu corpo), para que não restasse nada entre a vossa santidade e a sua adoração.

(...)

"Ser" e "ser bom", eis conceitos que nos são familiares. Pois fomos feitos à vossa imagem, dotados de um ser que é bom porque é vossa dádiva. Mas o ser e a bondade que conhecemos encontram-se tão longe de Vós que nos decepcionam quando Vo-los aplicamos tais como os conhecemos em nós.

Por isto não nos dizem eles, como deviam, que sois santo.

Thomas Merton, Homem Algum é Uma Ilha.

sábado, 26 de maio de 2012

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Presença, Ausência e Liberdade de Deus


Deus está em toda a parte e nunca nos deixa. No entanto, Ele parece, umas vezes, presente; outras, ausente. Se não O conhecemos bem, não percebemos que Ele nos pode ser mais presente, em sua ausência, do que em sua presença.

Deus tem duas espécies de ausência. Uma é a que nos condena; a outra a que nos santifica.

Na ausência que condena, Deus "não nos conhece", visto que pusemos um outro deus em seu lugar e recusamos ser conhecidos por Ele. Na ausência que santifica, Deus esvazia a alma de toda a imagem capaz de converter-se em ídolo, e de cada interesse que poderia ser obstáculo entre a nossa face e a sua.

Na primeira espécie de ausência, Deus é presente, mas essa presença é negada pela de um ídolo. Deus está em frente do inimigo que, pelo pecado mortal, colocamos entre Ele e nós.

Na segunda espécie, Ele está presente, e essa essência é afirmada e adorada pela ausência do resto. Ele está mais perto de nós do que nós mesmos, embora não O vejamos.

Quem quer que O tente agarrar e reter, perdê-Lo-á. Ele é como o vento que sopra onde lhe apraz. Quem O ama, deve amá-Lo assim vindo não se sabe donde, e indo não se sabe para onde. Nosso espírito deve esforçar-se por ter essa pureza e liberdade do seu próprio Espírito, a fim de segui-lo aonde quer que vá. Quem somos nós para nos chamar de puros e de livres, se não é Ele que nos torna tais?

Thomas Merton, Homem Algum é Uma Ilha

Deixar a nossa sombra; voltar à Luz divina.


Não podemos encontrar o Onipotente, sem sair inteiramente da nossa fraqueza. Mas temos primeiro de descobrir o nosso nada, antes de passar além: e isto é impossível, enquanto acreditarmos na ilusão da nossa própria força.

O mosteiro é a Casa de Deus, e todos que aí vivem estão perto d'Ele. E, no entanto, é possível viver perto de Deus, e em sua própria Casa, sem jamais O descobrir. Por que isto? Porque continuamos a procurar-nos a nós mesmos e não a Deus, vivendo para nós e não para Ele. Transforma-se, então, o mosteiro em casa nossa, em vez de sua, e Deus se esconde de nós. Estamos no caminho da sua luz, e ficamos a olhar, perplexos, para a nossa sombra. "Sem dúvida, dizemos nós, isso não tem nada de Deus, é uma sombra". É certo. Mas a sombra é projetada pela Luz divina, e testemunha indiretamente a sua presença. Ela está lá para lembrar-nos que podemos voltar para Deus, desde o momento em que cessamos de amar mais as trevas que a luz.

Se, porém, deixamos de voltar a Deus, é que esquecemos que a sua vinda terá de ser para nós a de um Salvador, sem o qual estamos desamparados. (...) É impossível encontrá-Lo enquanto ignoramos que precisamos d'Ele. Esquecemos essa carência quando tomamos um gosto complacente das nossas boas obras. Os pobres e os desamparados são os primeiros a encontrá-Lo, pois Ele veio procurar e salvar o que estava perdido.

Thomas Merton, Homem Algum é Uma Ilha

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Subida do Monte Carmelo - 1º Capítulo

O áudio não ficou muito bom, mas dá pra entender o que nele se diz. Abaixo, uma breve retomada do essencial.


"Em uma noite escura,
De amor em vivas ânsias inflamada,
Oh! Ditosa ventura!
Saí sem ser notada,
Já minha casa estando sossegada."

Pontos afirmados pelo santo:

1- Não é possível alcançar a perfeição sem passar ordinariamente por duas noites ou vias purgativas referentes às duas partes do homem - uma inferior e  outra superior.

a) A primeira, é da parte sensitiva - própria dos principiantes.
b) A segunda, é das faculdades espirituais - própria dos já aproveitados.

Dizer que saiu "quando sua casa se achava sossegada" significa que foi preciso ter pacificada a parte sensível, pois não é possível sair das penas e angústias dos apetites sem estes estarem mortificados e adormecidos.

Não era possível entrar nessa noite somente com os próprios esforços, pois é muito difícil alguém acertar desprender-se perfeitamente sozinho.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

O Recolhimento


O recolhimento é uma transposição de foco, que harmoniza toda a nossa alma com o que está além e acima de nós. É uma "conversão", uma "volta" do nosso ser às coisas espirituais e a Deus. Como são simples as coisas espirituais, o recolhimento é também uma simplificação do nosso estado de espírito e da nossa atividade espiritual. Tal simplificação nos confere aquela paz e visão das coisas, que Jesus proclama, ao dizer: "Se o teu olho é simples, todo o teu corpo será luminoso" (Mt 6,22). Como a passagem se refere principalmente à pureza de intenção, lembra-nos que é isso também que o recolhimento realiza: purifica-nos a intenção. Ele recolhe todo o amor da alma, e, depois de elevá-lo acima de toda a criação, dirige-o para Deus e para a sua Vontade.

Thomas Merton, Homem Algum é Uma Ilha

terça-feira, 22 de maio de 2012

"É a esperança cega que tenho em Sua misericórdia..."


Perfeita esperança na bondade de Deus é a prerrogativa dos que mais se aproximaram da sua santidade. E porque estão mais unidos, é que parecem mais longe dela: acham insuportável o contraste e a oposição entre eles e a santidade. Em tais circunstâncias parece presunção esperar, e, no entanto, a esperança é uma necessidade imperiosa em suas almas, tomadas e possuídas pela inexorável santidade de Deus. Assim, compreendendo que para os seus pecados é quase impossível o perdão, são esmagados pela gratuita realidade da sua absolvição. Esta só podia vir de Deus.

Thomas Merton, Homem Algum é Uma Ilha.

sábado, 19 de maio de 2012

Sinceridade é uma questão de amor e de medo


Todo o problema da sinceridade é, pois, fundamentalmente, uma questão de amor e de medo. O homem egoísta e mesquinho, que ama pouco, e teme muito não ser amado, não pode ser profundamente sincero, embora aparente, às vezes, um caráter superficialmente franco. Em seu íntimo, ele será sempre envolto em falsidade. Mesmo nas suas melhores e mais sérias intenções, não deixará de enganar-se a si mesmo. Nada do que ele diz ou sente sobre o amor, humano ou divino, pode merecer crédito, até que o seu amor seja ao menos purificado dos temores mais baixos e mais irrazoáveis.

Mas o homem que não tem medo de admitir quanto vê de mau em si mesmo e, ainda, se reconhece como um possível objeto do amor divino, justamente em razão das suas deficiências, esse pode começar a ser sincero. A sua sinceridade funda-se na certeza que ele põe não em ilusões sobre si mesmo, mas na infinita e infalível bondade de Deus.

Thomas Merton, Homem Algum é Uma Ilha.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

A Insinceridade com Deus é uma Blasfêmia


A verdadeira razão por que tão poucos acreditam em Deus é que cessaram de crer que um Deus pode amá-los. Mas o seu desespero é, talvez, mais respeitável do que a insinceridade de quantos julgam poder burlar a Deus, para que Ele os ame pelo que não são. Essa forma de dobrez é bem comum entre os que se dizem "crentes", e se apegam conscientemente à esperança de um Deus aplacado pela oração, que suporta o seu egoísmo e insinceridade, e os ajudará a realizar seus fins interesseiros. A adoração que prestam vale-lhes pouco, e não honra a Deus. Não se limitam a considerá-lo como um rival em potência (e, por conseguinte, se põem em pé de igualdade com Ele), mas ainda O pensam bastante vil para fazer com eles um arranjo clandestino, o que é uma grande blasfêmia.

Thomas Merton, Homem Algum é Uma Ilha.

2º Podcast S. João da Cruz - Divisão da Obra e Explicação Escrita do "Monte" pelo próprio Santo


Para escutar o Podcast, cliquem na imagem acima.

Abaixo, a explicação do "Monte" pelo próprio S. João da Cruz

Desenho original do Santo.
Esquema do Monte da Edição de Alcalá, 1618, segundo a interpretação de Diogo de Astor.

MONTE CARMELO
[No sopé do Monte]

Para vir a saborear TUDO - não queiras ter gosto em NADA
Para vir a saber TUDO - não queiras saber algo em NADA
Para vir a possuir TUDO - não queiras possuir algo em NADA
Para vir a ser TUDO - não queiras ser algo em NADA
Para vir ao que não GOSTAS - hás de ir por onde não GOSTAS
Para vir ao que não SABES - hás de ir por onde não SABES
Para vir a possuir o que não POSSUIS - hás de ir por onde não POSSUIS.
Para chegar ao que não ÉS - hás de ir por onde não ÉS
Quando reparas em algo - deixas de arrogar-te ao todo
Para vir de todo ao todo - hás de deixar-te de todo em tudo
E quando venhas de todo a ter - hás de tê-lo sem nada querer.

Nesta desnudez encontra o espírito o seu descanso, pois nada cobiçando, nada o impele para cima e nada o oprime para baixo, porque está no centro da sua humildade.

[As três sendas do Monte, da esquerda para a direita]

Caminho de Espírito de Imperfeição: 

Do céu - nem isso; glória - nem isso; gozo - nem isso; saber - nem isso; consolo - nem isso; descanso - nem isso; Quanto mais os desejei, com tanto menos me encontrei.

Senda do Monte Carmelo:

Espírito de perfeição: nada, nada, nada, nada, nada, nada e ainda no Monte, nada.

Caminho de Espírito de Imperfeição:

Da terra - nem isso; possuir - nem isso; gozo - nem isso; saber - nem isso; consolo - nem isso; descanso - nem isso - Quanto mais quis buscá-los, com tanto menos me encontrei.

[No cume do Monte, da esquerda para a direita, segundo os diversos planos]

Quando já não o queria, tenho tudo sem querer (cf. 2Cor 6,10).
Quando menos o queria, tenho tudo sem querer - Paz - Gozo - Alegria - Deleite - Sabedoria - Justiça - Fortaleza - Caridade - Piedade.

Nada me dá glória - Nada me dá pena.

Já não há caminho por aqui, porque para o justo não há lei; ele é a lei para si mesmo (cf. 1Tm 1,9; Rm 2,14).

Eu vos introduzi na terra do Carmelo, para que comêsseis o seu fruto e o melhor dlea (Jr 2,7). 

Só mora neste monte - honra e glória de Deus.

***

Na Edição de Alcalá, 1618, lê-se a seguinte explicação dos três caminhos do Monte.

Monte de Deus, monte elevado, monte alcantilado, monte em que Deus se compraz em habitar (Sl 67, 16-17).

[As três sendas do Monte, da esquerda para a direita]

Caminho de Espírito Imperfeito: Demorei mais e subi menos, porque não tomei a senda. Bens do céu - por havê-los procurado tive menos do que teria se houvesse subido pela senda.

Senda estreita da Perfeição: Estreito é o caminho que conduz à vida" (Mt 7,14).
Bens do céu: Glória - nem isso; segurança - nem isso; gozo - nem isso; consolos - nem isso; saber - nem isso. Nada, nada, nada, nada, nada. Bens da terra: Gosto - também não; ciência - também não; descanso - também não. Tanto mais algo serás, quanto menos o quiseres ser.

Caminho do Espírito Errado: Quanto mais os procurava, com tanto menos me achei. - Bens da terra - Não pude subir ao Monte por enveredar por caminho errado.

[Cimo do Monte, da esquerda para a direita, segundo os diversos planos]

Quando não o quis, com amor de propriedade, foi-me dado tudo sem que o buscasse - E no Monte, nada - Por aqui já não há caminho, pois para o justo não há lei (cf. 1Tm 1,9; Rm 2,14). - Depois que me pus em nada, acho que nada me falta. - Sabedoria, Ciência de Deus - Justiça, Força, Prudência, Temperança - Caridade, Alegria, Paz, Longanimidade, Paciência, Bondade, Benignidade, Mansidão, Fé, Modéstia, Continência, Castidade - Segurança - Fé, Amor, Esperança - Divino Silêncio - Divina Sabedoria - Perene Convívio - Só mora neste Monte - a honra e glória de Deus. - "Eu vos introduzi na terra do Carmelo, para que comêsseis o seu fruto e o melhor dela" (Jr 2,7).

S. João da Cruz, Esquemas Gráfico-Literários: "Monte de Perfeição" In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

1º Podcast Amor e Pobreza - Projeto de Leitura São João da Cruz




Quem não estiver conseguindo escutar, clique aqui. Pax.

Verdade, Sinceridade e Veracidade X Mentira e Ilusão


Thomas Merton

Verdade objetiva é uma realidade que se encontra tanto dentro como fora de nós, à qual pode a nossa inteligência conformar-se. Devemos conhecer essa verdade, e manifestá-la por palavras e ações.

Não se exige que se mostre tudo que sabemos, porque há coisas que nos cumpre guardar ocultas dos homens. Mas, há outras que devemos tornar conhecidas, ainda que outros já as conheçam.

Devemos à realidade que nos cerca uma homenagem definida, e somos obrigados, em certas ocasiões, a dizer o que são as coisas, dar-lhes o seu nome verdadeiro e expor aos homens com que vivemos o nosso pensamento sobre elas.

O fato de viverem os homens constantemente a falar mostra a sua carência de verdade, e a dependência em que se acham do testemunho recíproco, para que se forme e confirme em sua mente a verdade.

Mas o fato de desperdiçar-se tanto tempo em falarem de nada, ou em trocarem entre si as mentiras ouvidas, ou de perderem tempo em escândalos, maledicências, calúnia, brincadeiras pesadas e em zombarias, mostra que o nosso espírito é deformado por uma sorte de desprezo da realidade. Em vez de conformar-nos ao que é, torcemos nossas palavras e pensamentos, para adaptá-los à nossa própria deformação.

O lugar em que se instala essa deformação é a vontade. A despeito de ainda falar a verdade, vamos perdendo cada vez mais o desejo de viver de acordo com ela. Nossos desejos não são verdadeiros, porque se recusam a aceitar as leis do nosso ser: deixam de funcionar segundo as linhas da nossa realidade. Mergulhados em falsos valores, arrastam consigo a nossa mente, enquanto as nossas línguas, incansáveis, testemunham, sem cessar, a desordem que nos vai alma adentro. (...)

Veracidade, sinceridade e fidelidade têm estreito parentesco. Sinceridade é ser fiel à verdade. Fidelidade é ser veraz nas promessas e resoluções. Uma inviolável veracidade nos torna fiéis a nós mesmos, a Deus, e à realidade ambiente. E, por isso mesmo faz-nos perfeitamente sinceros.

A sinceridade, no seu mais profundo sentido, deve ser mais do que uma disposição temperamental à franqueza. É uma simplicidade de espírito, preservada pela intenção de ser verdadeiro. Ela implica o dever de manifestar a verdade, e defendê-la. O que por sua vez, reconhece que somos livres de respeitá-la, ou não, e que ela, até certo ponto, fica à nossa mercê. Mas, isto, é uma terrível responsabilidade, pois, profanando a verdade, profanamos nossas almas.

A verdade é a vida da inteligência. O espírito não vive plenamente, senão pensando direito. E se ele não vê o que faz, como pode a vontade fazer bom uso da liberdade? Mas, uma vez que a nossa liberdade é, de fato, imersa numa ordem sobrenatural, e tende a um fim sobrenatural que ela não pode sequer conhecer por meios naturais, a vida plena da alma deve ser luz e vigor, que Deus lhe infunde sobrenaturalmente. Esta é a vida da graça santificante, com as virtudes infusadas de fé, esperança e caridade, e todas as outras.

A sinceridade, no sentido mais pleno, é um dom divino, uma clareza de espírito que só pode vir com a graça. Enquanto não formos "homens novos", criados segundo Deus "em justiça e na santidade da verdade", impossível nos é evitar um pouco da mentira e da fraude que se tornaram instintivas na nossa natureza, corrompida, como diz S. Paulo, "segundo os desejos do erro" (Ef 4,22).

Um dos efeitos do pecado original é esse instintivo preconceito em favor dos nossos desejos egoísticos. Não vemos as coisas como são, porque tudo vemos centralizado em nós. Medo, ansiedade, gula, ambição e essa desesperada fome de prazer, tudo deforma a imagem da realidade que se reflete em nossa mente. A graça não corrige, de repente, essa distorção: mas dá-nos os meios de reconhecê-la e de dar-lhe o devido desconto. E nos ensina o que temos de fazer para a corrigir. A sinceridade paga-se a este preço: humildade em reconhecer os nossos inúmeros erros, e fidelidade em retificá-los incansavelmente.

O homem sincero, portanto, é o que tem a graça de saber que pode ser instintivamente insincero e que até a sua sinceridade natural pode converter-se em disfarce da irresponsabilidade e da covardia moral; como se fosse bastante reconhecer a verdade, e ficar de braços cruzados!

Como é que a nossa confortável sociedade perdeu o senso de um valor como a veracidade? A vida tornou-se tão fácil que pensamos poder passá-la, sem falar a verdade. Um mentiroso não mais tem necessidade de sentir que a sua mentira é capaz de levá-lo à inanição. Se viver fosse uma coisa mais precária, e os hipócritas tivessem dificuldade em ser aceitos pelos outros homens, não nos enganaríamos a esse ponto, seja a nós mesmos, seja uns aos outros, com tanta negligência.

Mas o mundo inteiro aprendeu a escarnecer da veracidade, ou a ignorá-la. Metade do mundo civilizado ganha a vida pregando mentiras. A propaganda, os anúncios, e todas as formas de publicidade que tomaram o lugar da verdade, ensinaram os homens a supor que podem dizer a outros o que quiserem, contanto que soe bem e provoque neles uma resposta emocional profunda. (...)

A sinceridade torna-se impossível num mundo governado por uma falsidade que ele se crê bastante arguto para descobrir. Apesar de menoscabar a propaganda, continuamos a amá-la. (...)

Essa duplicidade é um dos sinais mais certos dum estado de pecado, em que a pessoa é cativa dum amor que ela sabe que deve odiar.

Thomas Merton, Homem Algum é Uma Ilha.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

"Amando os outros, os podemos fazer bons"


Muita gente não revela nunca a parte de bem que nela se esconde, até o dia em que lhe damos um pouco do bem, isto é, um pouco da caridade que há em nós.

Somos de tal modo filhos de Deus, que, amando a outros, os podemos fazer bons e amáveis, a despeito deles mesmos.

Thomas Merton, Homem Algum é Uma Ilha.

Suposições e auto-projeção x Conhecimento dos outros em Deus


Quanto mais próximos de Deus, tanto mais unidos seremos com os que vivem perto d'Ele. Só poderemos vir a compreender os outros, amando Aquele que os compreende do interior dos abismos do seu ser. Do contrário, só os conhecemos pelas conjeturas que se formam no espelho interior das nossas almas.

Se estamos aborrecidos, sempre pensamos que eles também estão. Se com medo, pensá-los-emos ora covardes, ora cruéis. Se somos carnais, acharemos a nossa sensualidade refletida em cada um que nos atrai. E um certo instinto pode por co-naturalidade, descobri-la antes que o outro tenha percebido a sua existência. Assim podemos atrair a outros, e trazer à tona o seu mal, pela força das nossas paixões. Mas, assim fazendo, não viremos a conhecê-los como são: apenas os deformamos, a ponto de os conhecer como não são. Assim agindo, a maior deformação que produzimos é sobre as nossas próprias almas.

Thomas Merton, Homem Algum é Uma Ilha.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Budismo e Cristianismo

Quem me conhece sabe que, embora eu seja um "intolerante dogmático" católico, sempre simpatizei com o budismo. Sempre apreciei a sua estética, o seu modo de vida. E acho o Príncipe Siddharta, o primeiro Buddha, um sujeito muitíssimo interessante.

Meu conhecimento do budismo é, de fato, muito pouco. Porém, do pouco que eu conheço, posso afirmar que encontrei muitos paralelos entre ele e a mística cristã. Lendo, por exemplo, S. João da Cruz e Sta Teresa D'Avila, julgo ter visto pontos consonantes com o zen e o vazio propagados pelo budismo. Não estou, com isto, me filiando a essa corrente da falsa mística que concebe uma substância supra-denominacional e supra-conceitual que, a fim de dar-se a conhecer aos sujeitos comuns, encarna-se sob diferentes símbolos, fórmulas e rituais. Essa visão é obviamente falsa, muito embora ela possua muitíssimos seguidores. Quando falo de semelhanças, estou me referindo a aspectos que se dão no âmbito, ainda, da natureza - e não da mística propriamente dita. Lembremos que, moralmente, os homens de qualquer lugar e época são potencialmente capazes das mesmas coisas. Se os cristãos trouxeram à história o fenômeno de uma virtude elevada quase ao infinito, isso se deveu claramente ao influxo da graça divina, que é uma realidade sobrenatural de todo.

Mas há elementos do próprio campo da natureza que, se entendidos e praticados, poderiam levar o homem a dispor-se a um contato com a dimensão do mistério. Neste sentido, existem certas potencialidades humanas que, mesmo sendo naturais, o podem elevar a um certo "toque" ou vislumbre desta esfera do sagrado. A idéia do desprendimento de si e do vazio interior - kenosis no cristianismo - está em muitas outras ramificações religiosas e particularmente na vertente zen do budismo. Uma leitura atenta das experiências dos que conheceram isto pode ser capaz de retirar as dúvidas e desconfianças a respeito da sua legitimidade. Um interessantíssimo relato, por exemplo, se encontra no livro "A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen", do Eugen Herriguel , e do qual já transcrevi alguns trechos para este blog. É um livro de leitura fácil, breve e de um relato impressionante e muito belo.


Quem se dispuser a ler essa obra verá que não dá pra demonizar tal experiência. Isto não quer dizer que estaremos a legitimar uma concepção religiosa alternativa ao cristianismo. É óbvio que não; não se trata de relativizar a verdade, mas de reconhecer que neste negócio há algo de, no mínimo, interessantíssimo e que parece evidentemente verdadeiro, pois que irrefutavelmente eleva o ser humano a um outro nível, seja de ação, seja de interioridade. Se tal é verdade, cumpre dizer que este aspecto deveria estar presente, também, no cristianismo que, na nossa concepção, é a religião perfeita. Pois bem! É justamente o que eu afirmo: encontrei algo disso em S. João da Cruz para quem o processo de santidade é não um algo cumulativo, mas de esvaziamento, de retirada dos excessos, até que, vazio de si mesmo, como um "pássaro de cor indefinida" - pois a cor representaria, aqui, a particularidade caprichosa do sujeito e, portanto, um indício de que ele ainda guarda reservas - ele possa ver as coisas e a si mesmo sem véus, isto é, em sua plena objetividade e simplicidade. E isto inclui uma como que intuição do mistério.

Para os que leram as críticas que o Chesterton faz ao budismo, torna-se difícil olhar para essa tradição oriental com qualquer simpatia. A desconfiança surge-lhes na alma como uma espécie de garantidora contra a heresia e o erro panteísta. Eu, de minha parte, li o Ortodoxia de Chesterton, bem como a sua biografia de Sto. Tomás de Aquino. Desnecessário é falar da genialidade deste grande escritor e da agudeza do seu pensamento, porém, daquilo que eu li nessas obras - não conheço as outras -, parece-me não ser possível formar uma idéia justa do que seja o budismo. Penso, inclusive, que a intenção deste "Apóstolo do Senso Comum" não era dar um esclarecimento exaustivo da natureza do budismo, pelo que utilizar-se daquilo a que ele se referiu como prova inconteste da inutilidade geral do budismo ou da sua diabolicidade evidente, é, a meu ver, muitíssimo precipitado e equivocado.

Uma obra que eu penso valer muito a leitura, e que visa identificar precisamente qual a natureza, a validade e os limites desses paralelos entre o budismo e o cristianismo, é o livro do Monge Trapista, já falecido, Thomas Merton, chamado "Zen e as Aves de Rapina". Embora o livro deva ser lido com ressalvas e muito critério - pois o Thomas parecia ter uma certa simpatia excessiva pelo budismo -, ele traz muita coisa valiosa. Advirta-se o leitor para que tal leitura não o ponha em confusão, inserindo-o numa visão sincrética. Não é essa a idéia.


Os dois livros a que me refiro estão disponíveis para baixar na net. É só procurar.

Enfim, além dos tais paralelos incontestáveis - ainda que se diga serem meramente acidentais -, o budismo possui ainda outras coisas muito interessantes. A própria pessoa do seu fundador, o príncipe Siddharta, é  fascinante. A meditação que ele teve sob a "árvore frondosa", a respeito do problema do sofrimento, é genial. A sinceridade da sua busca é irrepreensível. O sujeito passou por uma ascese duríssima, submeteu toda a sua vida nesse caminho, renunciou ao conforto, luxo e fama,  e, por fim, supostamente atingiu a iluminação. Quem ler todo esse processo detidamente, verá que ele não tem nada de simplório. Reduzir o budismo a uma corrente herética do hinduísmo é outra atitude que não esclarece nada.

Mas, ainda que o budismo e aqueles seus paradoxos sejam assim tão fascinantes, há algo nele que é avesso à verdadeira libertação do homem: embora pretenda alcançar à iluminação, ele crê poder prescindir de Deus. Há, de novo, uma auto-suficiência humana que estraga tudo. Embora o adepto tenha de se submeter aos preceitos budistas e levar uma vida honrada se deseja realmente se tornar um buddha ou aproximar-se o quanto possível deste estágio, a iluminação poderá ser alcançada pelo próprio sujeito. Isto supõe que, pelo bom uso da nossa determinação, podemos atingir essa certa "bem-aventurança" sozinhos.

Tal idéia, aparentemente otimista e agradável, é, na realidade, bastante nociva e totalmente irreal, pois tende a divinizar o homem. É claro que, antes do processo, há aquela necessidade de o sujeito abandonar o egoísmo e desprender-se de si mesmo, mas, ainda assim, tal atitude traz por pressuposta a fé de que o sujeito seria a sua própria garantia no acesso à verdade supra-natural.

A meu ver, não se pode dizer - como fazem alguns - que o budismo seja uma religião atéia, visto que ele não nega a existência de Deus, ou melhor, não afirma que Ele não existe. Ele simplesmente se abstém de tratar sobre o tema, pelo que poderia talvez ser mais coerentemente classificado como agnóstico neste sentido. Certa vez, interrogado sobre a existência de Deus, o Buddha respondeu mais ou menos o seguinte:

"Se tu fosses atingido por uma flecha envenenada, o que tu farias? Ficarias a meditar sobre a procedência da flecha, ou, antes, farias o possível para tratar, o quanto antes, a ferida?". 

Com isto, ele enfatizava a necessidade de aprendermos a nos libertar da ilusão ao invés de ficar fazendo perguntas sobre assuntos que estariam acima da nossa capacidade ou que, talvez, seriam mera perda de tempo. E aqui precisamente se encontra a grande diferença entre o cristianismo e o budismo. No primeiro, Jesus deixa bem claro: "sem mim, nada podeis fazer". No segundo, o sujeito é capaz de rumar sozinho à iluminação, prescindindo de Deus. Esta auto-suficiência não pode ter outra fonte que a soberba e se harmoniza, na verdade, com a grande pretensão de Adão que, ao ser enganado pela serpente, desejou para si, de modo totalmente egoísta, a semelhança com Deus, sem Deus. No pecado original, não há nenhuma dúvida em Adão da existência de Deus, mas ele simplesmente O relega a uma importância secundária, pondo a si mesmo como prioridade. A soberba de Adão foi o motivo do mal no mundo.

Me perguntarão: "como queres estabelecer uma comparação tão arbitrária entre o pecado original, sem dúvida motivado pela soberba, com a prática budista que apregoa, antes de tudo, o desprendimento de si mesmo? A prática do vazio não se assemelha muito mais com a kenosis cristã, como tu já referiste?" Sim, de fato se assemelha; porém, pelo fato de fazer toda a eficácia da bem-aventurança provir do mero esforço humano, tem-se uma superestima desse mesmo esforço e o ser humano termina por converter-se no seu próprio redentor.

Talvez também por causa disso vê-se hoje o crescimento no número de ocidentais que, dia após dia, mais demonstram procurar nessas correntes orientais a verdade de que têm tanta sede, a contemplação que lhes falta na correria do cotidiano. Primeiramente, o budismo praticado vem oferecer o silêncio, o recolhimento que tanto faz falta na modernidade frenética. Mas, em segundo lugar, essa modernidade tem, como pano de fundo, a mesma filosofia subjetivista que tende a divinizar o sujeito. Talvez seja por isto existe, hoje, esta certa identificação entre o homem moderno e o budismo, pois aquele vê neste a oportunidade de adquirir o recolhimento de que se vê sedento sem, no entanto, abrir mão do seu pressuposto fundamental: o do subjetivismo, da onipotencialização dos próprios esforços, da pretensão ser a garantia última de si mesmo.

domingo, 13 de maio de 2012

Amar e soltar


"Assim como à concepção se segue o parto, ao acolhimento, cuidado e proteção deve seguir-se o desprendimento: deixar o outro livre para que seja ele mesmo, não segurá-lo junto de si, conservá-lo como se fosse coisa própria. O amor consumado reconhece-se em que deixa o outro ser ele mesmo, não o retém, antes o solta e se solta a si mesmo nesse desprendimento"

Joseph Ratzinger, Santa Maria, Mãe dos Cristãos

quarta-feira, 9 de maio de 2012

A Vida Monástica - Parte II


Thomas Merton

De todas as Ordens religiosas, as Ordens monásticas são as que possuem as mais antigas e monumentais tradições. Ser chamado à vida monástica, é ser chamado a uma forma de santidade, enraizada na sabedoria de um distante passado, e, no entanto, viva e moça, com uma mensagem peculiarmente nova e original aos homens do nosso tempo. Ninguém pode tornar-se monge, no sentido mais completo da palavra, sem que a sua alma se harmonize ao poder transformante e vivificador da tradição monástica. E se é isso verdade em qualquer parte, sê-lo-á especialmente na América, onde os homens não estão acostumados a antigas tradições, nem muitas vezes prontos a compreendê-las.

Que é a tradição monástica? É a forma de vida, praticada e transmitida de geração a geração, desde os tempos dos primeiros monges, os Padres do Deserto egípcio, os quais, por sua vez, achavam que simplesmente punham em prática a pobreza e a caridade dos Apóstolos e dos primeiros discípulos de Cristo. A tradição monacal é, assim, um corpo de costumes, atitudes e crenças, que resumem toda a sabedoria da forma de viver monástica, e ensina o monge a ser monge, da maneira mais simples e eficiente - a maneira como monges sempre foram monges. Mas, ao mesmo tempo, ela diz ao monge como ser monge nas circunstâncias peculiares do nosso tempo, lugar e cultura.

A tradição monacal nos diz, por exemplo, o lugar que têm em nossa vida a oração, a leitura e o trabalho. Mostra-nos que a hospitalidade é um aspecto importante da vocação monástica. Ensina-nos que temos de ser homens de penitência e de disciplina, ensinando-nos, ao mesmo tempo, a justa medida e a discrição a seguir nestas coisas. Mostra-nos claramente a relativa insignificância da observação exterior, comparada com o espírito interior e o que é realmente essencial à vida monástica. Em uma palavra, ela põe tudo em ordem, na vida dos monges.

Onde falta o senso da tradição própria dos monges, eles começam logo a levar uma vida desequilibrada. São incapazes de aprender a verdadeira discrição. Não podem adquirir o senso das proporções. Esquecendo o que deviam ser, tornam-se incapazes de fixar-se e de viver em paz no mosteiro. Não conseguem viver em paz com os seus superiores ou irmãos. Por que isso? Porque monges que nunca aprenderam a ser verdadeiros monges, ficam como loucos, tentando viver a vida monástica com o espírito e os métodos apropriados a outra espécie de vida. Somente um genuíno senso da tradição monacal consegue preservar o bom-senso e a paz no mosteiro. Mas esse senso não se adquire automaticamente, principalmente num mosteiro de pouca ou nenhuma tradição. Ele deve ser aprendido. E só por um contato direto com as fontes da sua vida. É por isso que S. Bento exorta os seus monges a lerem Cassiano, S. Basílio e os Padres do Deserto. Mas a leitura dos antigos livros monásticos é só um desses meios, e não o mais importante. A única maneira de tornar-se monge, é viver entre monges reais, e aprender a viver por seu exemplo.

Nessa questão de tradição monástica, devemos ter o cuidado de distinguir tradição e convenções. Em muitos mosteiros de pouca tradição viva, pensam os monges que são tradicionais. Por quê? Porque estão apegados a um complicado corpo de convenções. Convenção e tradição podem, na superfície, parecer a mesma coisa. Mas, essa semelhança superficial só serve para tornar o convencionalismo ainda mais nocivo. Tais costumes convencionais são a morte da tradição real, como, aliás, de toda a vida verdadeira. São parasitas que aderem ao organismo vivo da tradição e devoram-lhe a ralidade, para convertê-la em oco formalismo.

A tradição é viva e ativa ao passo que a convenção é passiva e morta. A tradição não nos forma automaticamente: temos de trabalhar para compreendê-la. A convenção, essa é aceita passivamente, como coisa de rotina. É por isso que ela se torna facilmente uma evasão da realidade, oferecendo-nos apenas uns pretensos meios de resolver os problemas da vida - um sistema de gestos e formalidades. A tradição ensina-nos realmente a viver e a tornar-nos plenamente responsáveis por nossa própria vida. Ela é, assim, muitas vezes, o extremo oposto de tudo o que é ordinário, e pura rotina. Já o costume convencional, que não passa de repetição de hábitos familiares, rege a lei do menor esforço. Executa-se um ato sem compreender-lhe o sentido, simplesmente porque os outros fazem o mesmo. A tradição, que é sempre velha, é, ao mesmo tempo, sempre nova, porque sempre revive - renascendo em cada nova geração, para ser vivida e aplicada de um modo novo e particular. A convenção é simplesmente a ossificação de costumes sociais. As atividades das pessoas convencionais são simples desculpas para não agirem de um modo mais integralmente humano. A tradição alimenta a vida do espírito, enquanto a convenção apenas disfarça a sua decadência interior.

Finalmente, a tradição é criadora. Sempre original, ela abre, sem cessar, novos horizontes a uma velha caminhada. A convenção, por seu lado, é completamente despida de originalidade. É uma imitação servil. Fecha-se sobre si mesma e leva à completa esterilidade.

A tradição nos ensina a amar, porque desenvolve e amplia as nossas faculdades, mostrando-nos como havemos de entregar-nos ao mundo em que vivemos, em retribuição de tudo que dele recebemos. O formalismo só alimenta ansiedade e medo. Ele nos separa das fontes de toda a inspiração, arruína a nossa fertilidade para fechar-nos dentro da prisão dos esforços frustrados. Ela é, no fim, apenas a máscara da futilidade e do desespero. Nada poderia ser melhor para um monge, do que viver e crescer na sua tradição monástica. E nada mais fatal para ele, do que dissipar a sua vida num emaranhado de convenções monásticas.

MERTON, Thomas. Homem Algum É Uma Ilha. Rio de Janeiro: AGIR, 1968. p. 131-133.

terça-feira, 8 de maio de 2012

A Vida Monástica - I


Thomas Merton
Depois há a vocação monástica.

Se o padre pode, de algum modo, ser definido pela necessidade que têm os outros homens da sua ação santificante no mundo, isso é menos evidente num monge. Porque, embora seja verdade que a presença de cada santo no mundo exerce um efeito santificante, o monge não existe precisamente para que outros possam ser santos.

Assim seria um erro supor que a essência da vocação monástica é a oração pública. O monge ora, sem dúvida, pelos outros homens e pela Igreja toda. Mas não é isso a única e, mesmo, a principal razão da sua existência, que ainda menos se justifica pelo ensino, a produção literária, o estudo da Escritura ou do Canto Gregoriano, a agricultura e a pecuária. Há profusão de vacas no mundo, sem monges para criá-las.

É verdade que a vocação monástica dá testemunho à infinita transcendência de Deus, porque proclama em face do mundo que Deus tem o direito de separar alguns homens para que eles possam viver só para Ele. Mas, ao entrar no mosteiro, o monge deveria pensar em algo mais do que isso. De fato, não seria bom para ele ser por demais cônscio de que o seu sacrifício pode ter algum sentido para os outros homens. Se ele pensa muito que o mundo o recorda, a sua própria lembrança restabelecerá os vínculos que foram cortados irremediavelmente. Pois a essência da vocação monástica é justamente esse abandono do mundo e de todos os seus desejos, ambições e interesses, a fim de viver não só para Deus, mas de Deus e em Deus, e não por alguns anos, mas para sempre.

A coisa que mais verdadeiramente faz o monge é esta irrevogável ruptura com o mundo e com tudo que ele encerra, para procurar a Deus na solidão.

O mundo compreende mais depressa esse fato, do que o monge que consente em ver a pureza da sua vocação empanada pelas concessões ao espírito secular. Os primeiros a condenar um mosteiro infestado de mundanismo são aqueles que, no mundo, são os menos monásticos, pois mesmo em quem abandonou a religião fica, muitas vezes, uma alta e exigente idéia da perfeição religiosa. S. Bento disse que era uma questão de primeira importância para o monge "tornar-se estranho às maneiras do século" - a saeculi actibus se facere alienum. Mas, ao estabelecer esse principio, o Pai do monaquismo ocidental não pensava só na edificação dos fiéis. Ele pensava na necessidade mais urgente da própria alma do monge.

A graça que chama um homem para o mosteiro exige mais do que uma transposição material de ambiente. Não há vocação monástica autêntica, que não implique, ao mesmo tempo, uma completa conversão interior. Essa conversão não pode jamais consistir na simples troca de roupa ou na adoção de uma regra mais estrita de vida.

O hábito não faz o monge, nem as observâncias religiosas. A característica essencial duma vocação monástica é que ela atrai o monge para a solidão, para uma vida de renúncia e de oração, para procurar só a Deus. Onde faltam esses traços, a vocação pode, sem dúvida, ser religiosa, mas não é, propriamente, monástica. É uma pena que mosteiros das antigas Ordens monásticas, algumas vezes oferecem a seus membros uma vida em que aqueles elementos só se realizam em teoria e não de fato.

Onde o essencial da vida monástica é mantido, pouco importam as variações acidentais. Uma comunidade monástica pode ser física e espiritualmente separada do mundo, pode oferecer aos seus monges uma vida de oração, e, ao mesmo tempo, manter uma escola ou algumas paróquias, sem perigo sério para o espírito monástico, tal qual é interpretado por alguns ramos da família beneditina. Da mesma forma, a vida monástica não deve necessariamente ser prejudicada pela existência de uma modesta indústria, exercida pelos monges em vista do seu próprio sustento. Mas, se o espírito de solidão e de prece e o amor exclusivo de Deus faltam nesse mosteiro, por mais severa que a Regra possa ser [e] inviolável a clausura, meticuloso o zelo exterior pelas funções litúrgicas, os homens que aí vivem não são realmente monges. A mudança interior, a metanóia, a conversão para Deus, que constitui a própria essência do apelo monástico, não tomou posse das suas almas.

A "conversão" interior que constitui o monge mostra-se externamente por certos sinais: obediência, humildade, silêncio, desprendimento, modéstia, que podem resumir-se numa só palavra: paz.

O mosteiro é uma casa de Deus: por conseguinte, um santuário de paz.  Na verdade, essa paz é comprada a alto preço. É a paz de homens pobres que estão sobrenaturalmente contentes com a sua pobreza, não por libertá-los esta das preocupações e responsabilidades do mundo, nem também por ajudá-los a levar uma vida essencialmente mais sadia e mais equilibrada do que a do mundo, mas porque ela, inexplicavelmente, os faz possuir o Deus de toda a paz.

A paz da vida monástica não pode ser explicada humana ou naturalmente. Entrem num mosteiro e vejam a vida de perto. Acharão que o que parece tão perfeito através das janelas da hospedaria é na realidade cheio das cicatrizes e estragos da imperfeição humana. O "tempo" de uma vida de comunidade não é invariavelmente sereno. A ordem do dia pode tornar-se às vezes instável, sobrecarregada, dispersiva e exaustiva. Usos e observâncias são às vezes torcidos em ridículas formalidades. Há momentos em que tudo no mosteiro parece conspirar para tornar impossíveis a paz e a oração. Tudo isso inevitavelmente encrespa a superfície da vida nas melhores comunidades. Sua função é lembrar-nos que a paz dos monges depende, afinal, de alguma coisa profunda e oculta em suas almas. A regularidade monástica é certamente muito importante para preservar a paz. Se a regularidade tiver de ser perdida para sempre, a paz não poderá durar muito. Mas ainda quando a vida se conforma à regra, a ordem só não basta para explicar a paz daqueles que dela vivem. Devemos olhar mais fundo no mistério da fé pelo qual, no secreto recesso das suas almas, os monges continuam na posse de Deus, e a despeito do que possa perturbar a superfície das suas vidas.

A vida monástica arde diante do Deus invisível como uma lâmpada defronte do tabernáculo. A mecha da lâmpada é a fé, a chama é a caridade, e o óleo, que alimenta a chama, é o sacrifício de si mesmo.

MERTON, Thomas. Homem Algum É Uma Ilha. Rio de Janeiro: Agir, 1968. p. 128-131.