Com esse post, eu encerro essa série de transcrições deste livro do Thomas Merton. Espero que tenha sido - ou seja, algum dia - útil a alguém. Fica a recomendação do livro e do autor, lembrando que, ainda que se trate de alguém cujos escritos aprecio, eu sugiro lê-lo com critério, pois há coisas que ele diz, nesta ou noutras obras, que me parecem estranhas. Mas fica a dica. Pax.
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Thomas Merton
A chuva cessa, e o canto puro de um pássaro anuncia, de repente, a diferença entre o Céu e o Inferno.
Deus, nosso Criador e Salvador, deu-nos uma linguagem em que Ele pode ser anunciado, pois a fé nos vem pelo ouvido, e as nossas línguas são as chaves que abrem o céu aos outros.
Mas, quando o Senhor vem como um Esposo, nada fica por dizer, exceto que ele vem e que devemos ir ao seu encontro. Ecce sponsus venit! Exite obviam ei.
Saímos, então, a encontrá-Lo na solidão. Aí nos comunicamos com Ele só, sem palavras, sem pensamentos discursivos, no silêncio de todo o nosso ser.
Quando o que dizemos se destina só a Ele, é difícil poder dizê-lo em palavras. O que não se dirige à comunicação, nem sequer é objeto de experiência num nível que pode ser claramente analisado. Sabemos que isso não deve ser dito, porque não pode.
Mas, antes de chegarmos a esse inefável e impensável, o espírito ronda as fronteiras da linguagem, indeciso em ficar ou não nos seus próprios limites, a fim de ter alguma coisa a trazer aos homens. Essa é a prova daqueles que desejam cruzar as fronteiras. Se eles não estão prontos a deixar atrás as suas próprias idéias e palavras, não podem ir além.
Não desejemos, principalmente, ser mimados e consolados pro Deus. Desejemos, acima de tudo, amá-Lo.
Não desejemos ansiosamente que os outros encontrem consolação em Deus. Ajudemo-los, antes, a amar a Deus.
Não se procure consolação em falar de Deus; mas falemos d'Ele para vê-Lo glorificado.
Se O amamos deveras, nada pode consolar-nos além da sua glória. Quem, porém, procura a sua glória acima de tudo, será também bastante humilde para receber das suas mãos consolação, aceita, sobretudo, porque, com a sua misericórdia para conosco, Ele é glorificado nas nossas almas.
Quem procura a glória de Deus antes de tudo conhecerá que a melhor maneira de consolar a outrem é mostrar-lhe como amar a Deus. Só aí existe a verdadeira paz.
Se quiserem que as palavras ditas sobre Deus signifiquem algo, vibrem de zelo pela sua glória. Pois, se os ouvintes perceberem que falamos apenas para nosso próprio agrado, acusarão o nosso Deus de ser somente uma sombra. Se se ama a glória de Deus, é esta transcendência que se procurará, e é no silêncio que ela se encontra.
Não procuremos, pois, conforto numa certeza de sermos bons. Saibamos somente que só Deus é santo, só Ele é bom.
Não é raro que o nosso silêncio e as nossas orações levem mais ao conhecimento de Deus do que tudo que dissermos sobre Ele. O simples fato de querermos glorificar a Deus falando d'Ele não prova que o conseguiremos. Que importa, se Ele prefere o meu silêncio? Não ouviram dizer que o silêncio Lhe dá glória?
Se alguém entra na solidão com uma língua silenciosa, as criaturas mudas partilharão com ele a sua tranquilidade. Mas se entra com um coração silencioso, o silêncio da criação falará mais alto que a língua dos homens e dos anjos.
O silêncio dos lábios e da imaginação dissolve o que nos separa da paz das coisas, que só existem para Deus e não para si. Mas o silêncio de todo o desejo desordenado elimina a barreira, que nos separa de Deus. Então, passamos a viver só n'Ele.
As coisas mudas cessam, então, de conversar conosco em seu silêncio. É o próprio Senhor que nos fala, com um silêncio ainda mais profundo, do meio do nosso próprio ser, onde Ele se esconde.
Os que amam o ruído que fazem são impacientes do resto. Desafiam constantemente o silêncio das florestas, das montanhas e do mar. Eles passeiam com as suas máquinas, através da floresta silenciosa, em todas as direções, cheios de medo que um mundo calmo os acuse de vazios. A pressa da sua velocidade, sob pretexto de um fim, simula ignorar a tranquilidade da natureza. O avião ruidoso, por sua trajetória, seu estrondo, sua força aparente, parece por um momento negar a realidade das nuvens e do céu. Vai-se o avião, e fica o silêncio do céu. Afasta-se ele, e a tranquilidade das nuvens permanece. O silêncio do mundo é que é real. O nosso barulho, os nossos negócios, os nossos planos, e todas as nossas fátuas explicações sobre o nosso barulho, negócios e planos, tudo isso é ilusão.
Deus está presente, e o seu pensamento é vivo e palpitante na plenitude, na profundeza e na vastidão de todos os silêncios do mundo. O Senhor vigia, nas amendoeiras, o cumprimento das suas palavras (Jr 1,11).
Quer passe o avião esta noite ou amanhã, haja ou não haja carros na estrada, conversem no campo homens, haja ou não um rádio na casa, a árvore floresce em silêncio. Seja a casa vazia ou cheia de crianças, vão os homens à cidade ou trabalhem com os seus tratores no campo, entrem navios cheios de turistas ou de soldados, a amendoeira frutifica em silêncio.
Há homens para quem uma árvore não tem realidade enquanto não lhes vem a idéia de cortá-la; para quem o animal não tem valor enquanto não entra no matadouro. Homem que jamais olhou para uma coisa enquanto não se decide a abusar dela, e que nem sequer percebe a existência do que ele não projeta destruir. Tais pessoas dificilmente conhecerão o silêncio do amor, pois o seu amor é a absorção do silêncio de outrem em seu próprio barulho. E, por ignorar o silêncio do amor, não podem conhecer o silêncio de Deus, que é Caridade, que não destrói o que Ele ama, obrigado que está, por sua própria lei de Caridade, a dar vida a todos os que Ele atrai para o seu próprio silêncio.
O silêncio não deve existir na nossa vida, só por causa dele mesmo. Ele é ordenado a outra coisa. O silêncio é o pai da palavra. Uma vida inteira de silêncio é ordenada a uma declaração final, que pode ser posta em termos, uma declaração de tudo pelo que vivemos.
Vida e morte, palavras e silêncio, são-nos dados por causa de Cristo. Em Cristo morremos à carne e vivemos do espírito. Morremos à ilusão e vivemos da verdade. Falamos para celebrá-Lo, e somos silenciosos para meditar n'Ele e entrar mais profundamente no seu silêncio, que é ao mesmo tempo o silêncio da morte e da vida eterna, o silêncio da noite de Sexta-feira Santa e a paz da madrugada de Páscoa.
Recebemos no coração o silêncio de Cristo, quando pela primeira vez falamos de coração a palavra da fé. Conseguimos a salvação no silêncio e na esperança. O silêncio é a força da nossa vida interior. Ele entra no próprio coração do nosso ser moral, e de tal forma que, se não temos silêncio, não temos moralidade. O silêncio entra misteriosamente na composição de todas as virtudes e preserva-as da corrupção.
Por "silêncio" da virtude, entendo a caridade que deve dar a cada virtude uma vida sobrenatural e é "silenciosa" por ter as suas raízes em Deus. Sem tal silêncio, as nossas virtudes não passam de som, não passam de ruído exterior e manifestação de nada: o que revela as virtudes é a sua caridade interior, que tem um "silêncio" todo particular onde se esconde uma Pessoa: Cristo, Ele mesmo escondido, quando é falado, no silêncio do Pai.
Se enchemos de silêncio a nossa vida, viveremos em esperança, e Cristo viverá em nós, dando substância à nossa virtude. Assim, ao chegar a hora, confessamo-Lo diante dos homens, e essa confissão é cheia de sentido, porque se enraíza nas profundezas do silêncio. Ela acorda o silêncio de Cristo no coração dos que nos ouvem, e eles, assim, ficam silenciosos e começam a querer saber e a ouvir. Começaram a descobrir o seu eu verdadeiro.
Se a nossa vida é dissipada em palavras inúteis, jamais ouviremos qualquer coisa no fundo dos nossos corações, onde Cristo vive e fala em silêncio. Nunca seremos nada, e, no fim, ao chegar a hora de mostrarmos quem somos, apareceremos sem nada a dizer e estaremos exaustos de falar antes mesmo de ter alguma coisa a dizer.
Deve haver um momento no dia em que o homem que faz planos os esqueça e aja como se não os tivesse. Deve haver uma hora do dia em que o homem que precisa de falar fique em silêncio. E, a sua mente, não forme raciocínios, e ele se pergunte se os que fez tiveram algum sentido.
Deve haver um tempo em que o homem de oração vá orar como se fosse a primeira vez na sua vida; em que o homem resoluto ponha de lado as suas decisões, como se estivessem quebradas, e ele aprenda uma nova sabedoria: distinção entre o sol e a luz, entre as estrelas e as trevas, o mar e a terra firme, o céu noturno e o cume de uma colina.
Thomas Merton, Homem Algum é Uma Ilha