terça-feira, 15 de maio de 2012

Budismo e Cristianismo

Quem me conhece sabe que, embora eu seja um "intolerante dogmático" católico, sempre simpatizei com o budismo. Sempre apreciei a sua estética, o seu modo de vida. E acho o Príncipe Siddharta, o primeiro Buddha, um sujeito muitíssimo interessante.

Meu conhecimento do budismo é, de fato, muito pouco. Porém, do pouco que eu conheço, posso afirmar que encontrei muitos paralelos entre ele e a mística cristã. Lendo, por exemplo, S. João da Cruz e Sta Teresa D'Avila, julgo ter visto pontos consonantes com o zen e o vazio propagados pelo budismo. Não estou, com isto, me filiando a essa corrente da falsa mística que concebe uma substância supra-denominacional e supra-conceitual que, a fim de dar-se a conhecer aos sujeitos comuns, encarna-se sob diferentes símbolos, fórmulas e rituais. Essa visão é obviamente falsa, muito embora ela possua muitíssimos seguidores. Quando falo de semelhanças, estou me referindo a aspectos que se dão no âmbito, ainda, da natureza - e não da mística propriamente dita. Lembremos que, moralmente, os homens de qualquer lugar e época são potencialmente capazes das mesmas coisas. Se os cristãos trouxeram à história o fenômeno de uma virtude elevada quase ao infinito, isso se deveu claramente ao influxo da graça divina, que é uma realidade sobrenatural de todo.

Mas há elementos do próprio campo da natureza que, se entendidos e praticados, poderiam levar o homem a dispor-se a um contato com a dimensão do mistério. Neste sentido, existem certas potencialidades humanas que, mesmo sendo naturais, o podem elevar a um certo "toque" ou vislumbre desta esfera do sagrado. A idéia do desprendimento de si e do vazio interior - kenosis no cristianismo - está em muitas outras ramificações religiosas e particularmente na vertente zen do budismo. Uma leitura atenta das experiências dos que conheceram isto pode ser capaz de retirar as dúvidas e desconfianças a respeito da sua legitimidade. Um interessantíssimo relato, por exemplo, se encontra no livro "A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen", do Eugen Herriguel , e do qual já transcrevi alguns trechos para este blog. É um livro de leitura fácil, breve e de um relato impressionante e muito belo.


Quem se dispuser a ler essa obra verá que não dá pra demonizar tal experiência. Isto não quer dizer que estaremos a legitimar uma concepção religiosa alternativa ao cristianismo. É óbvio que não; não se trata de relativizar a verdade, mas de reconhecer que neste negócio há algo de, no mínimo, interessantíssimo e que parece evidentemente verdadeiro, pois que irrefutavelmente eleva o ser humano a um outro nível, seja de ação, seja de interioridade. Se tal é verdade, cumpre dizer que este aspecto deveria estar presente, também, no cristianismo que, na nossa concepção, é a religião perfeita. Pois bem! É justamente o que eu afirmo: encontrei algo disso em S. João da Cruz para quem o processo de santidade é não um algo cumulativo, mas de esvaziamento, de retirada dos excessos, até que, vazio de si mesmo, como um "pássaro de cor indefinida" - pois a cor representaria, aqui, a particularidade caprichosa do sujeito e, portanto, um indício de que ele ainda guarda reservas - ele possa ver as coisas e a si mesmo sem véus, isto é, em sua plena objetividade e simplicidade. E isto inclui uma como que intuição do mistério.

Para os que leram as críticas que o Chesterton faz ao budismo, torna-se difícil olhar para essa tradição oriental com qualquer simpatia. A desconfiança surge-lhes na alma como uma espécie de garantidora contra a heresia e o erro panteísta. Eu, de minha parte, li o Ortodoxia de Chesterton, bem como a sua biografia de Sto. Tomás de Aquino. Desnecessário é falar da genialidade deste grande escritor e da agudeza do seu pensamento, porém, daquilo que eu li nessas obras - não conheço as outras -, parece-me não ser possível formar uma idéia justa do que seja o budismo. Penso, inclusive, que a intenção deste "Apóstolo do Senso Comum" não era dar um esclarecimento exaustivo da natureza do budismo, pelo que utilizar-se daquilo a que ele se referiu como prova inconteste da inutilidade geral do budismo ou da sua diabolicidade evidente, é, a meu ver, muitíssimo precipitado e equivocado.

Uma obra que eu penso valer muito a leitura, e que visa identificar precisamente qual a natureza, a validade e os limites desses paralelos entre o budismo e o cristianismo, é o livro do Monge Trapista, já falecido, Thomas Merton, chamado "Zen e as Aves de Rapina". Embora o livro deva ser lido com ressalvas e muito critério - pois o Thomas parecia ter uma certa simpatia excessiva pelo budismo -, ele traz muita coisa valiosa. Advirta-se o leitor para que tal leitura não o ponha em confusão, inserindo-o numa visão sincrética. Não é essa a idéia.


Os dois livros a que me refiro estão disponíveis para baixar na net. É só procurar.

Enfim, além dos tais paralelos incontestáveis - ainda que se diga serem meramente acidentais -, o budismo possui ainda outras coisas muito interessantes. A própria pessoa do seu fundador, o príncipe Siddharta, é  fascinante. A meditação que ele teve sob a "árvore frondosa", a respeito do problema do sofrimento, é genial. A sinceridade da sua busca é irrepreensível. O sujeito passou por uma ascese duríssima, submeteu toda a sua vida nesse caminho, renunciou ao conforto, luxo e fama,  e, por fim, supostamente atingiu a iluminação. Quem ler todo esse processo detidamente, verá que ele não tem nada de simplório. Reduzir o budismo a uma corrente herética do hinduísmo é outra atitude que não esclarece nada.

Mas, ainda que o budismo e aqueles seus paradoxos sejam assim tão fascinantes, há algo nele que é avesso à verdadeira libertação do homem: embora pretenda alcançar à iluminação, ele crê poder prescindir de Deus. Há, de novo, uma auto-suficiência humana que estraga tudo. Embora o adepto tenha de se submeter aos preceitos budistas e levar uma vida honrada se deseja realmente se tornar um buddha ou aproximar-se o quanto possível deste estágio, a iluminação poderá ser alcançada pelo próprio sujeito. Isto supõe que, pelo bom uso da nossa determinação, podemos atingir essa certa "bem-aventurança" sozinhos.

Tal idéia, aparentemente otimista e agradável, é, na realidade, bastante nociva e totalmente irreal, pois tende a divinizar o homem. É claro que, antes do processo, há aquela necessidade de o sujeito abandonar o egoísmo e desprender-se de si mesmo, mas, ainda assim, tal atitude traz por pressuposta a fé de que o sujeito seria a sua própria garantia no acesso à verdade supra-natural.

A meu ver, não se pode dizer - como fazem alguns - que o budismo seja uma religião atéia, visto que ele não nega a existência de Deus, ou melhor, não afirma que Ele não existe. Ele simplesmente se abstém de tratar sobre o tema, pelo que poderia talvez ser mais coerentemente classificado como agnóstico neste sentido. Certa vez, interrogado sobre a existência de Deus, o Buddha respondeu mais ou menos o seguinte:

"Se tu fosses atingido por uma flecha envenenada, o que tu farias? Ficarias a meditar sobre a procedência da flecha, ou, antes, farias o possível para tratar, o quanto antes, a ferida?". 

Com isto, ele enfatizava a necessidade de aprendermos a nos libertar da ilusão ao invés de ficar fazendo perguntas sobre assuntos que estariam acima da nossa capacidade ou que, talvez, seriam mera perda de tempo. E aqui precisamente se encontra a grande diferença entre o cristianismo e o budismo. No primeiro, Jesus deixa bem claro: "sem mim, nada podeis fazer". No segundo, o sujeito é capaz de rumar sozinho à iluminação, prescindindo de Deus. Esta auto-suficiência não pode ter outra fonte que a soberba e se harmoniza, na verdade, com a grande pretensão de Adão que, ao ser enganado pela serpente, desejou para si, de modo totalmente egoísta, a semelhança com Deus, sem Deus. No pecado original, não há nenhuma dúvida em Adão da existência de Deus, mas ele simplesmente O relega a uma importância secundária, pondo a si mesmo como prioridade. A soberba de Adão foi o motivo do mal no mundo.

Me perguntarão: "como queres estabelecer uma comparação tão arbitrária entre o pecado original, sem dúvida motivado pela soberba, com a prática budista que apregoa, antes de tudo, o desprendimento de si mesmo? A prática do vazio não se assemelha muito mais com a kenosis cristã, como tu já referiste?" Sim, de fato se assemelha; porém, pelo fato de fazer toda a eficácia da bem-aventurança provir do mero esforço humano, tem-se uma superestima desse mesmo esforço e o ser humano termina por converter-se no seu próprio redentor.

Talvez também por causa disso vê-se hoje o crescimento no número de ocidentais que, dia após dia, mais demonstram procurar nessas correntes orientais a verdade de que têm tanta sede, a contemplação que lhes falta na correria do cotidiano. Primeiramente, o budismo praticado vem oferecer o silêncio, o recolhimento que tanto faz falta na modernidade frenética. Mas, em segundo lugar, essa modernidade tem, como pano de fundo, a mesma filosofia subjetivista que tende a divinizar o sujeito. Talvez seja por isto existe, hoje, esta certa identificação entre o homem moderno e o budismo, pois aquele vê neste a oportunidade de adquirir o recolhimento de que se vê sedento sem, no entanto, abrir mão do seu pressuposto fundamental: o do subjetivismo, da onipotencialização dos próprios esforços, da pretensão ser a garantia última de si mesmo.

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